Duas lacunas do mercado brasileiro em relação aos principais autores de mangás (os quadrinhos do Japão) foram preenchidas em 2019. A editora Veneta publicou O Homem Sem Talento (1986), de Yoshiharu Tsuge, e a Pipoca & Nanquim lançou O Preço da Desonra (1971-1973), de Hiroshi Hirata. Ambas as edições trazem textos de apoio e notas de referência que ajudam a dimensionar a importância e a influência dos dois mangakás – ambos com 87 anos.
O desencanto de Tsuge
Existe um gênero que os japoneses chamam de mangá watakushi, os quadrinhos do eu. A definição sugere obras biográficas e autocentradas, mas devagar com o andor. Seu maior clássico, O Homem Sem Talento (Veneta, tradução de Esther Sumi, 240 páginas, R$ 64,90), é uma autoficção. Ou seja, o autor emprega elementos de sua vida pessoal, inclusive tornando-se personagem, em uma narrativa inventada – capaz de dialogar com muitos outros umbigos: por meio de seu protagonista, Yoshiharu Tsuge reflete sobre temas que não se restringem a seu próprio ofício ou à arte em geral, extrapolam as fronteiras do país do sol nascente e, mais de 30 anos depois, parecem extremamente atuais.
O Homem Sem Talento é constituído por seis capítulos, cada um narrando uma desventura do alter ego de Tsuge. No primeiro, descobrimos que ele desistiu de produzir HQs e de consertar câmeras fotográficas para se dedicar ao comércio de pedras. Faz planos e cálculos, mas não raro quebra a cara, para desgosto de sua esposa e mãe de seu filho pequeno – ela tem tanto desprezo pela atividade escolhida pelo marido, que nas histórias iniciais nunca mostra o rosto.
O protagonista sem nome, por sua vez, tem feições que aludem ao poeta português Fernando Pessoa, ao escritor irlandês James Joyce e a Carlitos, o célebre vagabundo interpretado pelo ator e cineasta Charles Chaplin. E, de certa forma, o Tsuge autor e personagem tem pontos em comum com esses três gênios europeus: adota uma postura existencialista, como Pessoa, abraça a experimentação narrativa, como Joyce, e, empobrecido como Carlitos, inspira um olhar compassivo – a diferença brutal é o que Chaplin representava a esperança em meio a obstáculos, enquanto para Tsuge as vicissitudes vão, cada vez mais, provocando o desencanto com a vida.
Ao longo da jornada do protagonista, Yoshiharu Tsuge reflete sobre o valor que damos – ou não – à arte e à cultura (as pedras funcionam como metáfora da produção artística), antecipa o debate sobre a chamada sociedade do cansaço (estamos sempre correndo atrás, sobretudo de dinheiro), retrata o peso psicológico e social das dificuldades financeiras (ficamos privados de coisas e de pessoas, que se afastam), ilustra uma crise de identidade bastante atual (o desajuste entre o que queremos ser e o que o mundo quer da gente) e, por fim, de modo tão belo quanto doloroso, aborda a obsolescência e o esquecimento a que condenamos os mais velhos (em variadas esferas, como a política e a cultura, o passado e a memória vêm sendo negligenciados).
A virulência de Hirata
O outro mangá é mais antigo tanto na produção quanto no período da narrativa, mas não por isso deixa de ser contemporâneo. O Preço da Desonra (Pipoca & Nanquim, tradução de Drik Sada, 396 páginas, R$ 59,90) foi escrito e desenhado por Hiroshi Hirata entre 1971 e 1973. Nasceu, portanto, um pouquinho depois daquele que é o mangá de samurai mais famoso no Ocidente, Lobo Solitário (1970-1976), de Kazuo Koike e Goseki Kojima. Há semelhanças entre as duas obras – ambas se passam no período Edo do Japão (1603-1868), ambos são protagonizados por um anti-herói implacável e habilidoso na espada, ambas demonstram um apuro artístico (o estilo é realista). Em vez de Itto, o infalível e praticamente onisciente assassino de aluguel de Koike e Kojima, Hirata elege como personagem principal Hanshiro, um cobrador de dívidas que precisa atuar como uma espécie de detetive para cumprir seu trabalho.
Cada diálogo merece atenção, e de cada página emana o talento de Hirata para desenhar e imprimir gravidade às cenas – mas é preciso dizer que algumas cenas de luta são confusas (propositadamente ou não) e que pode haver uma diferença cultural incontornável: senti dificuldade para distinguir os personagens às vezes, pois, aos meus olhos ocidentais, alguns são muito parecidos uns com os outros.
O mangá começa de supetão. Na primeira página, um guerreiro está para ser morto em combate e suplica:
— Espere! Isso pode ser resolvido com dinheiro?
É a senha para uma série de sete histórias curtas sobre uma curiosa tradição, a das promissórias assinadas em troca da vida, dando margem a discussões filosóficas sobre temas que não ficam circunscritos ao Japão ou à época da trama: a ética da guerra, sobre a honra e a credibilidade, sobre o peso do dinheiro, sobre o que fazemos para sobreviver e cuidar das nossas famílias – o segundo capítulo, Viver em inanidade, morrer pela verdade, em que Hanshiro desnuda um segredo que o pai guardava do filho, é lancinante. Hiroshi Hirata desconstrói a visão romantizada dos samurais e afins, personagens que externamente defendem um rígido código de ética, mas, na intimidade, revelam-se amorais, decadentes e hipócritas. É outro assunto atemporal, o das imagens fabricadas às custas da mentira e da corrupção.