2019 está sendo um ano quádruplo para o quadrinista porto-alegrense Carlos Ferreira. Duas obras que ele escreveu, ambas em parceria com o desenhista Rodrigo Rosa, foram relançadas depois de muito tempo. Vencedora do Troféu HQMix de 2011 na categoria melhor adaptação para os quadrinhos, Os Sertões – A Luta (2010) ganhou uma cena extra e um prefácio assinado pelo sociólogo Maurício Hoelz na nova edição, agora pela Companhia das Letras (96 páginas, R$ 49,90). A obra é baseada no clássico de Euclides da Cunha sobre o conflito armado entre a comunidade religiosa liderada por Antônio Conselheiro e o exército brasileiro, no interior da Bahia, em 1896 e 1897. Publicada originalmente em 2011, Kardec recebeu melhor acabamento gráfico, agora pela editora Chave (120 páginas, R$ 39,90). Trata-se de uma biografia do codificador do espiritismo, o francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, o Allan Kardec (1804-1869). Ferreira, 49 anos, também está trabalhando em uma nova HQ, Exu Dumas, e prepara seu primeiro romance.
Na entrevista a seguir, ele fala sobre seus projetos e sobre como eles convergem para alguns dos temas que mais discute: a (falta de) visibilidade dos artistas negros, o racismo estrutural, a África como matriz universal.
Duas das HQs das quais você escreveu o roteiro, ambas desenhadas pelo Rodrigo Rosa, foram relançadas em 2019: Os Sertões – A Luta e Kardec. Foi coincidência?
Coincidência não. Explico: há toda uma rede de fatos que levaram essas duas HQs a serem republicadas em 2019. Já na gênese, por volta de 2007, sem ter nada a ver uma com a outra, essas HQs foram peças montadas no meu quebra-cabeça criativo na mesma temporada. Como um relógio, essas HQs tem um design de engrenagens sob as suas páginas ilustradas. Tudo tem a ver com jornada espiritual. Esses quadrinhos são narrativas gráficas que mostram as transformações de visões do mundo de Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha em Os Sertões – A Luta, Rivail/Kardec em Kardec. As personagens têm os seus mundos embasados em algo material e político e são transformados para um campo mais vasto e invisível que é o mundo espiritual. Por mais que isso não apareça em Euclides da Cunha, ao reparar em Os Sertões podemos fazer um paralelo com a Bíblia, que começa com a Terra, que é a Gênese, e termina com a Luta, que é o próprio Apocalipse. Quase 10 anos depois, esses livros são novamente publicados seguindo as engrenagens do meu próprio relógio existencial. Antes de deixar Porto Alegre, vivi, provei o hálito do mal. Esse momento sombrio que vivemos no país mata Porto Alegre e me levou ao embate com uma força espiritual negativa: Shtriga. Eu também sou um viajante da realidade espiritual, sou um xamã, vivo no realismo mágico, e escrever e desenhar são as minhas ferramentas de trabalho. A arte, principalmente o cinema e os quadrinhos, são o meu relógio clepsidra. Mudei-me para São Paulo e mesmo que Os Sertões – A Luta tenha agora sido reeditado pela Companhia das Letras porque Euclides era o homenageado da Flip em Paraty, mesmo que Kardec tenha sido publicado pela Veneta (Chave), já que o filme sobre Kardec estava sendo lançado no ano, não foram coincidências, mas sincronicidades e símbolo de renascimentos. Também o meu renascimento. Essas edições são superiores às primeiras, de quase 10 anos atrás. Kardec tem melhor acabamento e impressão, faz parte de uma coleção ocultista, e Os Sertões teve um cuidado editorial maior, dando a oportunidade para Rodrigo e eu criarmos uma cena extra que só funcionou criativamente depois da nossa jornada com o Kardec.
Por que adaptar Os Sertões? O que Canudos tem que atraiu você? E o que essa história tem a dizer para o Brasil de hoje?
Tá aí um termo com o qual não sou muito de acordo. Não acredito em adaptações, mas em leituras. Os Sertões – A Luta é a leitura que fiz do livro e desta leitura tem ainda a leitura que o Rodrigo fez da minha leitura. Afinal, mesmo que quadrinhos seja texto e arte, mesmo que nós dois tenhamos um processo criativo em parceria de invadir o campo do outro, ali há um desprendimento do texto original. Na minha visão, quadrinhos é literatura, e literatura é imagem, mas ao mesmo tempo há também uma parcela de mim que diz que quadrinhos é cinema. São muitos campos criativos dentro do quadrinho. E no fim, não sou um adaptador, mas um contrabandista, um ferreiro que pega a energia da literatura do Euclides da Cunha, que tento mantê-la viva naquilo que chamam de quadrinhos. Antes de Os Sertões – A Luta, esse tipo de gênero aqui no Brasil era quase um álbum de figurinhas. Pegavam um pedacinho do texto original e ilustravam outro pedacinho. Percebo que mudou, abrimos esse campo de possibilidades. Sobre Canudos: me atrai ainda hoje, ainda revisito as minhas memórias da época que estivemos lá pesquisando. Canudos é um Brasil. O conflito é o que somos. Um povo racista de uma suposta matriz branca finada. Canudos é Palmares, Canudos é universal. É o Coração nas Trevas. Bacurau e Mad Max. Canudos é Marielle Franco, negra assassinada pela suposta milícia branca dos podres poderes. Canudos é o futuro do Brasil.
