Participo de uns seis ou sete grupos de colecionadores de quadrinhos no Facebook e no WhatsApp. Em todos, nas últimas semanas, reinavam a expectativa ("será que já chegou nas bancas de Limeira?", "quando vem para a Bahia?") e o júbilo, ostentado, como é característico de nossa parte, em fotos que mostravam a mais recente aquisição (é assim, enobrecendo, que chamamos uma compra): o volume 1 de John Constantine, Hellblazer: Origens.
Essa imagem era compartilhada tanto por leitores velhos quanto pelos jovenzinhos – gente que nem estava nascida quando quarentões como eu descobriram Constantine e seu universo de magia negra e criaturas do inferno, no final da década de 1980, início dos anos 1990. O personagem criado por Alan Moore _ um mago da vida real – para as páginas do gibi de terror Monstro do Pântano era então um coadjuvante, mas estava destinado a ser protagonista. Sua revista própria, Hellblazer (que pode ser traduzido como "desbravador do inferno"), tornou-se a mais longeva do selo Vertigo, a linha de quadrinhos adultos da editora americana DC, com 300 edições publicadas entre 1988 e 2013, assinadas por roteiristas e artistas de renome, como Garth Ennis, Brian Azzarello, Warren Ellis, Peter Milligan, Sean Phillips, Steve Dillon e Simon Bisley; ganhou em 2005 uma adaptação para o cinema, estrelada por Keanu Reeves e Rachel Weisz; virou um seriado de TV em 2014; integrou, em uma versão mais jovem, a Liga da Justiça Sombria, que gerou um longa-metragem de animação, lançado neste ano; e recentemente voltou a ter HQs próprias – inclusive no atual megaprojeto editorial da DC, o Renascimento.
Esse sucesso já podia ser vislumbrado desde as primeiras aparições de John Constantine – leitores ficaram ávidos por respostas a perguntas que Moore, no Monstro do Pântano, deixara no ar –, e o ingresso na galeria de grandes personagens dos quadrinhos de super-herói começou a ser garantido nas suas primeiras aventuras solo, essas que estão sendo republicadas agora pela editora Panini (preço de capa a R$ 25,90), escritas pelo roteirista inglês Jamie Delano, amigo de Moore e nascido na mesma cidadezinha, Northampton.
Antes de mais nada, vale lembrar que Constantine não é exatamente um super-herói. Gestado em uma época de ousadia e realismo nas HQs do gênero, revelou-se um anti-herói por excelência, arrogante, cínico, egoísta e trapaceiro, um bendito (ou seria maldito?) fruto de seu tempo. Para compreendê-lo melhor, talvez seja preciso conhecer também o contexto histórico – que ajuda até a entender o apelo de seu visual. Alan Moore deu vida a ele para satisfazer um desejo dos artistas de Monstro do Pântano, Stephen Bissette e John Totleben: o de desenhar um personagem inspirado no músico Sting, ex-vocalista e baixista da banda inglesa The Police – que no início dos anos 1980 era uma das maiores do mundo – e que lotava estádios em sua carreira solo (são um pouco anteriores ao surgimento de Constantine hits como If You Love Somebody Set Them Free, Fragile e Englishman in New York).
Atraído o olhar do leitor, era preciso apossar-se de sua alma. Delano foi muito feliz: soube transfigurar os horrores de seu cotidiano em horrores da ficção. Demônios, fantasmas e zumbis conviviam com monstros e pesadelos da vida real, como hooligans (os então violentos torcedores do futebol britânico), yuppies (os jovens ambiciosos que povoavam o mundo corporativo), fanáticos religiosos (igrejas são cenários recorrentes), a política de Margaret Thatcher (primeira-ministra de 1979 a 1990, criticada por medidas que teriam aumentado o desemprego e provocado distúrbios sociais), o avanço da aids (que ainda não havia levado um grande ídolo do país, Freddie Mercury, do Queen), os traumas do Vietnã (não deve ser coincidência que os filmes Platoon, Nascido para Matar, Bom Dia, Vietnã, Nascido em 4 de Julho e Pecados de Guerra sejam contemporâneos do gibi). Pelo prisma da fantasia, o público exorcizava seu mal-estar, experienciava catarses – mas não raro via inocentes pagarem um alto preço, por vezes conduzidos pela mão do próprio Constantine. Sim: eis um cara capaz de mover mundos ocultos para salvar sua sobrinha, mas também capaz de enganar e trair seus amigos e familiares. Não à toa, ele carrega esqueletos em seu armário, que volta e meia o atormentam – ou, no mínimo, o forçam a reagir com falso desdém.
Você pode estar se perguntando agora: se o contexto histórico é tão importante, será que as histórias sobreviveram à passagem do tempo? SIM, respondo com letras maiúsculas, ainda que contaminado pela memória – ter vivido aquele período, ter acompanhado, com a excitação de um adolescente, o nascimento de Constantine influencia meu julgamento, mas também posso dizer que hoje, mais velho, mais maduro, consigo fruir mais da prosa de Jamie Delano e dos dilemas morais que ele propõe, consigo distinguir melhor a mistura de carisma, culpa e canalhice do nosso herói. E é interessante perceber como o roteirista introduziu personagens e elementos definidores da trajetória de Constantine – vide o mistério acerca da terrível encrenca que aconteceu em Newcastle, que vai sendo descascado aos poucos pelo autor.
São muitas as estradas para o inferno, diz o protagonista, e nesse primeiro volume de Origens elas são pavimentadas pelo artista John Ridgway, com seus desenhos algo sujos e sua diagramação arrojada, por vezes estonteante – ainda que aqui e ali possa provocar confusão. O desespero estampado no rosto de seus personagens há de perturbar o sono do leitor. Aquele quadro de Gary Lester coberto por moscas não sai da minha cabeça.
Bem, estou quase terminando o texto de hoje, e é hora de dar um aviso importante: se você deixou-se seduzir pelo charme perverso de Constantine, prepare-se para uma longa e dispendiosa (mas recompensadora) jornada – apenas de Origens, são sete volumes (visualize AQUI o tamanho da empreitada). Como eu disse antes, foram 25 anos de publicação e 300 gibis, sem contar HQs especiais. Praticamente todo o material já saiu no Brasil, a grande maioria em encadernados da editora Panini – que agora, ao relançar a fase de Jamie Delano, infla de esperança colecionadores que ainda não conhecem Hellblazer ou que não puderam comprar algumas edições (e que hoje são disputadas em sites de venda e em grupos de Whats e Face). Torcemos para que tudo seja republicado, incluindo histórias inéditas no país ou nunca antes encadernadas. Caso contrário – desculpem-me as crianças, mas lá vem piada interna –, o pessoal da Panini pode receber um telefonema de Nergal.