A leitora Elvira Z., de Guaratinguetá, SP, manda uma foto mostrando a tela de um caixa eletrônico com instruções em Latim. “Caro professor, me diga, por favor, que essa maravilha pode ser encontrada nos bancos do Vaticano! Tem gente que diz que o Latim morreu, mas um professor da Federal disse na TV que ele continua a ser falado. A foto confirma isso, não? O Latim sempre foi minha matéria preferida no colégio, e tenho muito dó dos meus netos, que não terão a formação que eu tive”.
Prezada leitora, vamos por partes. Quanto ao ensino do Latim, concordo com a senhora em gênero, número e caso: ele jamais deveria ter sido eliminado do nosso currículo escolar. Há bons colégios no Brasil e no exterior que continuam a ensiná-lo, mas vão ficando cada vez mais raros, neste triste cenário em que os pedagogos preferem mimar as novíssimas gerações a incutir-lhes o velho goût de l’effort. Existem, é claro, núcleos de resistência: em Roma fica o Vivarium Novum, uma escola em que todos, alunos e professores, só se comunicam nesse idioma – reproduzindo, mutatis mutandis, aquele cenário fantástico em que Montaigne cresceu (até os seis anos ele não conhecia o Francês; seus pais e os criados da casa só falavam Latim com ele).
A importância e o prestígio de que desfruta pode ser aquilatado pelas dezenas de páginas na internet que reúnem os aficionados pela língua e pela cultura de Roma – existe até uma Wikipédia em Latim! Livros populares como O Pequeno Príncipe e O Ursinho Puff foram traduzidos para a língua de Ovídio e publicados em grandes tiragens – tudo sem mencionar o fato de ser esta a língua usada há mais de dezesseis séculos pelo Vaticano, que ainda hoje a emprega para suas encíclicas e para todas as comunicações oficiais e administrativas.
Isso não altera o fato de que ela é uma língua morta – o que, em termos linguísticos, significa que ela não é mais a língua materna de ninguém. Como já afirmei em outra coluna, é possível que nenhum bebê nascido a partir do séc. 6 da Era Cristã tenha ouvido a voz de sua mãe dizer-lhe palavras doces neste idioma – naquela língua, como tão bem definiu Cervantes, que todos bebem com o leite. Fica claro que morta não significa esquecida ou sem uso, mas simplesmente que a língua deixou de evoluir, de criar, de se enriquecer com as infinitas adaptações exigidas pela vida de seus falantes. Ninguém exprime com ela suas dores e seus desejos, ninguém pensa com ela, nenhum artista recorre a ela para se expressar. Há pessoas que a usam para falar, é verdade – mas é mais um jogo intelectual do que outra coisa; são estudiosos, apreciadores da cultura romana, que a manejam racionalmente, sem a espontaneidade e a improvisação inevitável de uma língua viva.
Ora, como o vocabulário latino original não abrange as peculiaridades do mundo moderno, os apreciadores deste Novo Latim tratam de “enriquecê-lo” com vocábulos e expressões artificiais, sensaboronas, que acabam se tornando objeto de chacota. A fita adesiva é taenia glutinosa (para nos lembrar que a tênia, a solitária, tem a forma de uma fita); uma ninfeta é uma puella inverecunda (“donzela impudente”); a união das esquerdas é confoederatio sinistra (dispensa explicações). O desodorante aparece como foetoris delumentum (“eliminador de fedor”) – sobra-lhe em precisão o que lhe falta em elegância... O hambúrguer é isicium hamburgense (“picadinho à moda de Hamburgo”), o flerte é amor levis (“amor leve” – esta até que é boazinha); o futebol é follius pedunque ludus (“jogo de pé e bola”) e o nosso simples gol torna-se retis violatio (“violação da rede”! Ah, outra coisa: as caixas eletrônicas em Latim existiram, sim, nos bancos do Vaticano, mas foram suprimidas há alguns anos.