De Brasília escreve a leitora Bruna F.: "Caro professor, fui sua aluna no curso de Letras e ainda hoje, 30 anos faz, não deixo de aprender com o senhor nas colunas da GZH. Estou começando a ler a sério a obra de Monteiro Lobato — não a coleção infantil, que frequento desde menina, mas a dos livros chamados "adultos", que herdei de meu pai numa encadernação verde-escura. Por recomendação de vários amigos, comecei por A Barca de Gleyre, a correspondência, como o senhor deve saber, que Lobato manteve com seu amigo Godofredo Rangel por quase quarenta anos. Estou abismada com a lucidez que Lobato tinha sobre a literatura brasileira de sua época, mas esbarrei numa palavra que destoa de seu texto como a cebola na salada de frutas: ao incentivar o amigo Godofredo a publicar um de seus livros, ele escreve, com entusiasmo, "Precisamos gavar este país com o teu romance". Os bons dicionários registram gavar como variante popular de gabar, mas acho que isso não fecha a conta: "gabar este país com o teu romance" continua a não ter sentido algum para mim. Posso pedir o seu auxílio, caro mestre?".
É claro que sim, prezada Bruna! Na minha cartilha pessoal, o vínculo entre um professor e seus alunos nunca se desfaz (ao menos nesta vida...). Eu aprecio muitíssimo esse livro (aliás, o meu favorito, da série "adulta" do autor) e confesso que, na primeira vez, também empaquei ao encontrar este curioso gavar. Uma rápida ida ao dicionário me trouxe o mesmo resultado inútil que obtiveste; como estava com preguiça, resolvi continuar minha leitura assim mesmo, anotando mentalmente esta palavra para investigar mais a fundo outro dia — mas não foi necessário, porque logo depois Monteiro Lobato explica para o amigo, que também deve ter estranhado:
"Sabe o que é gavar? É a tradução do gaver francês – "comer demais ou fazer comer demais". Em Estrasburgo os produtores do Patê de Foie Gras prendem os gansos em gaiolas, pregam-lhes os pés para imobilizá-los e gavam-nos, isto é, metem-lhes pela garganta adentro um angu, a fim de superalimentá-los forçadamente" — e logo depois acrescenta: "Todos estão fanatizados por você – e eu com medo que isso te perca. Estás sendo vítima duma gavage de elogios – como em Estrasburgo fazem com os gansos do foie-gras. Cumpre que resistas sereno, impassível, superior". Mais adiante, tranquiliza o amigo quanto ao sucesso do futuro livro: "E não duvides da saída do teu romance; por isso respondemos nós. A máquina está bem montada – a máquina de gavar gansos ou de obrigar este país a ler à força".
Nota que Monteiro Lobato escrevia a palavra ainda em sua forma original do Francês, gavage, mas o termo sofreu aqui o mesmo destino dos seus irmãos que vieram da língua de Balzac: se sabotage, mirage e garage ganharam, na nossa alfândega, um M final obrigatório (sabotagem, miragem e garagem), gavage não escapou e se apresenta nestas bandas como gavagem. A palavra já está nos bons dicionários, que registram o significado usual que lhe é dado por médicos e veterinários: uma técnica de alimentação forçada, através de uma sonda, usada em animais de criação e também em pacientes inconscientes ou impossibilitados de deglutir.
Como podes perceber, esta é uma palavra de uso muito restrito, uma moeda que só circula no campo das Ciências Médicas. Monteiro Lobato bem que tentou, em vão, introduzi-la no léxico nacional, mas o número de explicações sucessivas que ele fornece sobre ela, ao longo da correspondência com o amigo, serve de claro indício de que ele já farejava que esta semente exótica não vingaria neste país tropical.
Já o verbo gavar registrado nos dicionários é outra coisa: podemos ouvi-lo na nossa serra gaúcha, por exemplo, usado com o sentido de "elogiar, vangloriar-se", como em "Não é para me gavar"... É apenas o velho gabar que sofreu aquela conhecida alternância entre o /b/ e o /v/, tão frequente nas línguas ibéricas, que produziu pares como bergamota/vergamota, piaba/piava, taberna/taverna e assobio/assovio, entre tantos outros.