No meu tempo de guri, nos anos 1980, raras eram as super-heroínas. Quer dizer, até havia, mas sem protagonismo, salvo a eterna exceção da Mulher-Maravilha. Um exercício de memória e arqueologia vai desencavar outros exemplos de personagens femininas que, pelo menos nos Estados Unidos, estrelavam um gibi próprio – de Ametista, na DC, a Cristal, na Marvel. A maioria, no entanto, ocupava postos de coadjuvantes em equipes: Estelar e Ravena, dos Novos Titãs, Feiticeira Escarlate e Capitã Marvel, dos Vingadores, Fênix e Tempestade, dos X-Men, Canário Negro, da Liga da Justiça... Em um universo predominantemente masculino, nas páginas e nos seus bastidores (podia-se contar nos dedos de uma mão as roteiristas e as desenhistas), as mulheres estavam lá não por uma questão de representatividade ou diversidade sexual, mas para reforçar a atração do público masculino. Seus corpos eram esculturais, seus trajes, mínimos, suas poses, sedutoras. Essa situação só piorou nos anos 1990, com a ascensão da editora Image – os contornos femininos foram exagerados, as roupas encolheram, os ângulos beiravam a pornografia.
Salto cronológico para os dias de hoje: uma rápida passada pelas boas bancas de revista vai nos mostrar uma série de títulos de super-herói protagonizados por mulheres – da Mulher-Maravilha a Viúva Negra, da Arlequina a Gaviã Arqueira. Em muitos casos, elas não vivem mais à sombra de suas contrapartes masculinas, de onde, à la Eva e a costela de Adão, foram paridas, como Supergirl, Batgirl e Mulher-Hulk. Sobretudo na Marvel, editora célebre por olhar para fora dos quadrinhos na hora de criá-los, dando ouvidos e voz a causas sociais e assuntos políticos, muitas tomaram o posto deles (mesmo que temporariamente, afinal, tudo é cíclico nas HQs do gênero): a adolescente Riri Williams substituiu Tony Stark sob a armadura do Homem de Ferro, a jovem Laura Kinney veste o uniforme amarelo e azul do Wolverine. Também há mais mulheres desenhando quadrinhos (como Sara Pichelli, do Homem-Aranha), escrevendo quadrinhos (como Kelly Sue DeConnick, que tornou a Capitã Marvel uma porta-bandeira da afirmação feminina) e até comandando editoras de quadrinhos (Diane Nelson é a presidente da DC).
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Tudo isso reflete transformações da sociedade que não ocorreram num passe de mágica. O feminismo é uma luta diária por igualdade de direitos e por respeito. Muitas vezes, avanços só ocorrem depois de derrotas, sejam elas episódios de violência, de assédio, de misoginia, de sexismo (há tantas formas de maltratarmos uma mulher). Nos quadrinhos de super-herói, não foi diferente. Há inclusive uma mártir.
A história é a seguinte: em um gibi de 1994, o super-herói Lanterna Verde (então encarnado pelo personagem Kyle Rayner), depois de um longo dia salvando a galáxia, volta para o apartamento e, ao abrir a geladeira, encontra sua namorada, Alex DeWitt, esquartejada. A cena é chocante, mesmo para os dias de hoje (pode ser vista no encadernado Crepúsculo Esmeralda/Novo Amanhecer, publicado recentemente dentro da coleção DC Eaglemoss). A reação a ela não foi imediata, mas tornou-se um marco na cultura pop quando, em 1999, um grupo de feministas e leitores criou um site chamado Women in Refrigerators (mulheres nas geladeiras), nome escolhido pela roteirista Gail Simone. O site listava personagens femininas que haviam sido machucadas, mortas ou perdido poderes somente como ferramenta narrativa para histórias de super-heróis. Em suma, mulheres eram apenas objetos de cena. Outra crítica: enquanto super-heróis masculinos costumavam morrer heroicamente e ressuscitar magicamente, personagens femininas sofriam, de forma degradante, danos geralmente irreparáveis.
O Women in Refrigerators fez barulho na mídia e até em faculdades, originou similares (thehwakeyeinitiative, por exemplo, satiriza as poses hipersexualizadas a que personagens femininas são submetidas) e certamente provocou reflexão no mercado. Que, também por uma questão de sobrevivência econômica, gradativamente foi ampliando e qualificando o repertório das personagens femininas. Aqui estão quatro bons exemplos:
Thor, de Jason Aaron (roteiro) e Russell Dauterman (arte)
No cinema, Thor, o filho de Odin, segue firme e forte (seu terceiro filme solo estreia em novembro). Nos quadrinhos, a história é outra. Após um segredo confidenciado ao Deus do Trovão na minissérie Pecado Original (2015), ele sentiu-se indigno de erguer o martelo mágico Mjolnir e atuar como defensor de Asgard (o reino mítico) e de Midgard (a Terra). Quem assumiu seu posto foi Jane Foster, a médica que durante muito tempo foi par romântico do Deus do Trovão. O roteirista Jason Aaron subverteu a tradição da mitologia nórdica, muito calcada na figura do homem, e, espertamente, trouxe para dentro dos gibis esse estranhamento. A Thor sofre preconceito por parte dos asgardianos, é subestimada a cada página. Precisa estar sempre provando seu valor.
