Eu Matei Adolf Hitler é um título sensacionalista para uma obra de tom intimista. Não chega a ser mentiroso: estamos diante de um protagonista que recebe a incumbência de viajar em uma máquina do tempo para assassinar o genocida nazista antes que ele dê início à Segunda Guerra Mundial e ao Holocausto do povo judeu. Mas a HQ que está sendo publicada no Brasil pela editora Mino é muito mais uma história sobre relacionamentos contemporâneos e seus impasses do que um thriller de ficção científica embebido em perfume de escândalo. Se você só puder comprar 10 gibis em 2019, que este seja um deles.
Vencedor do prêmio Eisner de melhor edição norte-americana para um gibi estrangeiro, este é o segundo livro de Jason lançado no Brasil. O primeiro, Sshhhh! (2017), também da Mino, apresentou ao público do país a fauna e a gramática de John Arne Sæterøy, nome verdadeiro do quadrinista norueguês que completa 54 anos no próximo dia 16 e que, depois de morar na Dinamarca, na Bélgica e nos Estados Unidos, desde 2007 vive em Montpellier, na França. Sem usar uma palavra sequer e apostando na simplicidade do desenho, Jason encena em Sshhhh! uma tragicomédia arrebatadora. O personagem principal, um corvo antropomorfizado, vive uma odisseia silenciosa ao tentar aplacar sua solidão. Poesia, humor, delírio, terror e surrealismo se combinam ao longo de 10 capítulos (que também funcionam isoladamente) em que transparecem o poder de síntese do artista e seu olhar ora doce, ora melancólico sobre a vida.
Jason retrata, em seus bichos vestidos, o mais nobre e o mais torpe do comportamento humano. Estão lá a esperança, a inveja, o amor, a agressividade, a paternidade, o desprezo... Honrando a tradição escandinava de apontar o dedo para a sociedade, sem piedade alguma, Sshhhh! mostra, em um dos episódios mais geniais, o processo de anulamento do indivíduo – que só volta a ser visível no momento em que comete um crime (diga-se de passagem, situação comum aqui no Brasil).
Em Eu Matei Adolf Hitler, Jason acrescenta palavras à sua radiografia dos sentimentos, tão ambiciosa quanto econômica: novamente, o autor trafega por diferentes gêneros, misturando crítica social com drama psicológico, ao mesmo tempo em que investe no minimalismo – o livro é curtinho, cada página obedece a uma divisão em oito quadros (com duas únicas e significativas exceções), e os desenhos e diálogos são milimetricamente escolhidos. Não há detalhismo (a máquina do tempo, por exemplo, consiste apenas em uma estrutura esférica dotada de uma cadeira e um botão) nem distrações.
Na trama, matador de aluguel virou uma profissão corriqueira, um dentista que extrai os problemas com os quais não conseguimos lidar: o vizinho que põe a música no volume máximo de noite, o chefe que prometeu um aumento e que acabou promovendo o colega, a esposa que não nos ama mais, os irmãos, os filhos. Jason parece ter antecipado em uma década – o gibi é de 2006 – um mal bastante atual e potencializado pela urgência de felicidade provocada por redes sociais como Facebook e Instagram: nossa inaptidão à frustração e nossa cultura do imediatismo, temperadas com uma certa frieza que o distanciamento virtual proporciona. É um paradoxo muito bem observado pelo autor: valorizamos o que sentimos, mas nem tanto o que os outros sentem. Só temos empatia por nós mesmos.
O protagonista da história é um desses assassinos, em crise com a namorada. Quando é contratado para ir à Alemanha de 1938 e matar Hitler, algo dá errado – algo dá duas vezes errado, algo dá muito errado. A vida é assim, né? – Jason parece nos dizer –, cheia de imprevistos. Ao retornar, o matador está 50 anos mais velho e sua namorada, ainda jovem, está envolvida com outro rapaz. Pode-se encarar como uma metáfora: como envelhecemos quando nos afastamos da arduidade do amor.
Outra tragicomédia repleta de nuances e ressonâncias, de desencanto e de ternura, Eu Matei Adolf Hitler usa a aparente segurança do absurdo para refletir verdades incômodas. A certa altura, uma personagem diz:
— Hitler sumiu em 1938. A Segunda Guerra nunca aconteceu. O mundo não deveria ser um lugar melhor?
A pergunta fica sem resposta. Porque é, no fundo, endereçada ao leitor. Os monstros não habitam fora de nós. Um indivíduo nunca carrega sozinho a culpa pelas dores do mundo. Será que o curso natural do homem é o da violência? Quanto do nosso precioso tempo gastamos com a raiva? Temos as habilidades da tolerância, do diálogo e, quem sabe, do perdão?