Eu já havia lido um punhado de gibis escritos por Mark Millar (Os Supremos, Guerra Civil, O Legado de Júpiter, Nêmesis, O Velho Logan) e assistido a filmes baseados em suas obras (Kick-ass, O Procurado), mas recentemente percebi que era um ignorante em relação ao roteirista escocês que, no início de agosto, vendeu muitas de suas criações para a Netflix – em um futuro próximo, algumas de suas HQs deverão ser transformadas em filmes e séries do serviço de streaming.
Achava que Millar, 47 anos, era superestimado, a julgar pelo preço que colecionadores de quadrinhos cobram para revender seus títulos – Wolverine: Inimigo do Estado, lançado em 2009 ao preço de R$ 68, era ofertado por R$ 150 em alguns sites; a edição encadernada de Superman: Entre a Foice e o Martelo, que custava R$ 14,90 em 2006, não sairia por menos de R$ 100 até semanas atrás, quando a editora Panini anunciou sua republicação, por apenas R$ 32,90. Não lhe faltam trabalhos memoráveis (O Legado de Júpiter está no topo da minha lista), atrativos e qualidades: a habilidade narrativa, os diálogos recheados de referências à cultura pop, o emprego da violência como uma forma de arte, o pendor para a transgressão – características que já lhe valeram comparações ao cineasta Quentin Tarantino. Só que falta estofo a Mark Millar, falta transcendência, falta profundidade, e essa lacuna artística, ao meu ver, o aproxima daquelas famosas redes de lanchonete: as propagandas conseguem nos fisgar, a gente devora o hambúrguer, mas depois fica um gosto ruim, uma sensação de que poderíamos ter consumido uma HQ mais saborosa e mais nutritiva.
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Ao finalmente ler a trilogia Kick-ass, na sequência de Entre a Foice e o Martelo, percebi que eu estava sendo ingênuo quanto à nocividade de Millar.
O problema não é seus gibis serem ultraviolentos, a ponto de nos fazer torcer e vibrar com cabeças cortadas e barrigas evisceradas – sangue e porrada nos quadrinhos é um jeito seguro e até saudável de sublimarmos nossos instintos mais baixos.
O problema não é o tratamento cínico do roteirista para com seus personagens, que parecem todos desprovidos de coração – a impressão é de que o escocês os odeia, quer é vê-los sofrer e impor sofrimento.
O problema é o entorno disso e o que está no subterrâneo, que não raro salta na nossa cara como o cheiro ruim de um esgoto.
Isoladamente, cada HQ não trai por completo algumas posturas ou escolhas dramatúrgicas questionáveis de Millar. Mas o conjunto da obra dá margem para as acusações que recaem sobre ele: misógino, racista, homofóbico.
No seu lado menos perverso, Millar perpetua um discurso de desprezo às mulheres, condenando-as, via de regra, a papéis subalternos, mesmo quando isso fere de morte a essência das personagens. Ok que Entre a Foice e o Martelo é um gibi Elseworlds, ou seja, de um universo paralelo ao "mundo" em que os super-heróis da DC habitam, mas vejam o que ele fez com duas personagens que historicamente simbolizam a força feminina. A Mulher-Maravilha aparece platonicamente apaixonada pelo Superman, é usada como uma isca em uma tentativa de derrotá-lo e, por fim, comete um sacrifício por ele. Lois Lane, exemplo de mulher corajosa e determinada, surge presa a um relacionamento frio e distante com um Lex Luthor emocionalmente abusivo – além de, como a Mulher-Maravilha, se resignar por não ser a amada de Superman.
Pior Millar faz em Kick-ass 2: quase 20 anos depois da polêmica causada pela HQ Lanterna Verde: Um Novo Amanhecer (procurem por Women in Refrigerators), o escocês voltou a utilizar uma personagem feminina apenas para desencadear a raiva do protagonista masculino. Katie, a adolescente que desperta a paixão de Dave, é brutalmente estuprada pelos vilões – e depois some de cena. Não se dá voz à vítima, ela é descartada.
