Por onde quer que se olhe, 2019 está sendo, no Brasil, o ano dos quadrinhos produzidos por mulheres. Quantitativamente, já chegamos a pelo menos 30 títulos, entre livros e encadernados (sem considerar edições independentes). É um feito em um mercado tradicionalmente masculino, tanto na criação quanto na representatividade – vá até a banca de revista mais próxima e conte os gibis de herói estrelados por personagens femininas: as HQs protagonizadas por homens são o triplo.
— Não sei quanto o mercado está abrindo os olhos. Acredito mais é que nós estamos chutando a porta. Está cada vez mais difícil ignorar nosso trabalho — afirma Janaina de Luna, comandante da Mino, editora que está lançando uma trilogia produzida por três jovens quadrinistas brasileiras, Tabu (leia mais ao longo desta reportagem).
Qualitativamente, 2019 trouxe ao país Minha Coisa Favorita É Monstro, obra da americana Emil Ferris que ganhou três prêmios Eisner e os festivais de Lucca, na Itália, e Angoulême, na França; foi o ano em que o principal troféu nacional, o HQMix, destacou Jéssica Groke (Me Leve Quando Sair) e Melissa Garabeli (Saudade) como novos talentos do roteiro e do desenho, além de laurear a antologia Gibi de Menininha – Historietas de Putaria e Terror como melhor publicação mix; também recebemos, recentemente, o delicado Aquele Verão, obra sobre uma garota no fim da infância que valeu às primas Jillian e Mariko Tamaki o Eisner de graphic novel inédita em 2015; e em novembro chegará Spinning, as memórias da adolescência de Tillie Walden, outra vencedora do Eisner (na categoria obra baseada na realidade, em 2018).
— Acho que 2019 tem sido uma grata surpresa, mas ao mesmo tempo vem aquele sentimento de "já estava na hora". Não é de hoje que mulheres produzem quadrinhos. Um dos nomes que podem provar isso é Trina Robbins (americana de 81 anos, pioneira das HQs feministas e a primeira desenhista da Mulher-Maravilha, em, pasme, 1986, quatro décadas após o surgimento da personagem) — comenta a historiadora Laluña Machado, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Sonia Luyten – Gibiteca de Santos (SP), membro do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e editora do site Minas Nerds. — Mas engana-se quem pensa que isso é o suficiente ou até se coloca em peso de igualdade com as produções que são distribuídas por homens. Existe a necessidade de mais evolução. Não só em relação a oportunidades para roteiristas, artistas ou editoras, mas também quanto à forma como a mulher é tratada dentro das histórias.
Laluña refere-se a um problema antigo, visto em especial nas HQs de ação (tanto faz se forem de super-heróis americanos ou europeias, brasileiras ou japonesas): o papel subalterno e, geralmente, sexualizado destinado às personagens femininas.
— As grandes editoras ainda precisam aprender muitas coisas em relação a representatividade, ou pelo menos parar de reproduzir senso comum, como uma heroína poderosa ficar louca (Jean Grey, dos X-Men, é o maior exemplo), e sexualização desnecessária. Mas os passos estão sendo dados, devagar, mas estão — afirma Laluña. — A publicação de Tina: Respeito, com roteiro e arte de Fefê Torquato, nos faz entender que dá, sim, para contar uma boa história sem os elementos elencados anteriormente. E é bacana ver o maior estúdio da América Latina (o de Mauricio de Sousa) fazendo o grande público entender que o consumo de quadrinhos tem de ser educado também (leia uma pequena entrevista com Laluña ao final deste texto).
A HQ citada foi um dos fatos inéditos desta temporada. A coleção Graphic MSP, que apresenta a Turma da Mônica em um contexto mais maduro, promoveu a estreia da principal personagem jovem de Mauricio de Sousa. Em Respeito, Tina precisa lidar com o assédio no ambiente de trabalho.
Até no território masculino dos super-heróis houve o que celebrar. Por exemplo, finalmente ganhou edição no Brasil a premiada Mulher-Maravilha: A Verdadeira Amazona (2016), escrita e pintada por Jill Thompson, e, na esteira do filme, a Capitã Marvel estrelou três encadernados, todos de autoria feminina.
Teve mais: a editora Pipoca e Nanquim, uma das mais prestigiadas desde seu surgimento, em 2017, publicou, depois de 23 títulos, seu primeiro quadrinho com roteiro assinado por uma mulher, Jane, uma versão contemporânea de Aline Brosh McKenna (com desenhos de Ramon K. Perez) para o romance Jane Eyre, de Charlotte Brontë. E não parou nisso: logo vieram Luz que Fenece, da italiana Barbara Baldi, e O Último Voo das Borboletas, da japonesa Kan Takahama, e em novembro sai Sob o Solo, nova parceria do casal Bianca Pinheiro e Greg Stella. Isso foi coincidência ou a editora entende que há uma produção e um público consumidor que não vinham sendo representados?