Por que contar a história de Kardec? O que ele ou o espiritismo tem que atrai você? E o que sua história tem a dizer para o Brasil de hoje?
Se reparar a história do Kardec que conto, essa narrativa começa na África. O meu interesse é contar a história da África, mas eu ainda preciso contrabandear, contar histórias negras para os brancos. Nisso me sinto muito músico. É como o samba, jazz, blues, rock and roll e o tango. Sim, todos esses ritmos são negros. O meu jeito de contar histórias em quadrinhos tem ritmo negro, mas se os meus protagonistas fossem desde a sua matriz negros lá nos meados dos anos 1980, eu estaria reduzido àquilo que o branco chama de gueto e o negro se apropria dando outro sentido ao gueto. Kardec é uma história sobre o século 19, sobre o universo mágico e espiritual. Sobre a codificação espiritual do pensamento branco com base na religiosidade que tem sua nascente na África, de um racional racista, e esta codificação no centro da Europa resultou em uma religião que tem força no Brasil. Mas não o mesmo peso religioso na Europa atual. Depois de A Evolução das Espécies de Darwin, surge essa revolução espiritual. Isso me atrai, isso tem muito a ver com o Brasil de hoje porque essa política extremista de direita neopentecostal vai ser derrubada pela matriz de plural espiritual. Essa é uma revolução sócio-política e espiritual e o Brasil tem, sim, a sua importância neste momento mundial.
Podes falar sobre seu novo projeto, Exu Dumas? Do que trata, quem desenha, quando sairá?
Exu Dumas é antes de qualquer coisa um quadrinho ritual. Escolhi aqui falar sobre racismo. De certa forma, é revisitar o universo do Kardec mas em uma jornada totalmente anti-Kardec. Por favor, não entendam mal, não estou em desacordo com o meu livro Kardec, mas há uma outra proposta em eu revisitar o século 19 e acentuar essas questões da África como matriz. Exu Dumas trata de Alexandre Dumas (francês, 1802-1870, autor de Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo), homem negro, escritor contrabandista do seu criativo para a cultura branca. O que conhecemos dele sobre ser um homem negro? O que é ser negro? É Dumas hoje uma entidade? Há uma apropriação abusiva sobre o meu povo negro. Tenho pensado muito nessa apropriação e a condição velada do negro ser ainda escravo, pois se existe racismo é porque existe a cultura da escravidão. Entende? Somos os primeiros a ser condenados, mortos, abusados. Somos peças. Objetos sexuais, objetos criativos, objetos de guerra e até objetos mágicos para a cultura branca. Ao meu ver essa cultura ainda existe. E Exu Dumas é uma HQ que deve expor muito dessas ideias. O livro vai ser desenhado pelo magistral e jovem Anthony Mazza. Vencemos o ProAC (Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura e Economoia Criativa do Estado de São Paulo) no edital de quadrinhos e no começo de 2020 viajaremos à França para pesquisa de campo. Já começamos a produzir o livro, que foi confirmado por uma das atuais melhores editoras novas do país, que ainda pede sigilo sobre o enredo. Vai ser lançado no próximo ano.
Também está vindo um romance, certo? Sobre o que é e como foi/está sendo o desafio?
Este texto está sendo um desafio grande pelo tema e também pelo prazo. O livro tem como personagens centrais Dom Pedro II e Pedro Américo. Passa em duas linhas de tempo, a atual e a do passado. É sobre a criação do quadro Independência ou Morte. Começa no incêndio do Museu Nacional e adentra muitas camadas do Brasil. Eu diria que é o meu Pêndulo de Foucault (referência a um célebre romance de Umberto Eco).
Recentemente, você fez no Facebook um desabafo sobre a falta de visibilidade dos artistas negros no Rio Grande do Sul. Como você vê a representatividade da cultura negra no Estado?
