Escreve o leitor Luiz Fernando C., de Porto Alegre: "Bom dia, professor. O seu jornal não prima muito pela correção do Português. São muitos erros em cada edição, mas o que mais me chama a atenção é a total eliminação da mesóclise, que, ao que me consta, continua existindo em nosso idioma. Os colunistas e revisores simplesmente usam ênclise no lugar da mesóclise, o que, para mim, soa estranho e errado. Eles escrevem daria-se quando deveriam escrever dar-se-ia. Se escrevessem se daria ficaria menos errado mas eles escrevem assim em todos os casos em que deveria aparecer a mesóclise! Qual a sua opinião?"
Caro Luiz Fernando, atendendo a teu pedido, aqui vai uma explicação completa deste que constitui um equívoco histórico da gramática normativa. Se não couber nesta coluna, continuaremos na próxima, mas vale a pena, porque esse assunto ainda atrapalha muita gente. Vamos começar pelo básico.
Os pronomes oblíquos átonos – me, te, o, se, lhe, nos, etc. – não são vocábulos independentes na frase. Assim como a Lua orbita em torno da Terra, eles orbitam em torno do verbo — o que significa que virão ou imediatamente antes, ou imediatamente depois. Se estiver antes, dizemos que está em próclise; se estiver depois, dizemos que está em ênclise (depois eu falo na mesóclise). Isso nos traz uma pergunta inevitável: quando é correto usar antes? E depois, quando é?
Podemos dizer que a ciência da Linguística nasceu na primeira metade do séc. 20. Antes dela, muitos fenômenos simples eram inexplicáveis ou descritos de forma completamente equivocada — a título de comparação, imaginem como a Medicina antes de Pasteur explicava a disseminação da febre amarela! No caso da colocação dos pronomes, só o desenvolvimento da ciência nos permitiu descobrir como funcionava o sistema. Em primeiro lugar, descobriu-se que “em todas as línguas os pronomes têm sua colocação natural, que se aprende desde o berço; ninguém precisa na escola fazer aprendizagem especial de colocação de pronomes”.
Em segundo lugar, percebeu-se que haviam se desenvolvido duas modalidades (no mínimo) de nosso idioma, referidas nos estudos acadêmicos como Português Brasileiro e Português Europeu, e que talvez a maior diferença entre elas seja fonética, especialmente na pronúncia mais reduzida das vogais no falar lusitano. Isso tem um impacto direto na pronúncia dos pronomes: eles preferem usá-lo depois do verbo (Amo-te. Avisaram-nos. Agradeço-lhe), enquanto nós preferimos usá-lo antes do verbo (Te amo. Nos avisaram. Lhe agradeço (na fala, em todos os casos; na escrita, como veremos, há uma pequena restrição).
Ao contrário do que se imaginava, portanto, a colocação do pronome não obedecia a fatores sintáticos ou lexicais, mas sim fonéticos. Ora, como é bem aí que as duas modalidades do Português se distinguem, surgiram dois sistemas completamente diferentes: eles tendem à ênclise, nós tendemos à próclise. Eles colocam como querem, nós como nos soa melhor. As regras de colocação do pronome que aprendíamos na escola é uma invenção dos gramáticos brasileiros do final do séc. 19 e início do séc. 20 – antes, portanto, do nascimento da Linguística.
Tudo começou com as acirradas polêmicas entre Brasil e Portugal despertadas pela obra de nossos primeiros autores pós-Independência, especialmente José de Alencar e Gonçalves Dias. Muitos escritores do Além Mar receberam com notória má vontade — quase rancor, eu diria — esses recém-chegados que “ousavam” introduzir alterações sintáticas e lexicais na língua que, na cabeça deles, “pertencia” a Portugal, e reagiram com artigos e apedidos furiosos endereçados aos brasileiros, que responderam à altura (recomendo a leitura do divertido Duelos no Serpentário, uma antologia dessas polêmicas, organizada por Alexei Bueno).
Os dois maiores alvos de ataque eram o vocabulário usado e (como não poderia deixar de ser, como vimos acima) a nossa colocação dos pronomes. Palavras corriqueiras que fazem parte de nossa herança indígena e africana — como pitanga, capim, mandioca; caçula, dengue, quitute — indignaram os críticos lusitanos, que ainda consideravam os clássicos portugueses como o modelo acabado do idioma. É claro que essa repulsa aos nossos vocábulos se explica porque justamente nesta época grassava em Portugal um purismo extremado que condenava à fogueira qualquer palavra de língua estrangeira, especialmente da França.
No caso dos pronomes, então, a diferença era total (como deveria ser, aliás, em duas modalidades distintas foneticamente); contudo, como os dois lados da briga ignoravam esse fato que só seria determinado muito mais tarde pela Linguística, gramáticos caturras como Castilho acusaram os brasileiros de errar sistematicamente as regras dos escritores clássicos, enquanto de nossa parte, envergonhados, tentamos nos defender ensinando nos livros e nas escolas um sistema fantasioso de regras de atração, que não valem o papel em que vêm escritas. [Continua]