A morte de Umberto Eco priva o mundo de um tipo cada vez mais raro: um intelectual atuante de interesses abrangentes, voz ativa nas questões do mundo, e uma popularidade que ultrapassou, e muito, o ambiente acadêmico. Mais do que atuar com vontade e gana, jamais se esquivando de grandes questões, Eco era um pesquisador que podia orgulhar-se de haver ajudado a moldar parte do panorama intelectual do século 20 em várias frentes.
Já em sua estreia, Obra Aberta (1962), Eco estabelecia, sem que soubéssemos – talvez sem que ele próprio soubesse –, uma espécie de profissão de fé que manteria com coerência ao longo de sua carreira de mais de meio século, mesmo em campos tão diversos como a semiologia, os estudos da cultura de massa, a estética, a história medieval, a crítica cultural e a literatura. Em Obra Aberta, Eco tratava de uma tensão muito cara aos estudos semióticos: como uma obra de arte pode se submeter a uma leitura de seu público que a complete e ainda assim manter uma estrutura discernível capaz de organizar essas diferenças interpretações (era a época do estruturalismo como corrente da moda). Como aliar a liberdade de interpretação sem ler em qualquer obra aquilo que ela não é? É fácil ver que essa ideia o perseguiu por boa parte de sua vida ao encontrar esta passagem em um dos ensaios mais recentes reunidos em Sobre a Literatura: "Há uma perigosa heresia crítica, típica de nossos dias, para a qual de uma obra literária pode-se fazer o que se queira, nelas lendo aquilo que nossos mais incontroláveis impulsos nos sugerirem. Não é verdade. As obras literárias nos convidam à liberdade da interpretação, pois propõem um discurso com muitos planos de leitura e nos colocam diante das ambiguidades e da linguagem e da vida. Mas para poder seguir nesse jogo, no qual cada geração lê as obras literárias de modo diverso, é preciso ser movido por um profundo respeito para com aquela que eu, alhures, chamei de intenção do texto."
Ao longo de mais de meio século, o pensamento de Eco esteve ele próprio aberto ao diálogo não apenas com um manancial de outros textos constantes de sua enciclopédica erudição. E também manteve ao longo de todo esse tempo eixos estruturais que permitem reconhecer a marca "fechada" de seu trabalho intelectual: o rigor de seu pensamento; a vocação para testar não apenas os limites de seu conhecimento, mas das próprias formas de que se valia; e um humor inteligente que ia buscar graça tanto no que havia de mais vulgar (como as piadas grosseiras de Jacopo Belbo em O Pêndulo de Foucault) quanto em artifícios altamente sofisticados (como os disparates, as sátiras e os pastiches reunidos em O Segundo Diário Mínimo).
Depois de lançar Apocalípticos e Integrados (1964) um livro até hoje referência para pensar as reações sociais e comportamentais às quebras de paradigmas movidas por grandes transformações econômicas e tecnológicas, e de se estabelecer como um dos grandes intelectuais da corrente estruturalista, com A Estrutura Ausente (1968), Eco foi diversificando seus estudos, mas mantendo-se atento a algumas questões chaves: a narratologia, em Lector in Fabula (1979); a cultura de massa, em Super-Homem de Massa (1978), ou Semiótica e Filosofia da Linguagem, no livro de mesmo nome publicado em 1984.
Trabalhos sólidos de um acadêmico de excelência reconhecida. Embora tenha sido sempre uma figura midiática por excelência em sua Itália natal, é com sua estreia no romance, em 1980 que Eco inaugura a faceta mais popular de sua carreira, a de ficcionista, que o tornaria um nome conhecido mesmo dentre o vasto público desinformado do trabalho anterior. E o surpreendente é que isso se deu com um livro que consegue casar como poucos antes e pouquíssimos depois a vasta erudição já conhecida de seu leitores acadêmicos com a moldura de uma narrativa popular dirigida ao público de massa. O Nome da Rosa era um romance policial ambientado em uma abadia medieval, na qual um a um monges ávidos de conhecimento eram mortos enquanto buscavam um mítico segundo livro da Poética, de Aristóteles, dedicado especificamente à tragédia. Para além de um "policial histórico", conseguia ainda contemplar em suas páginas história da religião, teoria dos signos, controle da informação e uma reinvenção fascinante do imaginário medieval.
Eco se tornou um best-seller, e é possível afirmar sem exageros que a existência de O Nome da Rosa tornou possível o fenômeno Dan Brown duas décadas depois, embora numa versão destilada e menos ambiciosa. Eco lançou uma série de outros romances ao longo dessas três décadas. Em todos eles, mesclando um amplo conhecimento do antigo com uma tremenda familiaridade com o moderno (e o pós-moderno), mesclou gêneros de massa e ambiciosas reconstituições de modelos literários arcaicos, como a aventura medieval em Baudolino (2000), o almanaque e a revista em quadrinhos em A Misteriosa Chama da Rainha Loana (2004) e o romance de folhetim em O Cemitério de Praga (2011). Ele próprio um estudioso dos mecanismos que levam à disseminação das histerias em massa e das teorias conspiratórias (que analisou nos ensaios de Seis Passeios pelo Bosque da Ficção de 1994), fez os personagens da maioria de seus romances se defrontarem com complôs reais enquanto perseguiam tramas imaginárias – está aí um bom resumo, por exemplo, das 700 páginas do já citado O Pêndulo de Foucault. Isso sem nunca abdicar de uma camada de entretenimento que não precisava ceder a mastigar suas prosas em uma papa anódina para consumo fácil.
Isso porque Eco sabia, como escreveu em Sobre a Literatura, que “o mundo da literatura é um universo no qual é possível fazer testes para estabelecer se um leitor tem o sentido da realidade ou é presa de suas próprias alucinações”.
Sem ele, vai-se um elemento cada vez mais necessário nesta época em que até a literatura não se furta a ser pautada pelo mercado: inteligência.