Você pode até conhecer uma história como a que é contada em O Matrimônio de Céu & Inferno, mas provavelmente ainda não leu uma HQ brasileira como essa. No entorno de uma trama que adapta a obra do poeta, pintor e tipógrafo inglês William Blake (1757-1827) como romance policial urbano, com quatro personagens que encarnam clichês dos livros, filmes, seriados e gibis do gênero, há um esmerado trabalho de produção e edição. E o leitor gaúcho tem chamariz extra: embora não ambientado por estas plagas, o quadrinho é assinado por uma dupla de Santa Maria e foi lançado por uma editora de Porto Alegre.
Publicado pela AVEC, O Matrimônio de Céu & Inferno é o primeiro romance gráfico escrito por Enéias Tavares, 37 anos, professor de Literatura na UFSM, onde orienta pesquisas sobre os livros iluminados (misto de poema e imagem, com uma tecnologia própria) que Blake produziu na Inglaterra do final do século 18 e sobre literatura fantástica brasileira. É também um entusiasta do steampunk, vertente literária que introduz em um passado vitoriano modernidades tecnológicas (computadores de madeira, por exemplo) e pela qual escreveu A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison e Guanabara Real – A Alcova da Morte (este em parceria com A Z Cordenonsi e Nikelen Witter). Para desenhar a HQ, Enéias chamou o amigo Fred Rubim, 38 anos, parceiro na webcomic A Todo Vapor! e artista dos gibis das séries Cão Negro e Le Chevalier.
— Blake é um homem romântico com múltiplas habilidades, poeta, pintor, gravurista e visionário, que produziu uma obra enigmática e hipnótica, a ponto de mais de 200 anos ainda estar sendo lido, estudado e recriado em mídias como cinema, música, literatura e quadrinhos — analisa Enéias, para quem a obra do inglês permanece atual: — Ele cantou em seus poemas iluminados uma crítica à religião e ao Estado opressores, e ao mesmo tempo valorizou o corpo e os sentidos. Por isso, seu mantra era "abrir as portas da percepção". A meu ver, esses temas são mais do que atuais: continuam necessários.
Para deixar ainda mais contemporâneo, Enéias e Fred estabeleceram a São Paulo dos dias de hoje como o cenário onde se cruzam os caminhos de quatro protagonistas decalcados da cultura pop. Amarante é um assassino profissional, um tipo que parece saído dos filmes de Quentin Tarantino e Guy Ritchie. Veronica é uma prostituta argentina que alimenta o plano de mudar de vida. O Maestro Santos é o líder de uma igreja, a Orquestra Divina, um homem que prega uma coisa e pratica outra, plena de dinheiro, sexo e entorpecentes. Dani é uma artista que, para sobreviver, vende todo tipo de narcótico – ou seja, se não for pela arte, que a droga sublime os demônios interiores.
— O risco de produzirmos "apenas" uma adaptação de O Matrimônio de Céu & Inferno seria resultar numa obra legível somente para leitores já iniciados nos livros iluminados de Blake. Atualizá-lo, como Anne Rice, Alan Moore e Bruce Dickinson (da banda Iron Maiden), para citar três exemplos, nos pareceu o mais apropriado — justifica o roteirista.
— O visual dos quatro personagens foi bastante inspirado em filmes como Pulp Fiction, Cães de Aluguel e Trainspotting — complementa o artista Fred Rubim. — As cores têm um papel muito importante, pois elas marcam também a identidade de cada personagem e acentuam certos estados emocionais. A HQ começa com essas separações bem nítidas, e as paletas vão se mesclando conforme o roteiro vai adquirindo um ritmo mais intenso.
Se o desenvolvimento e o desfecho da trama são previsíveis, com alguma inverosimilhança aqui e ali (como uma decisão tomada por Amarante em meio a uma chacina), é preciso reconhecer a engenhosidade do texto de Enéias, que investe em paralelismos e contrastes, e a criativa arquitetura de Fred, que nunca deixa nosso olhar se acomodar.
Além desses atrativos, há o capricho da edição em si. Desde o acabamento gráfico (que inclui capa dura e sobrecapa) à fortuna crítica que abre e fecha o livro – destaque para o fascinante artigo do português Manuel Portela, professor de Letras na Universidade de Coimbra, sobre as engrenagens narrativas da adaptação. Nos extras, Enéias dá o mapa da mina para os caçadores de referências. Uma a uma, página por página, ele revela ou esmiúça as homenagens a Blake e à obra original e as citações à recepção cultural que o artista multimídia dos séculos 18 e 19 obteve nos séculos 20 e 21, de gibis a discos, de filmes a seriados.
