Os personagens da DC e da Marvel dominam amplamente o mercado nacional de gibis de super-herói, mas uma editora do Rio de Janeiro está querendo comprar briga com os americanos. Tal qual os irredutíveis gauleses das aventuras de Asterix, a Guará Entretenimento surge como resistência.
As armas são claras: conceitos já enfronhados no imaginário do leitor são retrabalhados sob uma ótica que enfatiza mazelas brasileiras. Como acontece na DC e na Marvel, as histórias estão interligadas – personagens de uma HQ aparecem em outra –, criando um universo ficcional. Em paralelo, também a exemplo do que fazem as duas empresas dos Estados Unidos, o Universo Guará expande-se para o meio audiovisual, em um processo de consolidação.
— Nossos protagonistas são urbanos, problemáticos, anti-heróis. O slogan é direto: nossas cidades, nossos problemas, nossos heróis — diz Luciano Cunha, 46 anos, criador e editor do Universo Guará ao lado de Gabriel Wainer (que é roteirista, já foi ator de Malhação e é neto dos jornalistas Samuel Wainer e Danuza Leão). — Temos 12 personagens já registrados e outros em desenvolvimento. Todos têm links entre seus arcos dramáticos e conversam entre si em suas aventuras. Todas as HQs já são pensadas para se transformar em outros produtos. Somos uma editora multiplataforma. Conversamos com players que atuam no consumo geek, desde produtoras de cinema e canais de streaming a designers de games e boardgames (leia uma entrevista completa logo abaixo).
O carro chefe é O Doutrinador, uma espécie de Justiceiro brasileiro, mas sem o desenvolvimento psicológico do anti-herói da Marvel e com a mira voltada exclusivamente para a corrupção política. “Supersoldado em um país sem guerras”, o personagem, conta Cunha, nasceu em 2008, com o nome de Vigilante, quando seu autor trabalhava em uma agência de publicidade. Foi engavetado duas vezes até que, em abril de 2013, já rebatizado, apareceu no Facebook.
A realidade ajudou a ficção: as manifestações de junho daquele ano criaram o caldo para a popularização do Doutrinador, um homem sem clemência para governantes que desviam dinheiro, deputados associados com o crime e toda sorte de agentes públicos que lesam o país em benefício próprio. Cunha não dá nome aos bois, mas, por exemplo, desenhou o presidente Barros, ex-líder sindicalista nos anos 1970, com as feições de Lula.
O matador de corruptos acabou chegando ao cinema. Lançado em 2018, dirigido por Gustavo Bonafé e estrelado por Kiko Pissolato e Tainá Mendonça, o filme atraiu 253 mil espectadores. Um livro de capa dura, editado pela Redbox, compila as três primeiras HQs (uma delas, com argumento de Marcelo Yuka, um dos fundadores da banda O Rappa) e reúne muitos extras, como textos do quadrinista, desenhos de outros artistas, making of e fotos do longa-metragem.
Tráfico de crianças e ataques a religiões afro
Parceria de Gabriel Wainer com Rafa Kraus (roteiro) e Juliano Henrique (arte), Os Desviantes é o projeto de superequipe. Em um Brasil futurista dividido entre a Fortaleza, que congrega as castas privilegiadas, e a Resistência – a periferia –, juntam-se Fióti, um egresso das comunidades cariocas, Tom, uma espécie de ciborgue, e a indígena Anita.
Pérola, escrita por Wainer e Kika Hamoui e ilustrada por Péricles Júnior, é uma história barra-pesada sobre uma mulher que, depois de matar seu padrasto abusador, passa a se prostituir para garantir o futuro da irmã caçula, Belinha. Ela vai se envolver com políticos e com traficantes de crianças, em uma trama que recorre a alguns clichês e que, por vezes, é confusa na narrativa visual.
O gibi mais empolgante e mais promissor retrata as aventuras de outro herói solitário - ou nem tanto assim. Com roteiro de Cunha e Wainer e desenhos de Mikhael Raio Solar, Santo é a versão brasileira de John Constantine, o célebre personagem da DC que lida com o oculto e com demônios. Salvador Sales é um professor que recusa sua mediunidade. Mas ele deverá colocar seus poderes paranormais em prática depois de um brutal ataque a um centro de umbanda do Rio de Janeiro – notícia frequente no Estado. Tendo a seu “lado” o espírito do Irmão X, seu interlocutor nos momentos de reflexão, ele descobre a conexão entre um pastor evangélico e político influente com uma sociedade secreta, o Círculo Vril, que mistura arianismo e magia negra. Nitroglicerina pura, muito bem ilustrada – destaque também para as cores sóbrias de Alzir Alves.
Onde comprar
- Os gibis estão à venda no site lojadouniverso.com.br, a R$ 10 (mais frete). O Doutrinador está disponível só na versão PDF (R$ 5). O site loja.redboxeditora.com.br tem a edição especial, por R$ 69,90.
