Detalhista mas ao mesmo tempo enigmático, pirado nas ideias mas metódico na execução, artífice de teorias da conspiração e da reinvenção da História, entusiasta do debate entre crença e ciência e entre missão e ambição, Jonathan Hickman é um dos autores americanos que mais causam frisson entre os leitores de quadrinhos. Os brasileiros, por exemplo, vivem a expectativa do lançamento nacional das histórias dos X-Men escritas por ele. Os gibis – que têm entre os artistas o paulista RB Silva – começarão a ser publicados em abril pela Panini (a edição número 1 de X-Men já está em pré-venda no site da editora).
É a quarta incursão de Hickman, 47 anos, por uma equipe de super-heróis da Marvel, a líder do mercado nos Estados Unidos. Primeiro, chamou atenção com os obscuros Guerreiros Secretos. Depois, com o Quarteto Fantástico. Mais adiante, colocou os Vingadores em outro patamar.
— Eles tornaram-se mundiais, talvez interplanetários, unindo-se conforme a necessidade da missão. É um conceito extremamente lógico, considerando que vivemos em um mundo globalizado e que tantos personagens já passaram pela equipe — diz o youtuber Vinicius, gaúcho à frente do 2quadrinhos, canal com quase 88 mil inscritos.
Sob as ordens de Hickman, os Vingadores enfrentaram a ameaça do apocalipse, sem que os heróis nem o público compreendesse de imediato as coisas. O mistério foi um dos segredos de seu sucesso, afirma outro gaúcho, o jornalista Marcos Heck, a cabeça por trás do Jamesons, um site de notícias exclusivo sobre a Marvel.
— Hickman também introduziu dilemas éticos de alto calibre — acrescenta Heck. — Em dado momento da história, os heróis, para salvar o Universo 616, precisavam destruir uma realidade alternativa. Trilhões de pessoas morreram por causa dessa decisão, e os Vingadores sofreram, ou não, por suas escolhas.
Vinicius e Heck já leram os X-Men de Hickman e garantem: o roteirista conseguiu criar algo surpreendente ao mesmo tempo em que resgata conceitos clássicos dos personagens mutantes.
— Ele pegou o sonho de convivência pacífica do Professor Xavier e uniu à ideia de supremacia mutante do Magneto. O resultado? Os mutantes estão em paz com os humanos, mas agora ocupam seu lugar de direito no topo da cadeia alimentar do planeta Terra — aponta Vinicius.
_ Ele pegou um pouco do que Grant Morrison (roteirista escocês) fez lá no início dos anos 2000, que foi basicamente estabelecer uma cultura própria para os X-Men, e elevou isso a um nível absurdo. Agora, os mutantes contam com o seu país, sua língua, sua tecnologia, sua estética — acrescenta Heck.
Essa é uma das marcas — e uma das diversões — de Hickman e de seus personagens: criar mundos. Brincar de deus (não à toa, no Twitter seu ego aparece costumeiramente inflado). Na Marvel, diz Heck, é o arquiteto de todas as revistas estreladas ou relacionadas aos X-Men, como Novos Mutantes, Excalibur, X-Factor e X-Force.
— Hickman escolheu as equipes criativas, ele que organiza a narrativa para todos os títulos funcionarem devidamente — explica. — Cada projeto de Hickman na Marvel é maior do que o outro. É por isso que já tem gente especulando que, quem sabe, num futuro distante, ou talvez nem tanto, ele possa a vir se tornar o editor-chefe.
Enquanto os mutantes não chegam, o público brasileiro pode mergulhar em uma das mais elogiadas obras que Jonathan Hickman produziu para uma editora concorrente da Marvel: a Image, casa onde ele ousa ainda mais, já que os personagens são seus (ou quase isso). Já foram lançados pela Devir dois volumes da série The Black Monday Murders, em que o roteirista, com a companhia inestimável do artista Tomm Coker, mistura economia, ocultismo e investigação policial. Na trama, famílias ligadas à magia – como oligarcas russos e herdeiros dos Rothschild – controlam o mundo por meio de poderosas instituições financeiras. Quando um dos líderes dessa elite é assassinado, o detetive Theodore Dumas começa a desvendar os segredos de uma conspiração que está por trás da queda da bolsa de valores de Wall Street em 1929, entre outros fatos históricos que são reinterpretados por Hickman. "Penúria abre o apetite das pessoas", diz o deus – ou demônio – Mamom (que, em hebraico, significa dinheiro), explicando por que a exploração econômica atende a seus propósitos. Por meio da ficção, o quadrinista discute assuntos bastante atuais, como a concentração de renda (as 26 pessoas mais ricas acumulam o dinheiro das 3,8 bilhões mais pobres) e a transformação sistêmica de mentiras em verdades.
