Um leitor muito recente (descobriu esta coluna há pouco mais de um mês) escreve de Camboriú (SC) para, como ele confessa candidamente, "tirar a temperatura dessa coluna da Zero Hora". Entendi sua cautela: o seu Pedro W. (é o nome dele) quer saber se a cozinha deste restaurante aqui serve comida de substância ou se limita aos pratos insossos e requentados que servem nos aviões. "Só lhe escrevo porque me falaram muito bem da lhaneza com que o professor responde aos consulentes, sem expô-los ao ridículo simplesmente por manifestarem suas dúvidas". Sim, seu Pedro, essa simpatia por quem vem perguntar é a regra principal do meu código profissional (a segunda, não custa informar, é copiada de Arquíloco, poeta grego do séc. 7 a.C: "Eu firo duramente aqueles que me ferem"...).
Escreve ele: "Depois que me aposentei, vim morar em Camboriú, uma das mais famosas praias deste Estado. Não sei se o senhor sabe, mas está havendo aqui uma corrida imobiliária como eu nunca tinha visto, tem construções novas espalhadas por toda a cidade. E é daí que vem a minha dúvida: todo dia eu caminho até o mar e vejo, diante de prédios novos, cartazes de imobiliárias dizendo "Visite o decorado". O problema não é o sentido, mas sim a agressão ao nosso tão maltratado Português. Entendo perfeitamente que seja um convite para visitar um apartamento modelo; — mas por que deixar o substantivo subentendido, em vez de escrevê-lo com todas as letras? Por acaso passou a ser moda esconder o substantivo da frase? Espero que o senhor responda, pois não consegui achar isso na minha gramática. Ah, aproveitando o selo da carta: este decorar é o mesmo verbo da tabuada, ou é uma coincidência?"
Pois vamos lá, seu Pedro — mas começando pelo fim. Um verbo como provar, por exemplo, pode significar, entre outras coisas, "demonstrar a verdade", ou "comer ou beber um bocadinho de algo", ou ainda "vestir uma roupa para ver se fica bom". O fenômeno representado aqui é a polissemia ("um mesmo vocábulo com vários significados"). Já manga, por outro lado, pode ser a fruta (vocábulo oriundo do Malaio) ou a parte da vestimenta que recobre os braços (do Latim manica); o fenômeno representado aqui é a homografia (dois vocábulos diferentes que têm a mesma forma).
Este último é o caso de decorar. O verbo da tabuada, como o senhor diz, vem de cor, saber de cor, onde cor significa coração (know by heart e savoir par coeur, no Inglês e no Francês). O outro, o que o senhor viu nas imobiliárias, vem do Latim decorare ("enfeitar, ornamentar"). São sósias perfeitos, mas cidadãos com CPF e digitais completamente diferentes.
Vamos agora ao cartaz que despertou sua dúvida. Como o senhor é recém-chegado à coluna, vou repetir algo que escrevi a respeito de vestibular, adjetivo derivado de vestíbulo. Na Medicina, fala-se de glândula vestibular, sistema vestibular, fisiologia vestibular — mas essas são expressões técnicas, usadas por um público específico e restrito. Para ingressar na universidade, no entanto, milhares de candidatos prestam um exame vestibular. Num processo assaz corriqueiro, os falantes simplificam e passam a usar apenas o adjetivo para se referir à expressão inteira, deixando o substantivo subentendido: "Como foi teu irmão no vestibular?'.
É claro que este processo só funciona dentro de um contexto conhecido por quem fala e por quem ouve. Um leigo não compreenderia a aflição de um advogado que no apagar das luzes de seu prazo percebe que esqueceu a (petição) inicial no computador da namorada; alguém que foi criado no mundo gratuito da TV e da internet talvez não entenda quando um avô pede ao neto que compre duas inteiras e uma meia (entrada) para o circo. Certamente é aqui que reside estranheza que o senhor sentiu diante dos dizeres do cartaz: para os corretores e os possíveis compradores de imóveis, mas não para o senhor, "visite o decorado" tem todo o sentido do mundo. Ao menos, imagino que todos entenderíamos se alguém ao telefone informasse que já ia chegar ao churrasco trazendo umas geladas...