- Em bancas, por enquanto, as HQs só podem ser encontradas em alguns pontos do Rio. Mas há negociações para distribuir em mais Estados.
- Em Porto Alegre, a loja Tutatis (Avenida Assis Brasil, 582, fone 3326-0867) dispõe de exemplares, a R$ 15.
"O público quer ler personagens brasileiros"
Por e-mail, Luciano Cunha, criador de O Doutrinador e um dos editores do Universo Guará, falou sobre a ambição do projeto e sobre os personagens:
Os personagens aludem a velhos conhecidos dos leitores de super-heróis e afins – O Doutrinador lembra o Justiceiro, Santo tem ares de John Constantine, os Desviantes remetem a equipes como X-Men –, mas com bastante brasilidade. Pode falar um pouco mais sobre o processo de criação?
Buscamos sempre altas doses de brasilidade justamente para obtermos uma identificação automática com o leitor. Sabíamos que isso ia dar certo por causa do retorno em nossas redes sociais, principalmente do Doutrinador, que veio antes. Então todo os personagens são pensados desta maneira: com elementos e até mesmo clichês da cultura pop mundial, mas com o toque e o tempero brasileiro que faz toda a diferença.
O plano é interligar as HQs, ao estilo da Marvel e da DC?
Sim, com certeza. Já nascem todas interligadas.
Até onde o Universo Guará será expandido? Além dos personagens já conhecidos, há outros a caminho?
No total temos 12 personagens já registrados e outros em desenvolvimento. Todos esses já possuem links entre seus arcos dramáticos, todos conversam entre si em suas aventuras. Passamos semanas fazendo essas ligações na época que apresentamos o universo a um importante player do audiovisual no país. Infelizmente, não posso dar maiores detalhes sobre os outros lançamentos.
Vocês têm um calendário de publicações? A distribuição é nacional? Como vocês pretendem competir no mercado?
Há um planejamento para termos edições bimestrais e, dependendo da aceitação do público, até mesmo mensal. Estamos em negociação avançada para distribuirmos em todo o país, principalmente depois de um teste que fizemos em bancas do Rio de Janeiro, onde tivemos um resultado espetacular. A competição é literalmente estar ao lado na prateleira junto com Homem-Aranha, Batman e todos os heróis que aprendemos a amar. A experiência nas bancas cariocas nos mostrou que existe uma demanda, as pessoas querem ler personagens brasileiros numa apresentação digna e em material de qualidade. É um desafio e tanto.
Agora, vamos falar um pouco sobre cada personagem. O Doutrinador quer limpar o Brasil da corrupção. Ele só acredita na solução radical, a do assassinato?
Claro que não, essa é a licença poética que o quadrinho nos traz. É um personagem fictício, ele é só a indignação e a revolta radicalizadas. Mas ele nunca foi apologético, pois não há espaço para isso. Os fãs sabem distinguir ficção e realidade.
Como ele vê o governo Bolsonaro?
Ele vê com os mesmos olhos dos governos anteriores: se houver algum indício de corrupção, algumas páginas podem aparecer.
Pérola tem algumas cenas pesadas, incluindo incesto, e aborda um tema apavorante, o do tráfico de crianças. Ela será a defensora de uma agenda feminista? Vai combater também a discriminação no trabalho, a cultura do estupro e outras pautas contemporâneas?
Pérola não foi criada por mim, foi escrita pela Kika Hamaoui, que é uma roteirista sensível aos desafios femininos atuais, ou seja, é natural que empunhe algumas bandeiras feministas, mas não acho que seja panfletária.
Os Desviantes já está prometido para o cinema, como aconteceu com O Doutrinador e vai acontecer com Santo. Os gibis já nascem como projetos transmídia, correto? Pensam em TV ou serviços de streaming?
Sim, todas as HQs já são pensadas para se transformar em outros produtos. Somos uma editora multiplataforma, a Guará nasceu assim, é nosso diferencial. Conversamos com todos os players possíveis que atuam para o consumo geek, desde canais de streaming a designers de games e boardgames.
Santo retrata os ataques a terreiras de umbanda. Como você vê as tensões religiosas e raciais no Brasil?
Nunca tivemos tantos ataques a religiões de matriz africana como agora. O radicalismo religioso é um problema que precisa ser olhado de forma mais responsável no Brasil, pois no Rio de Janeiro o panorama já está fora de controle. Traficantes que se converteram em fiéis pentecostais estão expulsando pais e mães de santo de seus terreiros, alguns históricos e tradicionais em suas comunidades. Isso é surreal! Algo precisa ser feito, e nossa HQ é mais um canal para se discutir esse grave problema. Acho que uma operação de inteligência precisa ser realizada entre várias esferas da segurança pública para garantir que fiéis de religiões afro possam professar a sua fé.