Existe uma dupla singularidade no lançamento da HQ Alvar Mayor. No primeiro plano, trata-se de um raro título produzido e ambientado na América do Sul hispânica a disputar espaço em um mercado dominado por gibis norte-americanos, japoneses e, em menor escala, brasileiros e europeus. Criada em 1976 pelos argentinos Carlos Trillo (roteiro) e Enrique Breccia (arte), a série se passa no Peru e na Floresta Amazônica do século 16. Seu protagonista homônimo é um guia mestiço, filho de mãe indígena e de um cartógrafo de Francisco Pizarro (1476-1541), espanhol que arrasou o império dos incas.
O livro compila, ao longo de 224 páginas, as 18 primeiras aventuras de Alvar Mayor, muitas delas inéditas no Brasil, que só conhecia o personagem graças a esparsas histórias publicadas em revistas da década de 1980 como Skorpio e Aventura e Ficção. Em boa parte delas, o herói tem a companhia do índio Tihuo, mais do que apenas um fiel escudeiro. As tramas seguem uma estrutura semelhante, mas não por isso desinteressante: por meio de seu protagonista, Trillo (morto em 2011, aos 68 anos) e Breccia (filho do grande desenhista Alberto Breccia) exercem uma espécie de mea culpa do homem branco, fazendo um pouco de justiça a malfeitores travestidos de nobres ou governantes.
Em A Lenda do Eldorado, por exemplo, Alvar e Tihuo aceitam conduzir um conde ao mítico local que abrigaria ouro e joias – somente para, no final, levar a cabo uma vingança. Em A Cidade dos Incas, a dupla, a mando de um cruel corregedor, empreende uma viagem à procura da árvore que seria capaz de curar a sífilis – a missão se revela uma emboscada.
Mais tarde, o personagem começa a lidar com magia, delírios e profecias, em um cruzamento – ora fascinante, ora repetitivo ou mesmo confuso – de reconstituição histórica com o realismo mágico e o fatalismo característicos da literatura latino-americana.
— Alvar Mayor tem sua qualidade reconhecida na Europa. Foi publicado e republicado na Espanha, na Itália e em outros países — conta Maria Gelci Lorentz, diretora da Lorentz, editora gaúcha com sede em Santa Maria. — Nenhuma outra obra retrata tão bem o período da colonização da América do Sul.
Em um mercado editorial amplamente concentrado em São Paulo, a localização geográfica da editora corresponde à segunda singularidade de Alvar Mayor. Os santa-marienses chegaram a lançar, em 2017, três gibis estrelados por Dylan Dog, o Detetive do Pesadelo, um dos personagens mais populares da editora italiana Sergio Bonelli (a mesma de Tex). Agora, retomam os trabalhos com a criação argentina, que teve mais de 50 HQs publicadas entre 1976/1977 e 1983 – e que contribuiu para Trillo fazer carreira na Europa, onde ganhou prêmios no Festival de Lucca (Itália), em 1978, e no Festival de Angoulême (França), em 1999). Breccia, um mestre no preto e branco – sobretudo no uso da ausência da cor: seus espaços vazios exalam poesia ou tensão –, já desenhou para as gigantes americanas Marvel e DC (entre 2005 e 2007, por exemplo, foi o artista do Monstro do Pântano).
Vendedora autônoma aposentada, Maria Gelci reconhece que sua editora não tem como competir de igual para igual. A tiragem é limitada e, no cotejo com obras de formato similar, o preço está bem mais em conta – custa R$ 54,50, enquanto encadernados de capa dura com o mesmo volume de páginas não costumam sair por menos de R$ 90 ou R$ 100.
— A dificuldade maior é a divulgação. Muitos sites são focados no material de DC e Marvel — queixa-se.
Por enquanto, a Lorentz só vai investir em Alvar Mayor. Um segundo volume já está planejado para o final de 2020.
— Se as vendas forem boas, poderemos antecipar. Estamos pensando em outras HQs americanas e europeias, mas aguardamos a receptividade de Alvar Mayor. Temos conquistado leitores que nunca tinham ouvido falar desse personagem que, em uma comparação simplista, é um Indiana Jones cruzando a América em busca do Eldorado, do ouro dos incas, do elixir da longa vida, da árvore das folhas milagrosas... Muitos dizem que é uma das melhores leituras de 2019 — comemora Maria Gelci, que trabalha praticamente sozinha, contando com a ajuda voluntária do filho e contratando freelancers.
Nessa condição, por que se aventurar no mercado editorial?
— Por que existem muitas HQs excelentes que caíram no ostracismo ou foram subestimadas pelas grandes editoras brasileiras, como Alvar Mayor. Somos leitores de bons quadrinhos e isso é o que nos motiva: trazer ótimas obras pelas quais ninguém mais se interessa.