Em julho de 1846, Henry David Thoreau (1817–1862) passou uma noite na cadeia. Seu amigo Sam Staples, que era o coletor de impostos da cidadezinha de Concord, já havia alertado que teria de prendê-lo caso não colocasse em dia suas obrigações com o poll tax, imposto anual que era devido pelos cidadãos do Estado de Massachusetts do sexo masculino com idade suficiente para votar. Dizem que Staples até se prontificou a emprestar a soma devida, que, cá entre nós, era uma ninharia.
No entanto, para Thoreau, recusar o pagamento desse imposto, aliás o único meio que o Estado tinha de pôr a mão no seu bolso pouco fornido, era uma forma de dizer não para dois descalabros morais: a política expansionista da Guerra do México e a manutenção da escravidão negra em vários estados dos EUA.
O senhor Staples, que não estava lá muito preocupado com as opiniões de Thoreau sobre política e moral, fez o que a lei lhe exigia e colocou o amigo atrás das grades. Na mesma noite, algum desconhecido, provavelmente sua tia, achou por bem zerar a conta de Thoreau com o fisco.
Na manhã seguinte, ele foi liberado. Contrariado, é verdade, pois permanecer na cadeia teria sido sua forma ideal de protestar.
Com o protesto abruptamente interrompido contra a sua vontade, decidiu prestar contas do evento, escrevendo um ensaio que impactou a visão política de Mahatma Gandhi, Liev Tolstói e Martin Luther King Jr.
Nada mal para uma noite na cadeia, não é mesmo?
Pois bem, em 2017 comemora-se o bicentenário de nascimento de Thoreau. Escritor, abolicionista e catalisador do Transcendentalismo Americano, ele escreveu obras fundamentais para o período.
A Week on the Concord and Merrimack Rivers (1849), Resistance to Civil Government (1849), Walden (1854), A Plea for Captain John Brown (1859) e Walking (1862) são sismógrafos da rara efervescência intelectual de um dos mais ricos estratos da história norte-americana.
As três décadas do Transcendentalismo, ou Renascença Americana, entre 1830 e 1860, testemunham o momento em que o pensamento norte-americano adquire sua peculiar identidade, reagindo epidermicamente aos movimentos importados do outro lado do Atlântico, em especial ao Idealismo Alemão e ao Romantismo. Um traço essencial dessa reação se revela na difícil equação entre reforma individual e reforma social. Forçando um pouco a pena, podemos pensar a Renascença Americana como uma projeção das estratégias narrativas do Bildungsroman (o chamado Romance de Formação) na direção do surgimento e do desenvolvimento dos homens representativos, dos heróis e anti-heróis de uma nação, sejam eles o indivíduo autoconfiante de Emerson ou um turrão genial que resolve morar às margens de um lago nos arredores de Concord, em uma cabana que ele mesmo construiu, e que descreveu sua jornada em uma das maiores realizações ficcionais do período – a saber, Walden (a autobiografia de Thoreau publicada em 1854).
Compreender a ebulição de originalidade na literatura de ficção, na crítica social e política, no sentimento religioso, enfim, na filosofia esposada por nomes como Ralph Waldo Emerson, Margaret Fuller, Theodore Parker e Henry David Thoreau é condição necessária para demarcar as promessas de um ethos para o Novo Éden na América do século 19. Promessas que, em razão de sua radicalidade e novidade, ainda estão longe de encontrar solo fértil e largo.
Em momentos críticos, como o vivido no Brasil contemporâneo, ou também o da antevéspera da Guerra Civil Americana, temas urgentes irrompem na cena pública. O papel do Estado, a configuração das instituições democráticas, os limites e potencialidades das liberdades civis e a promoção da ampla cidadania são debatidos e colocados em xeque. A obra de Thoreau, que será apresentada no VII Colóquio Internacional IHU, destaca aspectos que podem iluminar esse debate.
Serviço
Caminhando e Desobedecendo – Thoreau 200 Anos
Dias 29 e 30, das 14h às 22h, no campus da Unisinos em Porto Alegre (Nilo Peçanha, 1.640), com convidados como os norte-americanos Kelly Dean Jolley e Stanley Bates. Informações sobre o evento podem ser obtidas em bit.ly/coloquio_thoreau.