O leitor Luiz Fernando C., de Porto Alegre, perguntou por que a imprensa praticamente deixou de usar a mesóclise. “Os jornalistas simplesmente usam ênclise no lugar da mesóclise, o que, para mim, soa estranho e errado, escrevendo daria-se quando deveriam escrever dar-se-ia.”. Vamos prosseguir a explicação que começou na coluna anterior.
Como estávamos vendo, a posição dos pronomes átonos (antes ou depois do verbo a que se ligam) tornou-se um falso problema nas nossas gramáticas escolares. Peço desculpas a alguns colegas, mas quem defende a existência das famigeradas “regras de colocação” ou, pior ainda, das delirantes “leis de atração” deve solicitar sua inscrição no clube dos terraplanistas, onde será aceito com entusiasmo. Na verdade, essas regras foram inventadas por quem não compreendia ainda o sistema que há muito está definido e consolidado pelo uso: em Portugal, os falantes espontaneamente colocam o pronome após o verbo porque lá, na pronúncia portuguesa, a vogal dos pronomes átonos fica desmilinguida e praticamente só se ouve a consoante. Eles dizem dá-me ou amo-te porque só podem falar assim; peçam a um falante nativo do PE (sigla consagrada para “Português Europeu”) para pronunciar as duas frases acima com o pronome antes do verbo e vão entender o que digo.
Já aqui na Pindorama os pronomes átonos, transplantados de Portugal, ficaram mais fortes, mais robustos e conquistaram uma proeminência que seus primos lusitanos não têm. Qualquer brasileira dirá (ou ouvirá) te amo (na fala, /ti amu/) porque só conseguimos falar assim (aliás, por isso temos aquela série de interjeições do tipo mífu, sífu, núsfu e quejandos).
Quem descreveu de forma bem sucinta o quadro atual do pronome no Português Brasileiro foi Mário Quintana: “Sempre me pareceu que as antigas gramáticas complicavam muito as coisas. Já diziam elas, por exemplo: Coloca-se o pronome oblíquo depois do verbo. Muito bem! O diabo é que se seguia uma lista de 15 ou 16 exceções. Ora, ficaria muito mais fácil se dissessem: o pronome oblíquo é colocado antes do verbo, exceto quando este inicia uma frase. E olhe lá!”.
De forma singela mas precisa, o poeta punha o dedo na ferida: como a nossa escolha intuitiva (a próclise) não era a mesma de Portugal (a ênclise), nosso sentimento de inferioridade com relação à antiga Metrópole nos fazia considerar “exceções” aquilo que na verdade era a nossa norma. E pronto! O único resquício do sistema europeu ainda tolerado por aqui é o que veda usar o pronome no início da frase, que ainda observamos, por etiqueta, na escrita (friso bem). Ou seja, na língua culta o apaixonado não deveria escrever Te amo, mas sim o esquisito Amo-te ou (100 mil vezes melhor, porque as Fúrias da gramática nada podem fazer) o tradicional Eu te amo, que mantém a próclise brasileira sem deixar o pronome no maldito início da frase.
Agora estou em condições de responder à pergunta do nosso leitor. Como vimos, o pronome estará ou antes, ou depois do verbo. Ora, eu, como brasileiro, uso a próclise em todas as frases. Se o verbo estiver no início, trato de preencher a casa inicial com o sujeito ou um pronome pessoal: Nós te avisaremos, eles se arrependeram, os docentes se reuniram, e por aí vai a valsa. Em suma, nunca vou usar a ênclise na minha vida! Ora, como a mesóclise é o nome fantasia que foi dado à ênclise com os verbos no futuro, daí decorre que nunca usarei a chamada “mesóclise”. Explico melhor.
O futuro do presente parece ser uma forma una mas é, historicamente, uma locução verbal invertida, em que o auxiliar haver se desloca da esquerda para a direita do verbo principal (amare habeo — hei de amar — amar hei — amarei). Isso acrescenta um dado novo ao uso da ênclise. Em eu te amarei, a próclise é a forma correta. Se, no entanto, não quiser usar o pronome pessoal eu, o pronome oblíquo te já não poderá iniciar a frase e teremos de recorrer à ênclise. Se antes ele estava à esquerda do verbo amar, devemos passá-lo para o lado direito do verbo, afastando temporariamente o auxiliar que está ali: amar+ei – amar+te — amar+te+ei. Os gramáticos tradicionais não enxergaram isso e imaginaram que pronome, neste caso, tivesse ido para o meio do verbo, quando, na verdade, ele ficou entre dois verbos (o que explica, p. ex., a dupla acentuação em comprá-lo-íamos). Por isso, quem quiser usar ênclise, sempre terá de fazer este malabarismo quando se tratar de um dos dois futuros, o do presente e o do pretérito.
E é aqui que dou toda a razão a nosso leitor Luiz Fernando: a turma não sabe mais como funciona a dita “mesóclise”. Se não quiser usar, faça como eu: fique sempre com a próclise, evitando começar a frase com o pronome. Agora, se escolheu deixar o pronome em ênclise e o verbo estiver no futuro, faça um serviço limpo. Em *daria-se (o asterisco indica forma errada), é o verbo dar que deve receber o pronome, deixando-se o auxiliar (no caso, o verbo ir) no final da locução: dar+se+ia = dar-se-ia. E assim convocar-te-ei (e não *convocarei-te), ouvir-me-á (e não *ouvirá-me), agradecer-lhe-emos (e não agradeceremos-lhe). Para quem gosta...