É quase uma simetria digna dos roteiros de Alan Moore. No mesmo ano em que chega ao Brasil a obra que foi anunciada como sua despedida dos quadrinhos, também ocorre o lançamento de um dos primeiros trabalhos do roteirista inglês de 66 anos, autor de HQs seminais como Miracleman, Watchmen, V de Vingança, Batman: A Piada Mortal e Do Inferno.
O adeus é A Liga Extraordinária: A Tempestade (editora Devir, tradução de João Paulo Martins, 256 páginas, R$ 160). Trata-se da última aventura do supergrupo criado em 1999 por Moore e o desenhista Kevin O'Neill, formado inicialmente por personagens da literatura vitoriana, na virada do século 19 para o 20, como Allan Quatermain, Mina Murray (de Drácula), o Homem Invisível e Dr. Jekyll/Mr. Hyde, além do Capitão Nemo de Vinte Mil Léguas Submarinas. Mais adiante, junta-se às fileiras Orlando (criação de Virginia Woolf), o jovem inglês que acorda mulher e torna-se imortal.
O outro quadrinho, Maxwell, o Gato Mágico (Pipoca & Nanquim, tradução de Érico Assis, 132 páginas, R$ 59,90), é a mais antiga obra de Moore já publicada por aqui – e a primeira em que ele também faz os desenhos. A coletânea reúne todas as tiras publicadas entre 1979 e 1986 no jornal Northants Herald & Post, de sua cidade natal, Northampton. Trata-se de uma espécie de releitura algo macabra de Garfield, criado um ano antes pelo americano Jim Davis, com pitadas generosas de Snoopy.
É abissal a diferença entre as duas HQs – uma ciente de que no dia seguinte já estará enrolando peixe ou forrando gaiolas, a outra com a ambição de traçar um panorama da ficção produzida desde o século 16, em peças, livros, filmes, quadrinhos e seriados de TV; uma escrito sob pseudônimo, a outra batizada com o mesmo nome da derradeira obra de ninguém menos do que Shakespeare. Mas há um bocado de semelhanças relevantes entre Maxwell e A Tempestade.
Em ambos, transparece o mórbido senso de humor de Alan Moore – Jill de Ray, o nome com o qual assinava as histórias do gato mágico, é um trocadilho fonético com Gilles de Rais, nobre francês do século 15 que assassinou 140 crianças; no epílogo de A Liga Extraordinária, James Bond é um vilão que, logo nas primeiras páginas, mata um sujeito que é a cara de Woody Allen.
Se A Tempestade tem, ao final de cada um dos seis capítulos, uma sarcástica seção de cartas fictícias que bem poderiam ter sido boladas à época de Maxwell, nas tiras do felino já se observa marcas que Moore aprimoraria ao longo de sua carreira: a sátira política, a crítica ao autoritarismo, a ameaça de uma guerra nuclear, os questionamentos filosóficos, a desconstrução de personagens e gêneros, suas brincadeiras metalinguísticas e, guardadas as proporções, suas exigências para com o leitor, instigado a submergir nos noticiários, na cultura e na História para entender a piada.
Não à toa, a edição de Maxwell é recheada por notas de rodapé (além de contar com vários textos de apoio, sendo dois do próprio Moore). Essas notas fornecem o contexto para as referências, por exemplo, à Guerra das Malvinas, travada entre Inglaterra e Argentina em 1982, à invasão do Afeganistão pela Rússia, à crise dos reféns americanos na embaixada de Teerã, no Irã, e à tentativa de golpe de estado no arquipélago de Seychelles por mercenários financiados pela África do Sul. O pacote inclui muitos comentários sobre o governo da primeira-ministra Margaret Thatcher e sobre a família real inglesa. Mas também há espaço para o humor ligeiro, nonsense ou simplesmente sinistro. Em uma das primeiras tiras, Maxwell está aflito ao lado de um rato. No quarto quadrinho, ele não aguenta: devora o camundongo.
— Ah, pois é... — justifica na última imagem: — As promessas de Ano-Novo foram por água abaixo.
