Em sua foto de perfil no Facebook, o publicitário, editor e roteirista Diego Moreau veste uma camiseta com o emblema do Batman. Foi com gibis do personagem, ele diz, que aprendeu a ler, quando tinha quatro anos. Durante a infância, a adolescência, a juventude e parte da vida adulta, o gaúcho radicado em Florianópolis reverenciou Bob Kane (1915-1998), o quadrinista americano a quem era atribuída a criação do Homem-Morcego, em 1939.
Até que, em 2012, após mais de 10 anos de pesquisa, o escritor Marc Tyler Nobleman lançou nos Estados Unidos o livro Bill: The Boy Wonder, sobre o cocriador do super-herói, Bill Finger (1914-1974). O impacto foi semelhante ao daquelas típicas reviravoltas nas tramas do gênero. Sabia-se que Finger – que morreu pobre e sem fama – havia desempenhado um papel significativo para a construção do Batman, mas se descobriu que, sem ele, muitos dos alicerces do mito jamais teriam existido. Bob Kane, no fim das contas, estava mais para vilão do que para mocinho.
A pesquisa e o livro de Nobleman serviram de base para a biografia em quadrinhos Bill Finger – A História Secreta do Cavaleiro das Trevas, produzida por Moreau com a companhia do Douglas P. Freitas no roteiro, Sandro Zambi nos desenhos e Ítalo Silva nas cores. Lançada na hora certa – os 80 anos do Batman – pela editora catarinense Skript (da qual Moreau é sócio fundador), com formato charmoso, papel bacana e extras que agregam, a HQ não se limita a retratar os bastidores da criação do Cruzado Encapuçado. Em sua viagem no tempo, reconstitui o nascimento e a consolidação de toda a indústria americana dos gibis de super-herói. Há alguns senões – em alguns momentos, é difícil distinguir quem é quem, e nem sempre o contexto histórico acomoda-se com fluidez à parte dramatúrgica. Mas Bill Finger é uma leitura saborosa para fãs e, suspeito, neófitos, ainda mais que Zambi e Ítalo se esmeraram na arte, variando bastante a diagramação e dosando páginas mais simples com momentos de virtuosismo ou citações a cenas e personagens clássicos.
— Trata-se de uma obra que busca corrigir a maior injustiça da cultura pop — define Moreau, 45 anos, em entrevista por WhatsApp de São Paulo, onde participava de uma sessão de autógrafos (leia a íntegra da conversa logo abaixo).
"Bill fez tudo e Bob era só o dono do estúdio"
Sócio fundador da Skript Editora, o gaúcho radicado em Florianópolis Diego Moreau concedeu a seguinte entrevista a GaúchaZH:
Por que recuperar a história de Bill Finger?
A história de Bill Finger é a maior injustiça da cultura pop. Tanto que ele tinha virado gíria no mercado americano (quando um artista é passado pra trás, e tem sua obra roubada, dizem que foi Fingered). Essa é uma história que precisa ser contada justamente para corrigir essa maldade e para que Bill receba o merecido reconhecimento. Ele criou o maior e melhor super-herói, um personagem que é admirado no mundo todo.
Resumidamente, para o público mais leigo entender, o que Bob Kane fez e o que é criação de Finger?
Bob Kane era o dono do estúdio. Ele recebe o pedido da National (hoje DC) pra criar um novo Superman. Rabisca o desenho do cara loiro, de vermelho, máscara tipo Robin, asas e sem luvas. E fica na dúvida se chama Birdman ou Bat-man. Sabendo que está ruim, pede ajuda a Bill Finger (que já trabalhava pra ele como roteirista). Bill cria TUDO do Batman que conhecemos. Desde o visual até a biografia. Depois, com a ajuda do desenhista Jerry Robinson, fazem todos os principais personagens e elementos do universo do Morcego. Num resumo rápido: na minha opinião, Bill fez tudo e Bob era apenas o dono do estúdio.
