Uma pessoa a quem muito estimo perguntou se eu tinha notado que na novela Terra e Paixão o personagem principal sempre pronuncia a palavra soja com o O fechado. "Eu sempre disse com o O aberto, rimando com loja, mas agora eles falam com o O fechado, como em bojo; daí fiquei em dúvida, pois a Rede Globo sempre caprichou no Português. Podes me dar uma mãozinha?".
Ora, minha cara, como já informei aqui muitas vezes, há mais de trinta anos não sei o que é uma novela; nada tenho contra elas, pois cada um tem o direito de se divertir como quer, mas confesso que, de minha parte, quando quero gastar um tempinho à toa, prefiro investi-lo nos desenhos animados do Cartoon Networks. Isso, porém, não impede que eu responda à tua pergunta: é O soja ou A soja — ou seja, soja é menino ou menina (quiçá menine)?
Todos os autores que estudam seriamente o nosso idioma concordam — entre eles o nosso Luft — com a ideia de que todo e qualquer substantivo têm um gênero lexical, que será masculino ou feminino (o neutro não existe). Portanto, se tomarmos uma sacola contendo 500 substantivos, deveríamos ser capazes de distribuí-los corretamente por essas duas categorias, com sobra zero. Quando se trata de seres animados (aluno, cantora ou abade), geralmente o gênero combina com o sexo biológico — o macho da biologia corresponde ao masculino da gramática, a fêmea da biologia corresponde ao feminino da gramática.
Todos os demais substantivos, no entanto, ganham um gênero arbitrário, que aparentemente não seguem critério algum. Talvez seja a forma? Não, não é. Basta comparar os masculinos alfinete, café e coice com os femininos parede, chaminé e foice para perceber que este critério não interferiu na classificação. Talvez seja então o significado? Também não. Por exemplo, agulha e alfinete, residência e domicílio são pares que pertencem a uma mesma família semântica, mas isso em nada influiu na definição do gênero gramatical.
Por causa disso, nossa tradição gramatical registra, em diferentes épocas, a hesitação quanto ao gênero de certos vocábulos, como é o caso de planeta, cometa, mapa, tapa, diadema, hoje masculinos, mas antigamente femininos. Gil Vicente pergunta "que planeta é aquela"; João de Barros descreve uma cometa; para Francisco Manuel de Melo, o baralho é, na verdade, a baralha (essa é boa! e pode ser aplicada a outros vocábulos parecidos...). Tapa era feminino ("levou uma tapa") mas hoje é masculino — embora o antigo gênero retorne sorrateiramente quando usamos o aumentativo tapona. O padre Bernardes fala na "coroa de espinhas" de Cristo, mas com o tempo e o uso passamos a considerar como diferentes o espinho do espinheiro e a espinha do peixe (e do adolescente).
Como o gênero de todos os substantivos não-animados é uma convenção, é natural que ainda hoje muitos falantes hesitem quanto ao gênero de musse, cal, alface, agravante, entre muitos outros (no momento, todos os citados são femininos; se vão continuar assim, só o silencioso plebiscito dos séculos poderá nos dizer).
Pois a soja é um exemplo vivo desse processo. Quando entrou aqui no Brasil, no século passado, provinda da China — um vocábulo novinho em folha — ela recebeu no passaporte brasileiro o selo de masculino. A escolha se baseava na sua classificação na gigantesca família dos feijões (no Houaiss — eu me dei o trabalho de contar! — encontrei mais de cem!): feijão-adzuki, feijão-fradinho, feijão-soja, e por aí vai a valsa.
Acontece que essa classificação, por científica que seja, não tem eco no coração dos falantes: excetuando-se os agrônomos, botânicos e demais especialistas, o brasileiro não associa a soja ao feijão. Numa inesperada quebra da safra de feijão, o Governo tentou equilibrar o estoque misturando o feijão com a soja (pela lógica, dois tipos de feijão), e nos supermercados começaram a vender aqueles saquinhos mezzo a mezzo, como as pizzas de dois sabores. Que eu me lembre, as donas de casa derramavam o conteúdo do saco numa panela com água, esperavam alguns segundos para que os grãos de soja boiassem (sim, eles boiam) e os descartavam no lixo. A sentença estava clara: na cabeça de todos, soja é soja, feijão é feijão.
Como aquela associação científica da soja com o feijão passa totalmente despercebida na prática — e mais ainda, como soja termina em A e tem uma vogal O aberta, dois traços fonológicos que só aparecem juntos em vocábulos femininos (vide loja, sogra, moda, roda, bosta, etc.), o falante passou a repelir o gênero masculino que os gramáticos tradicionais defendiam. Os dicionaristas acompanharam a tendência: primeiro, passaram a admitir os dois gêneros para soja, para, logo em seguida, registrá-la exclusivamente com o gênero feminino. Minha amiga tem razão ao estranhar a linguagem dessa novela; errada não está, como vimos, mas significa retroagir — sabe-se lá em nome de quê — uns quarenta anos de evolução.