A mitologia da Antiguidade — tanto na matriz grega quanto na sua filial romana — contribuiu com dezenas de vocábulos que circulam livremente na maior parte das línguas ocidentais. Como já mencionamos várias vezes ao longo dos vinte e poucos anos de existência desta coluna, nem todos se dão conta, por exemplo, de que afrodisíaco vem de Afrodite, que venéreo vem de Vênus, que marcial vem de Marte, que cereal vem de Ceres, que janeiro vem de Jano, que hermético vem de Hermes, que hipnotismo vem de Hipnos (o deus do sono), que morfina vem Morfeu (o deus dos sonhos) e que o museu é, no fundo, a morada das Musas...
Falo nisso por causa da consulta de um velho amigo (que só não nomeio porque ameaçou romper nossa amizade, se eu o fizesse). Escreve ele, depois das habituais (e inevitáveis) lamentações sobre a rapidez com que tudo muda: "Ontem tive um pneu furado e só quando abri o porta-malas foi que lembrei que há meses eu devia ter mando consertar o estepe. Como tinha parado bem na frente de uma padaria, entrei para perguntar se havia uma vulcanizadora ali por perto. O guri do balcão e a moça da caixa me olharam como se eu estivesse falando húngaro, mas um freguês, muito gentil, serviu de intérprete e explicou aos dois jovens que eu estava querendo saber se tinha ali por perto uma borracharia. Para minha sorte, tinha uma a duas quadras dali, e muito boa; consertaram os dois pneus e consegui chegar em casa antes do jogo. Olha, eu nunca tinha prestado atenção à palavra vulcanizadora, e pensando bem até que ela é mesmo esquisita. Que diabo tem a ver com um vulcão?".
São irmãs, meu caro amigo — ou primas, no mínimo. Ambas têm o mesmo DNA clássico – na verdade, do Latim. Em Roma, o deus do fogo e da forja era Vulcano (que na Grécia atendia pelo nome de Hefesto). O derivado mais óbvio é o próprio vulcão, que seria naturalmente a oficina subterrânea do ferreiro divino, e as chamas e a lava das erupções seriam nada mais, nada menos que o sinal de que o deus estava lá embaixo trabalhando. Em homenagem a ele, celebravam-se em Roma as festas denominadas de vulcanais (assim como Baco era celebrado nas bacanais), e o adjetivo vulcânico, além de seu sentido geográfico, sempre foi usado metaforicamente como sinônimo de "intenso, ardente, impetuoso" — daí as paixões vulcânicas, tão comuns na literatura de folhetim.
No teu caso, as vulcanizadoras — como diz o nome — vulcanizam o pneu — isto é, usando misteriosas (para mim) substâncias, invocam o espírito do deus Vulcano, aplicam na borracha um calor dos infernos, reforçam o local danificado e põem o velho pneuzinho a rodar de novo alegremente.
O assunto me interessa de perto porque em breve, no mês que vem, vou novamente visitar o eterno Etna, o lendário vulcão da Sicília, e caminhar mais uma vez, se os deuses permitirem, ao redor de sua impressionante cratera. Segundo a mitologia, o Etna serve também de prisão a um dos gigantes que certa vez se revoltaram contra os deuses do Olimpo; se ele estiver quietinho, vou subir; se não, fico mesmo em suas encostas, onde vicejam excelentes vinícolas.
Lá dentro, no fundo, talvez ainda estejam os restos de Empédocles, o célebre filósofo pré-socrático, "a figura mais espalhafatosa da filosofia antiga" segundo Nietzsche. Tinha cabelos longos e usava vestes de cor púrpura, um cinto de ouro, sandálias de sola de bronze e uma coroa délfica. Sempre acompanhado de escravos, mantinha o mesmo ar grave e digno de um verdadeiro rei, e não demorou a divulgar um boato de que iria se transformar num deus. Segundo relatos confusos, certa noite, numa festa na encosta do Etna, uma voz potente teria bradado seu nome. Ele se retirou para atender ao misterioso chamado, para nunca mais ser visto. Uma busca minuciosa descobriu uma de suas sandálias com marcas de lava, certamente expelida pelo vulcão; segundo alguns desafetos, aquela teria sido apenas uma forma ardilosa de simular sua morte, deixando-o livre para assumir outra identidade.
Destino semelhante, mas mais trágico, teve o nosso conterrâneo Silva Jardim, abolicionista e ativista político, republicano da primeira hora que logo se desencantou do rumo tomado pelo movimento. Desgostoso, amargurado, autoexilou-se na Europa. Ao visitar a Itália, foi a Pompeia em julho de 1891, num dia em que o Vesúvio estava em franca atividade. Apesar de alertado para o perigo extremo — talvez até secretamente atraído por ele — caminhava afoitamente pela boca da cratera quando um tremor mais forte esboroou a borda debaixo de seus pés e ele desapareceu para sempre no abismo — sem um grito sequer, segundo as testemunhas.