A consulta vem do dr. Renato Failace, renomado médico gaúcho, professor emérito de Hematologia e escritor: “Na condição de leitor assíduo, tanto de suas breves crônicas em ZH como de seus excelentes livros, venho respeitosamente pedir-lhe um esclarecimento. Como se originou o H de Hematologia e demais palavras derivadas de “sangue”, pois, em Grego, é aima? Ficaria grato se, além desse caso pontual, houvesse um esclarecimento do H na língua grega”.
Caro dr. Renato: o alfabeto grego não possuía a letra H. A maneira de escrever variou muito (e ainda varia) na Grécia, mas é consenso representar o Grego Antigo com o famoso espírito áspero (ou “aspiração forte”), um sinal alto que se assemelha a uma vírgula invertida. Era colocado em cima da vogal inicial da palavra (convivendo lado a lado, quando havia, com os acentos gráficos) para indicar aquela mesma pronúncia aspirada que encontramos em palavras inglesas como house ou hair, por exemplo. Todos os vocábulos gregos que apresentavam esse sinal foram transliterados para o alfabeto latino com um H inicial.
Como nossos teclados são limitados, vou recorrer ao fabuloso recurso que a Emília do Monteiro Lobato legou ao pensamento brasileiro: façamos de conta que o apóstrofo que estou usando é curvo, voltado para a direita e está situado exatamente sobre a vogal: 'eros (pronunciado /heros/, de onde veio nosso herói); 'úmnos (pronunciado /húmnos/, de onde veio hino), 'odós (pronunciado /hodós/ “caminho”, radical presente em nosso hodômetro). Pois a palavra para sangue, 'aima, no Grego Antigo, era grafada com este sinal; pronunciada /haima/, entrou no Português como hema-, presente em hemácia, hemoglobina, hemorragia, Hematologia, entre tantas outras. Todavia, como o Grego moderno não mais tem esta pronúncia aspirada, os dicionários atuais não usam mais o sinal; vários estudiosos condenam esta prática, porque, como o senhor mesmo percebeu, ela obscurece a relação que existe entre uma palavra do Grego Antigo e a sua transliteração nas línguas românicas.
No Português, portanto, todo H inicial é etimológico, oriundo do Grego ou do Latim. Como por estas plagas ele é letra muda, sem som algum, volta e meia aparece algum profeta ortográfico, com olho arregalado, propondo sua extinção por ser “inútil”, sem perceber que deve haver algum motivo para o fato de quase todas as línguas ocidentais terem-no preservado. Além da função básica de assinalar a família a que a palavra pertence (por exemplo, hombridade está ligada ao clã de homem, não ao de ombro), a presença desta letra reafirma a inserção de nosso idioma na civilização greco-romana, da qual felizmente fazemos parte. Comparem hora (Lat.), hour (Ing.), heure (Fr.), hora (Esp.) e hora (Port.) com o ora, do Italiano, a única língua ocidental que suprimiu o H (cada roca com seu fuso, cada língua com seu uso, eu sei, mas pessoalmente não gostaria de escrever, como eles, abitare, eròico, onesto, umore, umano, nem de conviver com uma estranhíssima ora-H – a H-hour do Inglês, a heure-H do Francês, a hora-H do nosso idioma).
O senhor certamente não vai se opor a que eu aproveite a ocasião para responder a uma pergunta que me foi feita há mais de quinze anos pelo filho de um amigo: por que agá, o nome da letra, não tem H? Ele tinha treze, na ocasião, e a explicação, como se vê, teria sido muito indigesta para um espírito juvenil; hoje, com quase trinta, se estiver lendo esta coluna, vai compreender que agá só se escreveria com H se tivesse vindo do Grego ou do Latim – o que não ocorreu.