Durante muito tempo, achei que o caso Kane/Finger fosse parecido com o de Stan Lee e Jack Kirby, mais um lance de rivalidade, de egos, do que de engodo, aproveitamento. Acredito que muitos pensassem de forma parecida. Qual foi o estopim para que a verdadeira história fosse conhecida?
No final dos anos 1960, Bill deu uma entrevista pro fanzine Batmania, de Jerry Bails. Lá aparece sua verdadeira participação no Batman. Furioso, Bob envia uma carta o atacando, cheia de mentiras. Isso fez Bill se retrair ainda mais. Mas, com o passar dos anos, a história vai circulando. Começam as convenções de fãs. Finalmente, após mais de 10 anos de pesquisa, Marc Tyler Nobleman lançou seu livro infanto-juvenil The Boy Wonder, que conta a vida de Finger e inspira o documentário Batman & Bill. É Marc quem acha Athena Finger, neta de Bill que ninguém sabia que existia. Então, com os novos fatos e a pressão dos fãs, finalmente em 2014/15 a Warner/DC reconhece Bill como cocriador e faz um acordo com a família Finger.
Quais foram os grandes desafios na adaptação para os quadrinhos?
O maior desafio foi fazer jus a essa grande história. E não passar vergonha, já que Bill foi um dos maiores roteiristas do meio (juro que enquanto escrevia ficava pensando "o que o Bill faria?"). Desde o início, nossa preocupação foi ser o mais fiel possível aos fatos (por isso a enorme pesquisa, com diversas fontes) e ao mesmo tempo não "colar" a informação na página. Não queríamos uma revista burocrática. Os quadrinhos são uma mídia única, com características próprias. O objetivo foi traduzir essa história da forma mais poética possível, explorando ao máximo o veículo quadrinho.
Quais mistérios persistem?
Esse período histórico agora está sendo desvendado. Ainda há muitos mistérios. Para ter uma ideia, antes do Marc realizar seu impressionante trabalho, só existiam duas fotos do Bill. Ninguém sabia que ele tinha uma segunda esposa, a Lyn. Todos os colegas achavam que tinha sido enterrado como indigente. As editoras não davam créditos para os criadores. Existe muito que precisa ser descoberto sobre as pessoas que viveram esse momento e o seu legado.
Para além dos bastidores de Batman, vocês acabaram reconstituindo a história do surgimento e da consolidação dos super-heróis. Por quê? E o que há de tão fascinante neles?
A gente usa a vida do Bill como fio condutor para fazer um resgate histórico da Era de Ouro e de Prata dos quadrinhos e os principais acontecimentos do período (como a Segunda Guerra, por exemplo). Nós queríamos que as leitoras e leitores vissem como a cultura é afetada e afeta diretamente nossa sociedade. Os super-heróis são uma das maiores contribuições da cultura pop (para o bem e para o mal). Abordar sua origem e sua expansão era algo essencial na obra.
Suponho que o livro tenha atratividade para o mercado dos EUA. Vocês estão em tratativas? Há alguma questão de direitos autorais, por mostrarem personagens de outras editoras?
A HQ já foi traduzida para o inglês. Estamos agora vendo com a Amazon como fazer o e-book primeiro. Sobre direitos, nossa obra tem cunho jornalístico/informativo. Não é uma aventura do Batman ou dos outros heróis e heroínas citados. É um documentário sobre o tema. Ai podemos citar sem problemas. A única pessoa que poderia se ofender é a Athena Finger. Mas desde o começo entramos em contato com ela e o Marc. Eles foram incríveis. Athena virou amiga online e curte/compartilha tudo que postamos sobre o Bill. Marc se colocou à disposição para qualquer dúvida, coisa que fiz várias vezes conversando com ele. Os dois são os heróis dessa história. Athena e Marc que conseguiram o que todos achavam impossível: Bill creditado como criador do Batman. Sem eles, a justiça não seria feita. Sem a ajuda deles, nem nossa HQ existiria.