Aos 30 anos, Camilo Solano já pode olhar para trás e se orgulhar de passos largos em sua carreira. Sua HQ de estreia, a independente Inspiração – Deixa Entrar Sol nesse Porão, de junho de 2013, recebeu duas indicações ao Troféu HQMix, o mais tradicional do país. Voltou a concorrer ao prêmio com Captar (2014), díptico produzido em parceria com Thobias Daneluz. Em 2015, o roteirista e desenhista paulista lançou Desengano, que tinha como invejável cartão de visitas um prefácio assinado por Robert Crumb, mestre dos quadrinhos underground – "Esse garoto está no caminho certo", escreveu o americano de 75 anos. Semilunar (2017), primeira obra sua por uma editora, a Balão Editorial, foi finalista do Jabuti, a mais importante premiação literária nacional.
Agora, Camilo está lançando O Fio do Vento pela Veneta, a mesma casa que publica dois autores brasileiros renomados no Exterior – Marcello Quintanilha, premiado no Festival de Angoulême por Tungstênio, e Marcelo D'Salete, vencedor de um Eisner por Cumbe.
Nascido em São Manuel, cidade paulista com 42 mil habitantes, o quadrinista tem um carinho para com cenas e personagens interioranos. Investe de doçura, melancolia e musicalidade suas histórias, em que os protagonistas vivem conflitos identitários. Há fissuras ou perdas nas relações familiares, um desconforto por não atenderem a idealizações (em Semilunar, por exemplo, Maria é a filha gaga de uma cantora), o que torna a introspecção uma aliada para eles e uma arma narrativa para o autor.
Neste novo salto, Camilo assume riscos. Para começar, abriu mão do narrador e mesmo de um protagonista. Fez uma história que trafega por gêneros (vai e volta da comédia ao drama, flertando com o suspense) e cenários, e que é até difícil de resumir, dados os desvios de rota. Ele dá partida a O Fio do Vento em uma estação de rádio, onde um locutor se prepara para uma missão quixotesca: transmitir o desfile de avião da Esquadrilha da Fumaça. Por meio dele, o quadrinista verbaliza tanto a nostalgia que impregna suas HQs como as inquietações típicas de seus personagens – e que poderiam refletir as angústias de um jovem artista incensado: "Tem horas que a gente se sente meio impostor", diz o radialista. "A sensação de não estar nem perto de onde os grandes estão, sabe?"
Desse episódio, a história pula para uma sequência em um bar, onde somos apresentados aos músicos de uma banda e a Adelson, o Lábios de Mel, um craque do assobio. A partir daí, o gibi toma rumos inesperados, não raro inexplicados. O locutor radiofônico some, e, do nada, presenciamos um monólogo interior do Lábios de Mel – mas que dura apenas uma página. Na seguinte, estamos em uma cidadezinha do interior, na companhia do pai do assobiador. Mais para frente, surgirá um excêntrico pintor envolvido com filmes pornográficos.
Uma coisa não se pode negar: a HQ cumpriu o objetivo declarado do autor, de fazer uma história que andasse ao sabor do vento (leia mais na entrevista abaixo). A paisagem, por onde circula uma fauna algo grotesca, com rostos redondos ou narizes enormes e pontudos, também é inconstante: ora Camilo aposta em um traço mais pesado (realçado pela ausência de cor) para retratar um achaque policial, ora nos surpreende com a leveza de uma folha flutuante. É uma jornada tortuosa e meio frustrante até Camilo retomar seu tema das relações familiares agridoces no belíssimo epílogo, que deixa a sensação de que um pouco mais de norte não faria mal.
"Quis fazer um caminho narrativo que quebrasse a expectativa e tomasse outro rumo"
Por e-mail, Camilo Solano concedeu a seguinte entrevista a GaúchaZH:
Qual foi a inspiração para escrever e desenhar O Fio do Vento?
O Fio do Vento foi uma história que nasceu primeiramente do conceito de ser um tipo de história que caminhasse de acordo com o vento, portanto sem uma direção certa e imprevisível. Era o exercício de fazer um caminho narrativo que quebrasse a expectativa e que tomasse outro rumo, mas que, no final, esse caminho encontra sua direção, pois algum sentido teria que ter a história. Junto disso, eu queria contar uma história de assobio, que é um fio de vento aparentemente controlado.