Logo em seguida, Moore vai começar suas experimentações. A tira pode ser uma TV analógica que precisa de uma batidinha para fixar a imagem, ou então um personagem do primeiro quadro se comunica com um do último, gerando um paradoxo temporal. Nesses momentos, vislumbra-se o autor celebrizado não apenas pela qualidade e pela profundidade de seus textos, mas também pelo domínio da narrativa visual. Aliás, ele é famoso por entregar aos artistas roteiros extremamente minuciosos: em Batman: A Piada Mortal, foram 128 páginas datilografadas para descrever 46 de história. Em A Tempestade, Moore tira sarro de si mesmo: na passagem em que ele e Kevin O'Neill tornam-se personagens, perambulando por cenários de A Liga Extraordinária, o artista diz que sempre apreciou o "detalhamento inútil" do parceiro.
Por falar em detalhes, se os editores de A Tempestade fossem obrigados a ter o mesmo cuidado de contextualização visto em Maxwell, precisariam lançar um segundo volume exclusivo para os extras. Praticamente todo quadro traz um punhado de citações, alusões, mensagens cifradas, paródias, reinvenções etc (você pode encontrar guias de leitura, em inglês, no Google: procure por "League of Extraordinary Gentlemen Annotations"). Como Moore sedimentara em Watchmen, há uma história em quadrinhos dentro da história em quadrinhos e paratextos. Além das cartas fictícias, também temos pequenas biografias sobre artistas britânicos e páginas para serem lidas com um óculos 3D que acompanha a HQ.
A trama, se é que pode ser resumida, tem como eixos uma conspiração no serviço de inteligência britânico e um apocalipse engendrado por Próspero, o protagonista da homônima peça shakespeariana, e a ambientação vai da cidade perdida de Kor, na África, à protegida cidade de Nós, na Terra de 2996. É fundamental ter lido as aventuras anteriores da Liga Extraordinária, na seguinte ordem: 1898, O Dossiê Negro, Século e a trilogia Nemo (Coração de Gelo, Rosas de Berlim e Rio de Espíritos), todos lançados pela Devir. Mesmo assim, no meio da jornada o leitor pode se perder, a ponto de seguir por inércia ou na esperança de que em algum momento as coisas voltem a fazer mais sentido. Haja paixão e paciência. Mas é bom prestar atenção à confusão, para ser brindado, por exemplo, pelo corrosivo pastiche da mitologia que envolve o agente 007 e seus congêneres. Ou pelas tão nefastas quanto divertidas consequências do super-heroísmo – os asilos pagos por empresas de TV e estúdios cinematográficos, que não permitem a morte dos personagens.
Por falar em eternidade, parece não ter fim o baú de coisas de Alan Moore a serem lançadas ou relançadas no Brasil. A Devir publica em breve Bojeffries: A Saga (tradução de Leandro Luigi del Manto, 96 páginas, R$ 55), outra comédia, produzida entre 1983 e 1991 na companhia do desenhista Steve Parkhouse. Gira em torno de uma família excêntrica que é alvo das tentativas de cobrança de aluguel: há um lobisomem que come poodles, um vampiro vegetariano e uma filha retratada como obesa e repulsiva. No segundo semestre, deve voltar, agora pela editora Mythos, Lost Girls, fábula pornográfica pintada por Melinda Gebbie – esposa de Moore – que promove o encontro em um hotel austríaco, entre 1913 e 1914, da protagonista de Alice no País das Maravilhas (1865) e Alice Através do Espelho (1871), de Lewis Carroll, da Wendy de Peter Pan (1904), de J. M. Barrie, e da Dorothy de O Mágico de Oz (1900), de Frank L. Baum.
Recentemente, saiu pela Panini o quarto dos seis volumes de Cinema Purgatório (tradução de Érico Assis, 152 páginas, R$ 58). É uma antologia de terror e ficção científica, da qual participam, entre outros roteiristas, Garth Ennis (criador de Preacher) e Kieron Gillen (The Wicked + The Divine). O carro-chefe são os contos de Moore ilustrados por Kevin O'Neill entre 2016 e 2019. Todos acompanham uma estranha sessão de cinema. Entre outras tramas, a dupla já parodiou os filmes policiais dos anos 1910, já deu protagonismo ao King Kong das primeiras décadas, já celebrou as comédias dos Irmãos Marx, já desconstruiu as cinesséries de super-herói dos anos 1940, já colocou um casal à la Cary Grant e Katharine Hepburn a enfrentar a passagem do tempo, já encenou um debate filosófico e metalinguístico em uma produção dos anos 1950 sobre a Roma Antiga e já mostrou para onde vão os mocinhos e bandidos mortos nos faroestes.