The Black Monday Murders é uma leitura exigente não só pelos temas, mas pela forma. Como em várias HQs do autor, há gráficos, diagramas, reproduções de arquivos, notas de rodapé, diálogos que empregam símbolos. Hickman é um entusiasta da pompa e da circunstância: intitula em latim, "Dramatis personae", a apresentação dos personagens, usa colchetes no sumário, deixa algumas páginas praticamente vazias, não fossem algumas palavrinhas e mínimos recursos artísticos. Os desafios são recompensados, como resume o jornalista gaúcho Claiton Silva, um dos integrantes do BlogBuster, um canal de cultura pop no YouTube:
— A estrutura não linear obriga o leitor a se engajar na trama e a buscar referências históricas que corroborem ou não o que ele mostra. Assim, temos um divertido jogo de investigação, tanto pelo detetive Dumas quanto por quem lê, sobre o que é realidade, o que é fantasia e o que pertence à zona cinzenta entre as duas.
Fazer ficção em cima do mundo que conhecemos (ou que achamos conhecer) é característico da obra de Hickman desde sua estreia, The Nightly News (2007, inédita no Brasil), que ele escreveu e desenhou. Na trama, um culto formado por pessoas que tiveram suas carreiras ou suas vidas prejudicadas por erros da imprensa começa a assassinar jornalistas. O objetivo: destruir a grande mídia, "sensacionalista, irresponsável e fraudulenta".
Em Projeto Manhattan (que a Devir publicou em seis volumes), o roteirista e o desenhista Nick Pitarra imaginam um mundo em que o programa de pesquisa e desenvolvimento das primeiras bombas atômicas não foi encerrado após a Segunda Guerra Mundial. No contexto da corrida espacial entre Estados Unidos e União Soviética e da Guerra Fria, surge um elenco baseado em personagens reais: o general Leslie Groves, líder militar do Projeto Manhattan, Joseph Oppenheimer, o fictício irmão gêmeo do físico americano Robert Oppenheimer, considerado o pai da arma nuclear, uma versão casca-grossa do gênio Albert Einstein, o cientista alemão Wernher Von Braun, o astronauta russo Yuri Gagarin e até a cadela Laika. Eles lidam com viagens espaciais, invasões alienígenas, torii (os tradicionais portões japoneses) que teletransportam robôs samurais, homens reconstituídos a partir de próteses mecânicas e toda sorte de ciência mesclada à magia, sempre sob a sombra da mão grande e cruel dos governantes – seja o Estado, seja o Mercado, seja a Igreja.
Religião, aliás, é um assunto recorrente nos quadrinhos de Hickman. Na saga Guerras Secretas, da Marvel, ele fez o leitor refletir sobre fé e filosofia. Pax Romana tem como cenário central o Vaticano de 2045: depois que o Islã invadiu a Europa, cientistas do laboratório Cern financiados pelo clero descobrem o segredo da viagem no tempo. O papa ordena a criação de um exército privado que, sob o comando de um cardeal, volta ao Império Romano do ano de 312 para "mudar o passado e salvar o futuro". No seu faroeste futurista East of West, os Quatro Cavaleiros do Apocalipse – Fome, Peste, Guerra e Morte –, descritos pelo apóstolo João na Bíblia, são reimaginados em um mundo no qual a Guerra Civil americana não acabou como a História conta: os Estados Unidos estão divididos em sete nações, incluindo um reino negro, uma confederação de indígenas e uma república de chineses exilados.
Ao reescrever o passado, desenhando um estranho porvir, ao focar em um suposto lado oculto de acontecimentos históricos, Jonathan Hickman revela ser ele próprio um conspirador. Força o leitor a sair de um estado de inércia, maquina para que ele questione, duvide, pesquise, pergunte, investigue, pondere, encontre suas próprias respostas ou participe da solução.
— Sem dúvida — comenta Claiton Silva, do canal BlogBuster. — Nos X-Men, por exemplo, os fãs tiveram de decifrar um alfabeto para ter acesso a mensagens que contribuíam para o entendimento da história.
Vinicius, do 2quadrinhos, acrescenta:
— Em uma entrevista sobre a nova fase dos X-Men, ele comentou que vai explorar como os mutantes dobram a "Escala de Kardashev". Sim, eu também tive de pesquisar isso no Google.