A HQ tem muitos outros atrativos. Jane, a persona humana, está com câncer. Quando se transforma em Thor, ela elimina do corpo os benefícios da quimioterapia – ou seja, a cada vez que precisa salvar o mundo, Jane condena a si própria. A essa baita sacada dramática, somam-se as intrigas palacianas dos chamados Nove Reinos – palco convidativo para o vilão Loki brilhar, com um texto saborosamente ambíguo – e a arte de Russell Dauterman, espetacular tanto nas cenas de ação quanto nos momentos mais íntimos. Não à toa, nos Estados Unidos Thor concorre na categoria melhor série ao prêmio Eisner, o Oscar dos quadrinhos.
Onde ler:Thor é uma publicação mensal da editora Panini, com duas histórias em cada gibi (R$ 7,60). Já está no número 3.
Ms. Marvel, de G. Willow Wilson (roteiro) e Adrian Alphona (arte)
Ms. Marvel é muito menos uma história de super-herói do que a história de uma garota comum, confrontada com os impulsos e as incertezas da adolescência, as tradições de sua família e os preceitos de sua religião. Escrito por uma americana convertida ao islamismo, G. Willow Wilson, o gibi tem como protagonista a muçulmana Kamala Khan, que vive em New Jersey com seus pais, vindos do Paquistão, e seu irmão mais velho. Ela enfrenta um cotidiano de restrições – o pai não deixa que vá a uma festa da turma de colegas da escola; é dispensada das aulas de biologia (o Islâ não abraça a teoria da evolução); na mesquita, deve rezar em separado dos homens. Seu sonho é ser loira e poderosa como a Capitã Marvel. E não é que uma hora isso acontece?
As duas vidas de Kamala são ricamente ilustradas pelo canadense Adrian Alphona, em um estilo que, de novo, remete menos a uma aventura de super-herói do que a uma comédia dramática existencial. Este feliz casamento de roteiro e arte ganhou em 2015 o prêmio Hugo (destinado a obras de fantasia e ficção científica) de melhor narrativa gráfica.
Onde ler:Ms. Marvel já teve três encadernados lançados pela Panini, cada um com seis histórias em média e preço entre R$ 20 e R$ 29 – Nada Normal (a trama merecedora do prêmio Hugo), Questões Mil e Apaixonada.
Gaviã Arqueira, de Matt Fraction (roteiro), David Aja, Javier Pulido e Annie Wu (arte)
Nas páginas de Gavião Arqueiro, o roteirista Matt Fraction e o artista David Aja testaram os limites narrativos de um gibi de super-herói – a ponto de uma das aventuras ser "contada" por um cachorro (sério, vocês precisam ler isso). Mesmo com trocas de artista, a bem-humorada experimentação continuou na carreira solo de Kate Bishop, a Gaviã Arqueira, que tem um crush por Clint Barton, o Gavião. Ela é a protagonista de Vingadora da Costa Oeste, o terceiro encadernado da série lançado no Brasil.
Como diz a contracapa, Kate muda-se de Nova York para Los Angeles, atravessando os Estados Unidos, tentando fugir de seus problemas. Na ensolarada Califórnia, a Gaviã duelará a vilã Madame Máscara, conhecerá um recluso gênio da música pop dos anos 1960 (referência explícita a Brian Wilson, da banda The Beach Boys) e enfrentará uma espécie de gangue de atendentes de hotel, entre outros divertidos – mas não por isso menos perigosos – desafios. Suas HQs, e também as do Gavião Arqueiro, são prodigiosas em mostrar que: a) personagens coadjuvantes contam muito pontos; b) diversão não prescinde de uma visão de mundo humanitária, de um discurso, digamos, político, de tentar dar sentido à vida; c) quando quadrinhos são assim, quando desenho e palavra se fundem e se opõem e se completam, criando uma narrativa sem igual, quando quadrinhos são assim ratificam sua condição de finas artes.
Onde ler: a Panini já lançou três encadernados dos personagens Gavião Arqueiro e Gaviã Arqueira: Minha Vida como uma Arma, Pequenos Acertos e Vingadora da Costa Oeste, cada um com 124 a 140 páginas e preço entre R$ 20 e R$ 28.
Viúva Negra, de Mark Waid (roteiro) e Chris Samnee (arte e roteiro)
Produzidos pela mesma dupla de uma elogiada fase do Demolidor, os novos gibis da Viúva Negra abrem mão de estereótipos associados à personagem. Se em quadrinhos anteriores Natasha Romanoff encarnava o arquétipo da espiã sedutora – teve romances com Gavião Arqueiro, Demolidor, Homem de Ferro, Capitão América..., se no cinema, nos filmes da Marvel, coube à atriz sex symbol Scarlett Johansson interpretar a ex-agente da KGB, na HQ Na Mira da Shield Waid e Samnee em nenhum momento apelam para a sensualidade da personagem. Não é a ruiva que responde pela exuberância visual, mas sim a narrativa em si – Samnee dá aulas de dinamismo, de enquadramentos e de como capturar o olhar do leitor e conduzi-lo pelas páginas. A trama, de espionagem, não chega a ser transcendente: Natasha está, mais uma vez, enredada com segredos de seu passado, o que inclui encarar um vilão de nome sugestivo, o Leão Choroso, e lidar com o Homem de Ferro. Mas a dupla de criação oferece os melhores predicados de uma trama de espionagem: suspense, ritmo vertiginoso, reviravoltas, flashbacks reveladores ou que ajudam a compor o personagem. Depois que você começa a leitura, impossível largar o gibi.
Onde ler: o encadernado Na Mira da Shield (140 páginas, R$ 21) foi lançado em abril. O segundo, Preto e Branco, está previsto para o segundo semestre.