3 perguntas para Enéias Tavares, roteirista da HQ
Os quatro personagens remetem a tipos que já vimos em outros gibis (como os de Brian Azzarello, por exemplo), filmes (como os de Tarantino), romances policiais e seriados. Isso não pode dar uma sensação de déjà vu ao leitor?
Sim, e achamos isso bom. Já no roteiro, parti de alguns estereótipos bem comuns – o matador de aluguel, a acompanhante de luxo, o líder espiritual corrupto, a artista problemática – para dialogar com esses mesmos temas em Blake: Violência, Sexo, Corrupção e Arte. Mas, a partir desses modelos primários, fomos deixando esses personagens mais complexos e tridimensionais, dando-lhes gostos, passados e sensibilidades, além de modos de falar bem próprios, algo que trabalhei muito nos diálogos.
Há uma grande quantidade de referências, visuais e textuais, na HQ, e todas foram citadas e explicadas ao final do livro. Por um lado, isso denota a extensão e a perenidade da influência de Blake. Por outro, também mostra como o trabalho de vocês foi meticulosamente planejado. O que é curioso, quase paradoxal, em uma obra que lida tanto com paixão, sangue, ímpeto. Gostaria que você falasse sobre esse processo e sobre o cuidado para não deixar que a reverência dominasse a criatividade.
Pergunta difícil, pois arte é união de energias apolíneas e racionais com ímpetos dionisíacos e sensoriais. Blake é um "control freak" por excelência, criando uma técnica insana com chapas de cobre, ácido, tintas e aquarela... para produzir uma obra sobre imaginação e liberdade! Acho que o rigor com as referências e com a matemática da própria narrativa dialoga com isso, mas nunca perdendo de vista o principal: uma história divertida com dimensões mais profundas, dependendo do interesse do leitor.
Seus personagens buscam algum tipo de redenção. Você acredita nisso?
Certamente. Não mais na redenção religiosa, confesso, mas certamente na redenção através da arte, da alteridade e do desejo, pedras de toque de toda a produção de Blake e temas que tentamos inscrever com palavras e imagens em cada página do nosso quadrinho.
2 perguntas para Fred Rubim, artista da HQ
Você variou bastante a diagramação das páginas, às vezes multiplicando os quadros, em outras verticalizando a ação, trabalhando com formas geométricas menos usuais, trazendo ao primeiríssimo plano um personagem, e por aí vai. Foi seu quadrinho mais planejado? Ou essas mudanças vinham "no improviso"? Quanto tempo levou a produção?
A produção das páginas levou cerca de 12 meses. É difícil dizer o que foi planejado e o que veio no improviso, acho que um pouco dos dois. Algumas ideias já vieram do próprio Enéias, como a disposição das splash pages (os quadros de página inteira) e as sequências dedicadas ao Blake. A ideia era mudar a diagramação sempre que queríamos tirar o leitor da zona de conforto.
Qual foi o grande legado de Blake?
São vários os reflexos no campo do audiovisual e da cultura pop, mas eu gosto de ressaltar a importância dele enquanto artista independente. Ignorado pelas editoras, Blake foi adiante e elaborou seu próprio método de impressão infernal, que a despeito de todo o cenário adverso, permitiu que seu legado perdurasse até os dias atuais.
1 pergunta para Artur Vecchi, editor da HQ
O catálogo de quadrinhos da AVEC é bastante diversificado, tanto em gênero quanto em formato. Tem livro existencial brasileiro, tem tiras de humor infantojuvenil, tem álbuns de aventura e terror europeus, tem steampunk... E agora surge uma adaptação de William Blake para a selva urbana de São Paulo. A editora tem uma "cara"?
A AVEC iniciou suas atividades em 2014 sendo uma editora para apoiar a literatura fantástica e os quadrinhos, logo, a grande maioria dos nossos 53 títulos tem a pegada de aventura, terror, fantasia e ficção cientifica. Em 2019, iniciamos a publicação de histórias policiais, que já tangenciávamos dentro dos outros gêneros. Algo que vem acontecendo fortemente é a nossa vocação para lançar autores nacionais. Dos 11 títulos de quadrinhos de 2018, 10 eram nacionais.