Durante muito tempo da minha vida fiquei em silêncio sobre racismo. Inconformado, mas observador. Não mais depois de ter sido convidado pela editora Nemo para criar um livro sobre Zumbi e o Quilombo dos Palmares, HQ ainda não publicada e o qual quiseram alterar o final do meu livro para um epílogo abrandado, mostrando o negro na sociedade atual considerando superado o Quilombo dos Palmares. Claro que não aceitei e fui alvo de um processo judicial, o qual venci cinco anos depois (na sentença datada de 23 de janeiro de 2018, o juiz Sebastião Pereira dos Santos Neto, da 2ª Vara Cível de Belo Horizonte, diz que não há provas de descumprimento de contrato e extingue o processo; a HQ Zumbi: Guerreiro dos Palmares, com desenhos de Moacir Martins e em edição independente, será lançada na Festa Literária de Paraty de 2020). Isso foi um ponto de origem em mudar a minha conduta como artista negro. O meu criativo já buscava as minhas raízes, meu criativo fomenta muito da minha essência espiritual que cada vez mais se conecta com a África. E essa conexão também mudou a minha conduta social e política. Na real, ser artista negro no Rio Grande do Sul é um desafio. Somos ignorados desde sempre pela mídia que constrói uma linha narrativa onde a história cultural é fomentada por uma maioria branca. O Rio Grande do Sul rejeita a força criativa dos seus negros de uma forma bastante intensa, silenciosa e velada. Precisei sair de Porto Alegre para entender qual é o papel do negro em um Estado que considero um dos mais racistas do Brasil. O papel do negro é ser ignorado. Somos marginalizados, fantoches, afastados da composição histórica da cultura gaúcha. A mídia local dá espaço ou atenção ao negro em datas especiais, não?
E como você vê a representatividade do negro dentro das HQs, sejam elas gaúchas ou nacionais?
Eu vejo que algo está acontecendo aqui em SP e no nordeste. Publicações e autores negros reconhecidos. Marcelo D'Salete (autor dos premiados Cumbe e Angola Janga) e Cau Gomez (premiadíssimo cartunista) são exemplos disso. Mas no Rio Grande do Sul? Não há mercado editorial no RS. Há tentativas de mercado editorial. Geralmente, quando um autor de quadrinhos está trabalhando para os meios, na maioria das vezes o meio acha que é prestar um favor ao profissional. E, para o mercado do RS, ser quadrinista ou negro é a mesma coisa. Mas quando um autor de quadrinhos branco conquista espaços, meios e mercado nacional e internacional, isso é notícia na mídia gaúcha. Falo por experiência que, quando um autor negro faz a mesma trajetória, já não é a mesma coisa.
Este Mês da Consciência Negra é uma data para comemorar ou para reivindicar? Que avanços você identifica e que conquistas ainda devem ser alcançadas?
Todo dia é dia de protestar e reivindicar. Não há avanços antes de existir real reconhecimento e desculpas por parte da elite branca e não essa hipocrisia à la festividade natalina. Logo teremos uma marca de supermercados fazendo propagandas para o dia 20 de novembro? Vejam! Saiam para as ruas em Porto Alegre. Deem uma caminhada em bairros específicos. Eu morava no bairro Rio Branco, e quando os meus filhos chegavam da escola, nos elevadores perguntavam quem eram por serem negros. Edifício da classe média no bairro Rio Branco, antiga Colônia Africana, terra que foi roubada dos negros e agora tem esse nome irônico de bairro Rio Branco. Porto Alegre tem isso de bairros não serem frequentados por negros. Claro que não há aqueles cartazes de negro não pode, mas há os olhares sobre nós, a desconfiança que vamos roubar. O policiamento cerrado sobre nós. E andamos bem vestidos, cheirosos e limpos. Os avanços são mínimos porque a hipocrisia é maior.
Dados do IBGE mostraram que, pela primeira vez, a população negra é maioria nas universidades públicas. O futuro é promissor?
Hoje mesmo vi no Facebook, como um meme, que devemos ter atenção sobre isso ser talvez fake e que vem aí o fim das cotas. Se o futuro é promissor? Em pequena escala, ou média escala não me parece promissor. Parece assustador.
Também recentemente, o escritor Jeferson Tenório narrou no Facebook sobre um episódio ocorrido na Feira do Livro de Porto Alegre: após a fala da escritora Ana Maria Gonçalves, autora de Um Defeito de Cor (que narra a trajetória dos primeiros escravizados vindos da África), um homem branco contou uma "historinha" sobre uma suposta gratidão dos negros para com os avós dele, que haviam sido donos de escravos. Apesar do repúdio da plateia e da própria Ana Maria, conta Tenório, o homem branco permaneceu ali, "inabalável", como "um privilegiado branco que se coloca no direito de dizer o que quer". Para o escritor, o caso ilustra "um Estado que parece se orgulhar e não faz questão nenhuma de esconder seu racismo". Você concorda?
Concordo muito. Muitos amigos brancos diziam: "As suas histórias são complexas para quadrinhos", Você nunca será publicado", "As suas roupas! Que esquisitas! Parece um Exu". Como se Exu fosse algo ruim. O racismo não é simplesmente chamar o outro de negão, é algo ainda mais perverso: é empoderar a cultura branca como a correta, a boa e perfeita. Isso Porto Alegre faz.