De cabeça ou em uma rápida consulta ao Google, é fácil listar uma extensa série de filmes e quadrinhos dos Estados Unidos, do Japão e da Europa que abordam a Segunda Guerra Mundial ou suas consequências. Agora, tente encontrar títulos sobre a participação do Brasil no conflito. A tarefa se torna árdua, e os resultados, escassos. No cinema, os mais antigos podem lembrar de Sangue, Amor e Neve, de 1960. Mais recentemente, houve documentários como Senta a Pua! (1999), A Cobra Fumou (2002) e Navalha: Um Batalhão Brasileiro na Linha Gótica (2016) e a ficção A Estrada 47 (2013). Nos gibis, seria seguro apostar que um dos primeiros é O Elísio: Uma Jornada ao Inferno, lançamento da editora porto-alegrense AVEC (96 páginas, R$ 59,90).
Trata-se do quadrinho de estreia do paulista Renato Dalmaso, 38 anos, que até pouco tempo atrás trabalhava como gerente de loja em empresas como Claro, TIM e Marisa (leia, abaixo, entrevista com o autor). Aficionado pelos relatos dos mais velhos sobre parentes ou conhecidos que haviam lutado no maior conflito armado do século 20, e um ávido consumidor da ficção e dos documentários produzidos sobre o tema, ele resolveu pesquisar a Força Expedicionária Brasileira (FEB) para encontrar uma história a ser contada. Encontrou a do ex-soldado Eliseu de Oliveira (1922-2012), que, ainda em 1945, ao final da guerra, narrara sua angustiante experiência na Itália e na Alemanha ao jornalista Altino Bondesan – dando origem ao livro Um Pracinha Paulista no Inferno de Hitler.
O título da obra faz referência a um dos significados do nome Eliseu, "do Elísio", e à mitologia grega: os Campos Elísios eram um paraíso para onde os heróis, os santos, os poetas e os deuses iam depois da morte. Conforme avisa na abertura, O Elísio toma liberdades artísticas, mas Dalmaso adota um estilo realista que constitui um dos trunfos da HQ (ainda que seja difícil distinguir alguns personagens). Através de suas aquarelas pintadas com cores sóbrias, podemos testemunhar o horror da guerra, o caos que um bombardeio instala, a aflição reinante em um campo de prisioneiros. Podemos, também, entrar na mente de Eliseu, compartilhar de seus temores, seu estranhamento com a recepção pelos italianos ("De início, fomos xingados e apedrejados, agora nos aplaudem e imploram por comida"), suas aventuras amorosas com as ragazzas – momentos de alívio em meio a uma melancolia crescente, a um sentimento de desamparo que não tarda a se transformar em desespero.
Aí está outro trunfo da obra: seu protagonista não é o herói típico do gênero. Ele é capaz de atos de nobreza e coragem, mas também se deixa assaltar pela dúvida, pela saudade, pelo nojo, pelo medo.
O Elísio é a história de um homem comum apanhado pelo turbilhão da Segunda Guerra, mas Eliseu não é um personagem comum. Suas reflexões sobre o ônus da vitória dos Aliados
(o estupro das alemãs lhe provoca náuseas às quais não tem força para combater) enriquecem o quadrinho com um humanismo comovente: "Por seis meses, vivi nas garras de Hitler. Passei fome, sede, frio e tantas outras privações. No entanto, ao sobrevoar a Alemanha pela derradeira vez, suplico ao Criador que tenha misericórdia dessa gente".
"Falta interesse em contar as histórias do Brasil na Segunda Guerra"
Por e-mail, Renato Dalmaso concedeu a seguinte entrevista:
Por que contar uma história da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial?
Sempre gostei muito do tema de guerra, desde pequeno. Sempre ouvia com entusiasmo, histórias dos mais velhos sobre parentes ou conhecidos que haviam lutado no conflito e aquilo me fascinava bastante, assim como os filmes, séries, livros e quadrinhos, que eu consumia avidamente. Mais tarde, comecei a considerar a ideia de me tornar quadrinista e pensei que deveria abordar esse tema, que é tão pouco falado no Brasil. Foi aí que comecei a estudar a Força Expedicionária Brasileira (FEB) para compor essa obra.
Como você chegou à história do soldado Eliseu e o que o atraiu?
