Ano a ano, o escritor e artista Wagner Willian vem conquistando prêmios. Lobisomem Sem Barba (2014), livro de minicontos que formam uma trama maior e que são misturados a desenhos, fotografias e outros elementos gráficos, ficou em segundo lugar no Jabuti na categoria Ilustração. A história em quadrinhos Bulldogma (2016) ganhou os troféus HQMix – o mais tradicional do país – e Grampo de Ouro. Flerte da Mulher Barbada, também de 2016, foi finalista do HQMix, assim como O Maestro, o Cuco e a Lenda (2017), que também chegou à lista final do Jabuti dos gibis. Martírio de Joana Dark Side (2018) valeu outra estatueta HQMix para o quadrinista potiguar de 42 anos radicado em São Paulo.
Sua nova obra, Silvestre (editora Darkside, 192 páginas, R$ 69,90), reúne predicados para encorpar a coleção. Tanto é que já apareceu em algumas listas dos melhores quadrinhos de 2019, incluindo a de GaúchaZH. Inspirado por Walden, ou A Vida nos Bosques (1854), o manifesto poético-ecológico que o escritor americano Henry David Thoreau (1817-1862) produziu contra a civilização industrial, pelo filme Dersu Uzala (1975), em que o cineasta japonês Akira Kurosawa (1910-1998) retrata o resgate de um explorador russo por um sábio e humilde caçador siberiano, e pelo caderno de esboços do pintor francês Eugène Delacroix (1798-1863), expoente do Romantismo, Willian convida o leitor a se embrenhar por uma floresta desconhecida.
Precisamos tatear no primeiro ato, Seguia o Rastro de um Raro Animal, medindo os passos para nos ambientarmos em um terreno onde técnicas artísticas e narrativas se mesclam, produzindo um espetáculo visual ímpar. O quadrinista usou do lápis, do nanquim, do óleo, do óxido de ferro e até do próprio sangue para realizar uma obra que, entre a ideia e a publicação, consumiu cinco anos, como ele conta na entrevista mais abaixo.
Enquanto apresenta seu personagem principal, um velho caçador isolado em uma cabana, o autor adota uma prosa algo rebuscada e não direta, contando lendas como a do castor e a do cervo. A tipografia pode ser um obstáculo nas passagens com escrita cursiva, mas é uma aliada de peso para o encantamento quando as palavras buscam representar, visualmente, o que significam – em "irreconhecível", por exemplo, algumas letras estão desvanecidas, em "livrar-se", estão mais espaçadas.
No segundo ato, A Celebração, Wagner Willian nos conduz à aparente segurança da casa do caçador. O velho prepara uma torta cujo aroma atrai animais e criaturas fantásticas, como o Curupira e a Cuca, do folclore brasileiro, El Mohán (mito latino-americano), Liderc (demônio sexual húngaro), Popobawa (espírito maligno do Zanzibar, na África), Tikbalang (das Filipinas) e bokkenrijders (de Bélgica e Holanda). A reunião lembra as histórias de Sandman, o cultuado gibi escrito pelo inglês Neil Gaiman. Há afinidades, mas também intrigas, alguns convidados são simpáticos, outros exaltam-se e até confrontam o anfitrião, discute-se a difícil arte da convivência – a do homem consigo mesmo e com seus semelhantes, a dos homens com suas crenças e seus medos. Pressente-se, em meio ao clima onírico, o despertar de um pesadelo. Mas nada antecipa o que nos reserva o terceiro ato, Apressado Come Cru. O desfecho revela-se uma surpresa inevitável: a selvageria é inerente à natureza humana.
"Tudo aquilo que contradiz é malvisto"
Por e-mail, Wagner Willian concedeu a seguinte entrevista:
Você conta no livro que teve a companhia inspiradora do Walden, de Thoreau, do filme Dersu Uzala e das composições do pintor Delacroix. Pode falar um pouco mais sobre a influência de cada um em Silvestre?
Walden e Dersu Uzala são obras que exalam um perfume silvestre, de algo essencial. Usei desse mesmo perfume para escrever cada uma das palavras. Delacroix explodiu em meus olhos com seus cadernos de anotações e rascunhos. Quando vi aquilo, sabia exatamente que forma o livro deveria ter.
Silvestre foi um projeto "atravessado" por outros, como você diz, e que, quando foi retomado, "a maneira como o concebia havia mudado, o mundo a minha volta também". Pode falar sobre essas mudanças?
Em 2014, Dilma (Rousseff) era a presidente. De lá para cá, o ódio rançoso e o desmonte à cultura tomaram a frente.
O livro tem um esmerado trabalho artístico, em que se misturam técnicas como nanquim, lápis e óleo, e no qual o letreiramento também desempenha um papel importante. Você saberia dizer quanto tempo levou para produzir Silvestre?
Cara, desde o surgimento da ideia até a manufatura, foram cinco anos. Isso não quer dizer que levei todo esse tempo. A história, que começou como um livro infantil, viu-se como livro ilustrado até assumir a forma dos quadrinhos. Quando me decidi com qual estética compor a história, levei um ano usando de todas as técnicas cabíveis.
Como foi o trabalho de pesquisa para a reunião de lendas, criaturas mitológicas e afins no segundo ato da história?
Foquei em quatro tipos de personagens: seres ligados à loucura, à floresta, à transição dos mortos e ao sexo. Esses quatro elementos reunidos forneceram a pólvora ideal para a bomba que montei. Não quis localizar a história, por isso trouxe para dentro criaturas da mitologia judaico-cristã, brasileira, do iorubá, filipina, árabe, japonesa, várias, além de criar outros seres desde que atendessem aos quatro tipos. Sobre o Baba Egun, especificamente, consultei o artista Vieira Andrade. Livros como Orixás, de Pierre Verger, vídeos do YouTube, artigos na internet, usei o diabo que tinha à mão.
O homem é o lobo do homem, diz o ditado. Mas também é o lobo da natureza – uma espécie de parque de suas diversões letais – e da fantasia, da mitologia, das crenças, de tudo aquilo que ele não compreende ou aceita. Esta é uma das leituras possíveis, não?
A história pertence ao leitor e às leituras que ele faz. Mas para mim é bem clara essa epítome na figura do homem e em outros seres por ali.
A Terra e o Homem são irreconciliáveis? Ou você tem esperança?
Só tenho esperanças em minha mulher e no meu gato.
Bruxas, monstros e demônios são necessariamente ruins, passíveis da extinção? Ou pelo contrário, são um "mal" necessário, mitos formadores, que nos ajudam na vida terrena?
O mal existe para dar a real dimensão do que vale a pena. Em Silvestre, os demônios e as bruxas figuram como elementos curiosos. Nesse sentido, tudo aquilo que contradiz, que questiona a ordem natural das coisas, muitas vezes é malvisto. Não seriam eles o instrumento para uma outra forma de ver e sentir a verdade?