O toque do telefone cortou a concentração de Jeferson Tenório na tarde de uma segunda-feira do último mês de novembro. Sentado no sofá da sala do apartamento onde mora, no centro de Porto Alegre, o professor de língua portuguesa e literatura estava imerso na correção de provas de gramática. A voz da mãe, Sandra, entregou-lhe um susto:
- Achei o teu pai.
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Por 38 anos, e em todos os Natais de sua vida, Jeferson conviveu com uma imagem pouco nítida do homem que sumira de casa três meses depois do nascimento do filho - o que restou de Joemilson ilustrava um par de fotografias tiradas no dia do casamento com Sandra, em 1976, em um cartório do Rio de Janeiro. Sozinha, ela teve de acumular dois empregos para sustentar o primogênito. Dois anos depois da fuga, Joemilson procurou a ex-mulher, tentando uma reaproximação. Barrado por uma negativa dela, prometeu:
- Se você não me quer mais, nunca mais você vai me ver.
E assim foi. Jeferson cresceu próximo ao padrasto, passando a entender que o pai biológico era outro somente por volta dos 10 anos. Sabia o nome do genitor e o fornecia quando solicitado, preenchendo cadastros diversos.
A vontade de localizar o desaparecido se intensificou e arrefeceu em diversos momentos - o convite para a formatura na faculdade exibiu o nome de Joemilson, mas a família não conseguiu localizá-lo. Buscas na internet não deram resultado. Com a ajuda de uma antiga namorada, Jeferson chegou a números de documentos que levaram a fragmentos de informações. Durante anos, o filho abandonado dispôs apenas de um breve resumo: Joemilson estava vivo, morava no Rio, havia trabalhado como caminhoneiro, motorista de ônibus, vidraceiro.
- Eu tinha um pai imaginário. A ausência era o meu pai - define.
Depois de absorver a notícia estrondosa revelada no telefonema da mãe - Sandra recordara o nome de uma conhecida e descobrira o contato consultando o Google -, Jeferson decidiu ligar para o Rio. Falou primeiro com a filha que Joemilson tivera em outro relacionamento. Trocaram o básico, dois irmãos se conhecendo já adultos.
A conversa parecia se encaminhar para o fim quando a interlocutora anunciou que o pai estava chegando em casa.
Atônito, Jeferson ouviu o som dos passos se aproximando, a voz desconhecida emergindo ao fundo. Sem avisar de quem se tratava, a filha repassou o aparelho. Por instantes, o professor cogitou desligar, mas resolveu ir adiante, pronunciando uma frase que mais tarde o constrangeria pela trivilidade, a única que conseguiu elaborar de improviso:
- Aqui é o Jeferson, teu filho.
Seguiu-se um silêncio.
- Jeferson filho da Sandra? - devolveu Joemilson.
Surpreendido pela fala envelhecida, cansada, o filho confirmou.
- Pois é, a vida nos separou - justificou o pai.
- Mas eu procurei muito o senhor, por muitos anos.
Hoje pastor, Joemilson se espantou ao saber que o filho vivia no Rio Grande do Sul. Os poucos minutos da ligação não permitiram que se aprofundassem em qualquer tema. Jeferson percebeu um homem meio tímido, de poucas palavras. Entre outros períodos de mudez e hesitações, acertaram um encontro no Rio, que pode acontecer no ano que vem. Despediram-se.
Jeferson tem se comunicado, via internet, com as duas irmãs recém-adquiridas - quatro sobrinhas também integram sua "nova" família. Recebeu uma foto atual do pai: cabelo branco, o mesmo bigode. A imagem é sombreada, imprecisa, como os registros da união civil que Sandra mantém em uma sacola dentro do guarda-roupa, as únicas referências visuais que nortearam o crescimento do menino sem pai. "O tempo vai agora ajeitando as coisas e preenchendo lacunas de histórias. Aos poucos tomando ciência das versões que não conheci", escreveu o professor no dia em que compartilhou a história com os amigos de Facebook. Jeferson, também escritor, pensa em se inspirar no enredo da própria vida em um livro futuro. A consequência mais imediata da descoberta ansiada por décadas, acredita ele, beneficiará diretamente o filho João, cinco anos, que vem de Santa Catarina para o Natal.
- Mais do que a relação com o meu pai, muda a minha relação com o meu filho - diz Jeferson. - Boas lembranças é o melhor que você pode dar. Não é um presente, não é um carrinho. Você tem que deixar boas lembranças, algo de que senti falta na minha vida. Não quero que a lembrança dele seja uma ausência, um pai borrado.
Aproximação
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Passadas quase quatro décadas de afastamento, pai e filho retomaram o contato em uma conversa por telefone
Larissa Roso
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