Eu já sabia o tema da HQ, falaria sobre a FEB e sobre a Segunda Guerra, mas faltava a história, uma boa história a ser contada. No início, pensei em fazer algo fictício, mas acabei desistindo da ideia. Foi garimpando relatos dos pracinhas na internet que deparei com uma monografia a respeito do Eliseu. A riqueza de eventos, lugares e situações enfrentadas pelo soldado me atraiu. Achei que era uma boa história e que merecia ser resgatada, assim como eu poderia, também, abordar diversos temas através dela.
Qual foi o seu maior desafio na produção?
A produção foi caótica! Eu não tinha um padrão definido para nada. Como é meu primeiro trabalho, muita coisa fui aprendendo enquanto fazia. O roteiro foi escrito na hora do almoço no meu antigo emprego, em dois ou três dias em 2015. Anos depois, eu já havia desistido, quando, em um dia de frustração no trabalho, resolvi ler novamente o roteiro e pensei: "Até que não está ruim". Naquele dia, decidi que iria tocar o projeto, de qualquer jeito. Tive de sair do trabalho para dar conta da produção das páginas, o que me deixou com as contas bem apertadas. Foi uma luta. Pintar cada quadro, cada página... Tive de ir adaptando o roteiro e cortando algumas cenas, pois o tempo passava e com ele as contas se acumulavam na minha porta, mas no final, acabou tudo meio que se encaixando (ou quase).
Esta é sua obra de estreia, mas já demonstra um grande apuro artístico. Você tem formação em arte? Quais foram as suas inspirações?
Desenho desde criança e sempre me destacava nas artes, mas crescer pobre, nos anos 1980, em uma cidadezinha de 2 mil habitantes (o distrito de Guarapuã, pertencente ao município paulista de Dois Córregos), não facilitou muito minha vida. Quando fiz 20 anos, mudei-me para São Paulo, onde comecei a trabalhar no varejo e, com o pouco dinheiro que recebia, fiz alguns cursos de artes, design e desenho. Por um bom tempo, fiquei afastado. Só voltei a estudar recentemente, quando comecei a considerar a ideia de lançar O Elísio. Minhas principais influências artísticas são Alex Ross, Hal Foster, J. G. Jones, George Pratt, Alex Maleev e Alex Raymond.
Por que esse é um tema e um cenário pouco explorado pela ficção brasileira?
Acredito que, após o retorno vitorioso da FEB da Europa, onde lutaram por democracia, houve, por parte do governo Getúlio Vargas, uma ditadura e uma campanha para que a Força fosse extinguida e desvalorizada. Logo após, veio o golpe militar de 1964, que acabou por jogar uma pedra de cal sobre o tema. O militarismo passou a ser visto como algo extremamente negativo no país. Com isso, o tema acabou sendo pouco explorado no meio artístico. Existem tantas histórias maravilhosas e reais sobre a passagem do Brasil na Guerra, tantas histórias de humanidade, de bondade, de compaixão, de aventura e de drama que poderiam virar filmes, séries, quadrinhos e livros e que, infelizmente, quase ninguém se interessa.
Por que não traduzir muitas das frases ditas em italiano ou alemão?
Não traduzi os diálogos por que queria que o leitor sentisse as mesmas dificuldades de comunicação que os pracinhas tiveram na época. No caso do italiano, é uma mistura com o português, que era o que acontecia na época, dois povos se esforçando para se fazer entender. Nada do que está em outra língua é tão essencial para a história, mas fica como curiosidade, uma cereja no bolo do leitor que se interessar e buscar a tradução. Acredito que em breve teremos uma nova edição de O Elísio, talvez coloque um glossário no final com as traduções e curiosidades sobre a obra.
Já tem planos para a próxima obra? Pretende voltar a esse universo? Que lições de O Elísio ficaram para o próximo projeto?
Já estou trabalhando na minha próxima obra, não posso falar muito sobre, pois meu editor me proibiu de comentar. O que posso adiantar é que nessa HQ estou responsável somente pela arte, seguindo o argumento do roteirista e idealizador do projeto, e que a obra é sobre futebol. O Elísio foi muito importante para meu amadurecimento como autor, ilustrador e quadrinista. Já tenho sentido, ao desenhar as páginas desse quadrinho novo, uma grande diferença em relação ao anterior, sinto-me mais preparado e mais confiante também. Pretendo voltar ao tema da FEB, mas não tão cedo. Não aguento mais desenhar soldados, preciso de um tempo desenhando outras coisas.