Em um vídeo no YouTube, você conta que o título do quadrinho tem a ver com a sua proposta narrativa neste livro: deixar que a história siga seu próprio caminho, pulando de um núcleo ao outro sem muitos rodeios. Pode contar sobre como foi o processo criativo? Você sabia aonde a história iria dar ou foi criando também ao sabor do vento (aliás, um dos personagens diz à certa altura: "Tento levar minha arte para onde ela quiser ir")?
O processo foi juntar algumas ideias e histórias que queria contar e procurar fazer uma relação entre elas. Que acabaram sendo relações de amizade e relação de pais e filhos. Costurar esses núcleos foi muito prazeroso. A sensação de quebrar completamente um núcleo que tem uma parte expressiva no início do livro, e no final eles praticamente não existirem mais, foi algo que me deu muito prazer em desenvolver. Mas, sim, eu sempre gosto de saber como a história vai terminar, pois acho que pode ficar perigoso ir escrevendo apenas por escrever, porque talvez no final a gente dê um forçada para linkar os acontecimentos e corremos o risco de ficar forçado. Essa fala que você comentou é mais a intenção que tenho em levar a arte para onde ela quiser ir e não ficar apenas na bolha dos quadrinhos, ou na bolha nerd, ou qualquer bolha.
Você costuma trazer a musicalidade para suas HQs. Em Semilunar, por exemplo, a protagonista é a filha, gaga, de uma cantora. Em Desengano, o samba tem um papel. Agora, um dos personagens principais é um craque do assobio. Qual é a relação que você faz entre as duas artes, aparentemente distantes? Onde uma pode alimentar a outra?
A relação é tentar fazer essas artes conversarem quando possível, mas não é algo que faço com tanta intenção. A música e o desenho são coisas extremamente presente na minha vida desde sempre. Meu pai é músico e minha mãe canta. Meu tio tinha um conjunto que fazia esses bailes pelo interior de São Paulo quando jovem. Meu irmão é um músico de mão cheia, minha namorada toca violino e flauta. Então, a música está muito presente o tempo todo. E os quadrinhos e o desenho são parte de mim. Hahaha. É isso. Sinto que, sem desenhar, não estou completo.
Seu traço, em O Fio do Vento, está mais pesado, carregado, não? E inexiste a cor, tão importante em Desengano e Semilunar. Por que fez essas opções?
Quanto ao meu traço, estou a cada livro procurando melhorar 100 vezes mais do que o anterior. Tenho compulsão por desenhar e estudar desenho, então acho que isso fica evidenciado a cada trabalho. Não só melhorar no desenho, como na escrita também. O preto e branco foi uma sugestão editorial do Rogério de Campos e eu concordei na hora, pois é a escola de desenho que mais me agrada. O poder do PB e o quanto ele se preserva no tempo é bem diferente dos trabalhos em cores. Embora eu adore colocar cores também.
A melancolia, temperada com uma doçura e algum humor, é a marca de seus trabalhos. Por quê?
Curioso você comentar sobre a melancolia misturada com humor. Eu acho que acaba refletindo muito como sou, então. De início, eu achava que meu trabalho iria mais para o humor apenas. Mas já no meu primeiro quadrinho, Inspiração, me surgiram questões mais existenciais e melancólicas que eu precisava colocar. Meu trabalho tem encontrado esse caminho meio que naturalmente. Mas não tenho a preocupação nem intenção de comover ou algo assim. Apenas de expressar e contar histórias. Às vezes mais melancólicas, às vezes mais bem humoradas. A vida é assim.
Sua carreira vem num crescendo e tanto. Começou com duas HQs independentes indicadas ao Troféu HQMix, o mestre Robert Crumb assinou o prefácio de Desengano, depois Semilunar concorreu ao prêmio Jabuti e agora está lançando O Fio do Vento pela Veneta, a mesma editora de dois autores renomados internacionalmente, Marcello Quintanilha e Marcelo D'Salete. Aos 30 anos, como você vê sua trajetória? E aonde você quer chegar?
Obrigado, antes de mais nada. Hoje, vejo minha trajetória como um caminho de muito trabalho. E foram a minha inquietação e a minha persistência que me trouxeram até esse momento. Sou muito feliz e grato a Deus por ter a oportunidade de produzir quadrinhos no Brasil. Tenho a ambição de poder cada vez ter mais condições plenas de continuar contando as histórias em forma de quadrinhos. É bom saber que nunca foi fácil e que as coisas não aconteceram de repente. A jornada é enorme, mas a paixão por produzir é maior.