O livro atual traz dois dos pontos altos da série. Em um deles, A Felicidade Não se Quebra, Moore e O'Neill subvertem o clássico filme A Felicidade Não se Compra, com James Stewart. O outro, Minha Bela Dália, é a improvável mistura de policial noir com musical. Em um desafio que fez suar o tradutor, tudo é cantado e rimado enquanto o roteirista inglês discute e ironiza a relação violenta e exploratória dos homens de Hollywood com as atrizes e a predileção do cinema por histórias que envolvem sexo e crime (como se as personagens femininas – e, por extensão, suas intérpretes – fossem meras bonecas).
E entre Maxwell e Bojeffries e Cinema Purgatório e A Tempestade, entre o início e o fim da carreira de Moore nos quadrinhos, houve o meio, muito bem representado por Histórias Brilhantes (tradução de Octavio Aragão Mythos, 172 páginas, R$ 59,90). O título nacional não pegou o espírito do original. Histórias Brilhantes assume que os 10 quadrinhos ali compilados são... brilhantes. Brighter Than You Think é uma expressão pode ser lida de duas maneiras, quase opostas.
Mais Brilhante do que Você Pensa: você sabe que Alan Moore é o cara, mas isso aqui é ainda mais genial do que se pode esperar. Ou então Mais Brilhante do que Você Pensa: você não dá nada por essas histórias, já que não são Watchmen ou Do Inferno, mas elas são joias preciosas do Mago Barbudo.
Independentemente do prazer estético ou do tesão reflexivo que cada HQ provoca ou deixa de provocar, o jornalista Marc Sobel foi primoroso na seleção. Porque, de fato, permite, ao abranger uma produção que vai de 1986 a 2003, examinar facetas diversas de Moore.
Talvez nem tão diversas assim: eis um autor com coesão artística e com uma voz inconfundível. Estão neste volume o antibelicismo e a defesa do amor livre, a desconstrução dos super-heróis e o lamento sobre a indústria dos comics, a crítica ao imperialismo político-cultural e o abraço ao ocultismo, o mergulho profundo na História e no íntimo de seus personagens (entre eles, o próprio Moore).
Por outro lado, Histórias Brilhantes apresenta mesmo sua diversidade narrativa. A variedade artística – são nove parcerias distintas (só aparecem duas vezes os nomes de Stephen Bissette e Rick Veitch, seus colegas de Monstro do Pântano, e Melinda Gebbie) – ajuda a dar uma cara muito diferente a cada trama, mas Moore também experimenta estilos, andamentos, narradores (há até uma jarra de ki-suco!), gêneros, tons. Sua impressão digital não passa despercebida: as simetrias e os contrastes, o casamento feliz da palavra com a imagem, sem o qual cada elemento ficaria empobrecido e passando ao largo do risco da redundância – como o cineasta Ernst Lubitsch ensinou e o genial Billy Wilder propagou, Moore aprendeu que o público ama quando o artista lhe deixa somar dois mais dois. Em um punhado dessas histórias, seremos convidados a exercer essa matemática subjetiva, que revela chaves de leitura (vide O Amor Não Dura para Sempre) e amplifica o significado de frases (vide Eu Sempre Volto).
O Amor Não Dura para Sempre é uma ficção científica ancorada na pandemia do seu tempo (a aids). Em Pictopia faz uma amargurada declaração de amor ao que os quadrinhos eram e, na opinião de Moore, deveriam ter continuado a ser (e ele reconhece que, ao criar gibis sombrios de super-herói, tem culpa no cartório, ainda que, nas suas palavras, "sem querer"). Tapeçarias versa sobre a Guerra do Vietnã, e O Espelho do Amor condensa em oito páginas a história da homossexualidade e da perseguição aos gays desde quando nem havia homens na Terra.
A leitura de A Máquina da Reverência pode causar um tilt, dada sua proposital dissociação entre o texto e a arte para a qual Marc Sobel chama atenção em um de seus ensaios. Aliás, o material de apoio é essencial e sensacional. O jornalista contextualiza cada HQ, reconstitui como as parcerias foram firmadas, comenta os temas e as escolhas de Moore e ainda fornece uma série caudalosa de notas.
Voltando às histórias: Eu Sempre Volto, desenhada por Óscar Zarate, versa sobre a obsessão do escritor por Jack, o Estripador – talvez seja sua obra mais autobiográfica. E Isso É Informação, com arte de Melinda Gebbie e concebida como uma resposta às consequências do 11 de Setembro, serve como um legado da genialidade, da técnica, do pensamento, do humanismo e da coragem de Alan Moore.