Assim como a cada ano as frutas se repetem na estação a que pertencem, assim também há perguntas que reaparecem todos os anos nesta coluna, seguindo um calendário a que já me acostumei. (1) Quando se aproxima o Natal, querem saber se Papai Noel tem plural; tem, sim: as lojas se enchem de Papais Noéis cansados e malnutridos. (2) No finzinho do ano, querem saber se devem desejar aos amigos um feliz ano novo com ou sem hífen; com, se eu estiver me referindo às festividades da passagem de ano (passei o ano-novo dormindo), mas sem, se estiver me referindo ao novo ano (Viram? aqui posso inverter a ordem substantivo/adjetivo!): aceite meus votos de um ano novo repleto de felicidades, blá, blá, blá. (3) Quando passa o São João e a festa é postergada para julho, querem saber se agora ela deve ser chamada de festa julina, porque o mês trocou — e é claro que não, porque este é um tipo de festa característico, geralmente realizada em junho, mas não necessariamente: para seu casamento em janeiro, uma noiva pós-moderna pode planejar um simples luau na beira da praia, ou uma festa cigana ou uma festa junina — e todos os convidados saberão exatamente que tipo de música vão ouvir e qual o traje deverão usar.
Quando chega a Semana da Pátria, entram em cena várias questões sobre a sintaxe e o vocabulário empregado em nosso hino. A pergunta mais frequente, usada tanto em concursos públicos quanto em programas de auditório na TV, é qual é o sujeito da frase inicial: "Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/de um povo heroico o brado retumbante". Admito que não é uma pergunta tola, porque o autor da letra, Joaquim Osório Duque-Estrada, que era um parnasiano amador (comparado, por exemplo, com Olavo Bilac ou Raimundo Correia), usou uma sintaxe que, apesar de correta, era antiquada mesmo para a primeira década do século 20 — e sabemos que qualquer inversão na ordem canônica do Português moderno aumenta exponencialmente a dificuldade de compreensão da frase.
É claro que ele tinha lá as suas razões: como todo poeta parnasiano, ele era escravo da métrica e da rima, o que explica, aliás, por que se contam nos dedos os bons poemas produzidos por esta escola. Por isso, para manter a rima e a cadência que Duque Estrada pretendia, ele inverteu, por exemplo, "o brado retumbante de um povo heroico" para "de um povo heroico o brado retumbante" (o que está em negrito é o núcleo).
O ganho que ele obteve não deixa dúvida: se cantarmos o hino numa e noutra proposta, todos concordarão que a segunda é muito, mas muito melhor. O problema é que uma inversão sintática como essa era perfeitamente assimilável para os letrados da época, acostumados a ler os sonetos de Camões ou os poetas de nosso Arcadismo, mas não para o brasileiro comum, seja o daquela época, seja o de hoje. Numa comparação um tanto tosca, mas eloquente, seria como oferecer "dos dois cantores a foto autografada" ou noticiar "das passagens aéreas o aumento do preço"...
E quem é, afinal, o sujeito do verbo que abre o nosso hino? Aquela terceira pessoa do plural, ouviram, instintivamente nos sugere a construção mais comum de sujeito indeterminado que temos no Português (usada quando eu não sei ou não quero identificar o sujeito: quebraram o vidro da porta, deixaram um envelope na portaria, dizem que estás apaixonado). Ora, os que assim entendem essa frase vão tropeçar logo ali diante, inexoravelmente. Considerando que já tenham percebido que "do Ipiranga as margens plácidas" é uma inversão semelhante ao "de um povo heroico o brado retumbante" que vimos há pouco, acabam tendo nas mãos uma frase quase aceitável — "Ouviram as margens plácidas do Ipiranga" — e por causa desse quase, muitos imaginam que esteja faltando, na versão que receberam, um acento de crase no a (algo como às margens plácidas, transformado em adjunto adverbial). Ledo engano: aqui o autor aplicou mais uma de suas inversões e colocou o sujeito depois do verbo — nada mais. O que ele diz é simplesmente "As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico". Só isso — mas com tanta volta que a estrofe tornou-se um verdadeiro quebra-cabeça.