— Foi apenas uma coincidência — responde Bruno Zago, um dos três sócios da Pipoca & Nanquim. — Nosso objetivo é publicar bons quadrinhos, de diversas localidades do mundo e que abordem os mais variados temas e estilos. Essas autoras entraram no catálogo por conta da qualidade indubitável de suas obras, e não para suprir uma suposta lacuna do mercado.
As mulheres proporcionaram, de fato, uma volta ao mundo pelos quadrinhos – da chilena Catalina Bu, de Diário de um Só, à chinesa Zao Dao, da qual a editora gaúcha Figura lançará em breve A Balada de Sylvan – e ofertaram discussões sobre empatia, inclusão e empoderamento: a americana Cece Bell falou sobre os desafios de ser uma criança com problemas auditivos no autobiográfico A Surda Absurda, e a francesa Navie, em parceria com a artista Audrey Laine, retratou o drama da obesidade mórbida em Duplo Eu. Este último faz parte do catálogo da Nemo, editora com um olhar atento à produção feminina: em um cálculo não muito preciso, de 2015 para cá, um terço das obras foi escrito por mulheres.
— Não foi algo pensado para se tornar uma "bandeira", mas acabou se tornando um foco da editora de forma natural — comenta Carol Christo, editora assistente. — Quando cheguei na Nemo, em 2013, o catálogo continha Snoopy e clássicos europeus, em sua maioria. Mas eu percebia uma produção crescente por parte das mulheres, não só lá fora como aqui no Brasil, algo que também saltava aos olhos do diretor executivo do selo, Arnaud Vin, que havia selecionado grandes quadrinistas europeias, atuais, com uma pegada mais pop. E assim aconteceu. Resolvemos correr atrás de conhecer essas artistas e trouxemos nomes maravilhosos, como Margaux Motin, Una, Penélope Bagieu e Bianca Pinheiro. As mulheres são grandes produtoras e consumidoras de quadrinhos, acho que o mercado brasileiro apenas não se dava conta disso na época. 2019 está sendo o ápice de uma espécie de "evolução". As mulheres vêm conquistando o seu espaço. É algo que está acontecendo em todas as áreas (ufa!).
Agora, a editora Mino publica uma obra que, desde o título, parece sintetizar e coroar o ano do quadrinho feminino no Brasil. Tabu reúne três volumes independentes, mas que não são vendidos separadamente (120 páginas no total, R$ 59,90). Foram escritos e desenhados por três autoras ainda novas na cena – Amanda Miranda, Jéssica Groke e Lalo –, com edição de Janaina de Luna (que responde a duas perguntas mais abaixo) e diagramação de Marina de Campos (o único homem envolvido foi o revisor Audaci Júnior).
Cada gibi da trilogia aborda um assunto tabu. Parte do encantamento de quem lê está em não saber muito sobre o que lhe aguarda, descobrir, aos poucos ou aos choques, os temas e as situações.
Mas pode-se dizer que Cina, da Lalo, traz reflexões existenciais capazes de mudar a perspectiva sobre uma solução desesperada. Que Piracema, da Jéssica Groke, traz ondas de nostalgia e de poesia silenciosa ao abordar uma lacuna na educação comportamental de crianças, sobretudo de meninas. E que Juízo, da Amanda Miranda, traz cenas que traduzem os segredos e as mentiras impostos pela sociedade a mulheres que ousam "contrariar a ordem natural das coisas", como muitos veem a questão.
Cada autora tem sua prosa e sua arte (sempre no preto e branco, que realça a carga dramática), ora concisas, ora elípticas, ora simbolistas, ora explícitas. As três nos obrigam a esquecer as narrativas diretas e coloridas com as quais estamos acostumados. É preciso ler nas entrelinhas, casar por conta própria desenho e palavra, adivinhar significados, sentir e absorver – ou então rejeitar, que seja: Lalo, Jéssica e Amanda não vieram para necessariamente agradar. Suas obras estão aí para provocar, tirar véus, nos sacudir da pasmaceira em que confortavelmente nos instalamos. Convidam para que a gente levante a mão se tiver uma pergunta, sugerem que pode ser a hora daquela conversa difícil, indicam o caminho do conhecimento, do diálogo, da compreensão. Para que haja menos sofrimento e menos abuso, certos assuntos precisam deixar de ser tabus.
"Falta oportunidade para as mulheres mostrarem do que são capazes"
A historiadora Laluña Machado, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Sonia Luyten – Gibiteca de Santos (SP), membro do Observatório de Quadrinhos da ECA/USP e editora do site Minas Nerds, responde a duas perguntas:
Existem diferenças entre quadrinhos produzidos por mulheres e quadrinhos produzidos por homens? Há uma sensibilidade distinta, temáticas características, estilos próprios?