Esse episódio de Kick-ass 2 gerou controvérsias nos EUA, como descobri ao pesquisar no Google. Li vários artigos e reportagens, inclusive uma lista com os piores 10 momentos de Millar antes da fama, HQs em que já se faziam notar essa e outras marcas. Descobri, também, que estupros são recorrentes na obra do roteirista. Além do caso de Kick-ass 2, dá para citar o fato de o protagonista de Wanted: O Procurado ter uma predileção por violentar mulheres, o ataque à filha do policial em Nêmesis, o estupro de jovens em um hospital no gibi The Authority, Wolverine pensando em abusar de Rachel Summers em Inimigo do Estado, o conhecimento, em O Velho Logan, de que Hulk forçou sua prima, a Mulher-Hulk, a ter filhos com ele...
O suposto racismo transparece durante a leitura de Kick-ass. Millar escorrega em coisas, digamos, simples – retratar como negros ameaças a Dave na rua e a Mindy na escola (sabe-se lá se a escolha não foi do artista John Romita Jr., mas o roteirista endossou) – e se joga em ultrajes mais, digamos, sofisticados: Katie arranja um namorado negro, Carl, só que sua função ali não é celebrar um romance inter-racial, mas, sim, amplificar a humilhação do preterido Dave. Isso fica mais evidente logo em seguida, quando Millar faz um, digamos, chiste calcado em outra característica dos racistas, nem sempre encarada como racismo: ao relatar que Dave recebeu uma foto de Katie fazendo sexo oral em Carl, o escocês está aludindo à hipersexualização dos negros (que teriam, "todos", pênis grandes). Em Kick-ass 2, o roteirista volta a fazer uma, digamos, piadinha de gosto duvidoso, novamente tratando negros como objetos sexuais (e passíveis de violência): quando Dave se queixa da surra que levou em um treinamento com Mindy, diz que se sente como Rihanna após uma noite de amor. (A propósito de racismo: antes que alguém aponte o Nick Fury negro, calcado na imagem do ator Samuel L. Jackson, de Os Supremos, vale lembrar que não foi Millar quem o criou, mas Brian Michael Bendis.)
E a homofobia? Não chego a ver como problema a solução narrativa de Dave ser confundido como gay por Katie. O problema é que Dave encara isso como a maior vergonha do mundo. O problema é a estereotipização nos encontros. O problema é, mais para frente e em outro contexto, Mindy conclamar Kick-ass a "deixar de ser viadinho" ou repreendê-lo assim: "Uma lágrima tudo bem, Dave. Mas abichalhar total assim é inaceitável". (A propósito de homofobia: antes que alguém aponte o casamento gay de Apolo e Meia-Noite em The Authority, vale lembrar que os personagens foram criados pelo roteirista original da série, Warren Ellis, e vale lembrar que Apolo também foi vítima de violência sexual nas mãos de Millar.)
Mark Millar costuma dizer, em sua defesa, que faz coisas assim para chocar a audiência. Perguntado por que havia escolhido Estrela Polar, um dos primeiros super-heróis homossexuais, para ser morto por Wolverine em Inimigo do Estado, respondeu que era o único que conhecia na lista sugerida pela Marvel. (Um dos tantos críticos de Millar escarafunchou na atuação política do autor e descobriu uma similaridade entre dois candidatos escoceses a quem ele apoiou: ambos eram contra o casamento gay.) Questionado certa vez sobre um roteiro nunca levado adiante, O Estupro da Mulher-Maravilha, o escocês afirmou que oferecera à editora DC "como uma piada".
Ao justificar o estupro coletivo de Katie, o roteirista disse que a ideia era simplesmente mostrar algo terrível que vilões fazem, dizendo que poderia ser uma decapitação – péssima comparação, por mais de um motivo. Estatisticamente, apenas nos quadrinhos de Millar cabeças são cortadas na mesma proporção do que mulheres são estupradas (na vida real, o Brasil, por exemplo, registrou cinco estupros por hora em 2015). Além disso, levando ao pé da letra a declaração de Millar, é como se ele dissesse que vítimas de estupro perdem a cabeça – tornam-se "loucas", e os relatos de sua dor, por consequência, não são confiáveis.
Eu disse lá em cima que considerava Mark Millar superestimado. Pois bem, agora que li mais dele e sobre ele, já acho que o lado torpe de suas obras é subestimado.