Todo professor experiente sabe que a pergunta que um aluno faz, com raras exceções, exprime uma dúvida que muitos de seus colegas de turma compartilham. Esta coluna não é uma sala de aula, mas funciona como se fora: na maioria das vezes, o leitor que vem fazer uma consulta é, talvez sem o saber, o porta-voz de milhares de outros usuários da língua portuguesa. Este é o caso de Jaime B., de Porto Alegre, que considera o pronome vós como uma pedra no sapato do falante moderno. Diz ele:
"Professor Moreno, quando virá o dia em que os teóricos, estudiosos, acadêmicos ou aqueles que conduzem a gramática da Língua Portuguesa, vão substituir o pronome da segunda pessoa do plural (que alguns ainda chamam de vós) pelo vocês, visto que ninguém o emprega há tanto tempo? Além disso, essas formas verbais arcaicas, do tempo de D. Pedro I, não poderiam ser substituídas pelas formas da terceira pessoa do plural, como todo o mundo usa? Pergunto: seria o senhor, Professor Emérito, uma das pessoas que ainda usa este pronome e suas conjugações verbais? A língua é mutante, só falta aqueles que decidem aceitarem isso".
Prezado Jaime, necessito dividir a minha resposta em duas seções. Na primeira, verás que tens toda a razão — mas não na segunda, como vou demonstrar. Vamos lá: não precisas apelar aos teóricos, estudiosos et caterva para substituir o vós por vocês. Para começar, porque todo esse pessoal que enumeraste acima, incluindo este seu criado aqui, não tem poder para mudar coisíssima nenhuma do idioma; sua função é simplesmente observar e tentar descrever, com base no uso, uma forma padrão de falar e escrever socialmente aceita por nossa comunidade linguística. É claro que existem alguns que gostariam (e como tentam!) de mandar na música do baile, mas estão se tornando aves em extinção. Além disso, e mais importante ainda, não precisas apelar a ninguém mais porque hoje o Brasil inteiro concorda exatamente com o sistema que defendes: tu ou você para o singular (a escolha é livre), vocês para a terceira do plural. Pode ser que exista em algum rincão esquecido, mas nunca vi um brasileiro vivo que empregue o vós espontaneamente.
Porém — e este é um grande porém — o vós e as formas verbais respectivas devem obrigatoriamente fazer parte das gramáticas, dos currículos escolares e dos livros didáticos. Como homem prático e objetivo que pareces ser, vais perguntar por quê. "Como nunca pretendo usar essas formas, elas não são importantes para mim". Ledo engano, Jaime. Na verdade, um vocábulo pode ser usado em duas situações: quando o empregamos numa frase ou quando o reconhecemos ao vê-lo num texto de outrem. Aqui também se percebe aquela imensa diferença entre o vocabulário ativo e o vocabulário passivo de cada um de nós. O número de palavras que eu reconheço é muito, mas muito maior mesmo do que o número de palavras que eu consigo mobilizar quando estou escrevendo ou falando, fato que fica ainda mais notório quando se trata de uma língua estrangeira.
Por exemplo, imaginemos que designem o prezado leitor para uma missão em Budapeste e você, para se preparar, faça um estafante curso intensivo de Húngaro de um mês inteiro, com 10 horas-aula por dia — e imaginemos também que, na volta, eu perguntasse se todo esse esforço tinha valido a pena e você respondesse que não tinha aprendido o suficiente para falar, mas ao menos tinha entendido quase tudo o que diziam. Qual seria o meu comentário? "Ah, então foi útil!" — e bingo! Você se daria conta, então, de que útil vem de uso, e de que você usou as palavras para compreender o que falavam, embora ainda não se sentisse apto para empregá-las no seu próprio discurso.
E o ínicio daquele famoso soneto de Camões, "De vós me aparto, ó vida! Em tal mudança, sinto vivo da morte o sentimento" — você compreende esses dois versos? Então, sinto muito dizer, acaba de usar o vós. E o que diz Jesus no Evangelho (Mateus 11, 28-30), "Vinde a mim todos vós que estais cansados"? Isso você entende? Então, amigo, usou o pronome vós e dois verbos conjugados na segunda pessoa do plural, o imperativo vinde e o presente estais. É claro que há versões modernizadas que já seguem a tendência dominante de passar tudo para a terceira pessoa ("Venham a mim todos os que estão cansados"), mas a tradição escrita contém milhares de textos em que este pronome é de uso corriqueiro.
Então, se o amigo entendeu bem as passagens acima, trate de agradecer à formação que recebeu. É por causa disso que a escola dispende — e deve continuar dispendendo — tanto esforço para ensinar a nós todos essas formas que hoje parecem inúteis, mas que estiveram ativas em vários séculos da história do Português. Esta língua que abrange as palavras que usamos hoje e as que outros usaram antes de nós é a chave indispensável para acessar nossa tradição cultural e nosso patrimônio literário.