Isso é um mito recorrente e é algo que eu escuto demais acompanhado de frases como "No dia em que mulheres desenharem que nem os homens, terão seus lugares" ou "Mulher só consegue fazer quadrinhos femininos, sensíveis, sobre seu cotidiano". Ora, se formos por esse raciocínio, podemos dizer que Adriana Melo, artista que participou de uma antologia premiada com o Eisner (Puerto Rico Strong), não desenha, ou que Marcello Quintanilha (quadrinista) é uma mulher. Não há diferenças de gênero em relação aos trabalhos dos homens, o que há é falta de oportunidade para essas moças mostrarem do que são capazes de produzir e as que tiveram seus trabalhos publicados continuarem fazendo isso.
Você pode falar um pouco sobre o livro Mulheres & Quadrinhos, que será lançado pela Skript Editora (e que já está em pré-venda)?
É uma produção de mais de 500 páginas e reúne o trabalho de 120 mulheres que são envolvidas com alguma área das histórias em quadrinhos. Eu e a pesquisadora Dani Marino conseguimos reunir quadrinistas, roteiristas, editoras, reticulistas, letristas, pesquisadoras, ilustradoras e tradutoras em uma obra que preza pela diversidade de traços, estilos, mulheres de todos os tipos e regiões do país. Além disso, procuramos dar espaço para as moças que nunca tinham tido nada publicado e as colocamos ao lado de nomes como Helô D'ângelo, Marina Sousa, Lu Caffaggi, Cris Eiko, Carol Pimentel, Lilia Mitsunaga, Verônica Berta, Alice Monstrinho, Dandara Palankof e Sonia Luyten. O livro contará com entrevistas, artigos acadêmicos, tiras, quadrinhos, ilustrações e depoimentos que foram distribuídos de forma leve e prática para o leitor. Uma obra para mostrar que existe quadrinho sendo feito por mulheres no Brasil e para que não só mulheres se vejam nas produções ali reunidas, mas que todos possam apreciar e respeitar ainda mais o trabalho dessas moças.
"O mercado de quadrinhos é extremamente machista e misógino"
Janaina de Luna, editora da Mino, fala sobre a trilogia Tabu e sobre o público brasileiro de HQs:
O que motivou o projeto Tabu, em que três autoras escrevem e desenham sobre temas que costumam ser ignorados ou temidos pela sociedade?
Tabu é um projeto antigo meu. Eu comecei a procurar nomes em 2015. A Mino é um editora de grandes autores e uma distribuição ampla, o que nos obriga a tiragens razoáveis de mínimo 2 mil, 2,5 mil cópias. Isso é bom, mas nos afasta de autores que estão começando. E eu via uma força incrível surgindo do quadrinho autoral nacional. A galera mais nova tá matando a pau. Tabu veio da vontade de participar dessa força criadora. Não era para ser composto apenas por mulheres. O chamamento não tinha recorte de gênero. Até teve um homem selecionado, mas ele não aguentou o rojão. A proposta sempre foi de encarar de forma profunda e não óbvia ou didática temas difíceis.
Você é uma editora em um mercado que, muito por conta da ocupação massiva pelos super-heróis, é percebido como machista e misógino. Estamos mudando ou ainda vai levar um bom tempo até que garotas e mulheres sejam melhor representadas nos quadrinhos e mais respeitadas como leitoras?
Nosso mercado não é percebido como machista ou misógino. Ele é extremamente machista e misógino. Em parte por conta do machismo inerente à toda a sociedade. Mas no nosso meio ainda existe agravantes. Antes do Comics Code Authority (um mecanismo de autocensura criado pelas editoras americanas em 1954), havia uma pluralidade de temas e de produção, que, sim, era machista e tal, afinal estamos falando de 1940, 1950. Porém, com o código, bancado por interesses econômicos, a produção de quadrinho de massa foi praticamente reduzida aos gibis de super-herói. Todo o resto foi para o gueto. E aí a coisa fica bem complicada. Eu acho mais engraçado é que, em um país onde existe um personagem como a Mônica, quadrinhos seja visto como coisa de meninos. Não é. Talvez eles sejam mais ativos e percam mais tempo discutindo em fóruns, grupos e tomem mais espaço no lugares representativos. Isso não é muito diferente do que acontece em quase todos os meios. Mas lendo quadrinho? Do público que consome Mino diretamente, 43% são mulheres. Acho que agora, por ajuda inclusive do barateamento dos meios de produção e do alimento das feiras de publicação independente, as mulheres estão tomando um lugar realmente importante como produtoras de conteúdo. Porque como leitoras sempre estivemos ali. Talvez agora não mais caladas sobre o que queremos ou não ler. E isso faz muita diferença.