A dúvida vem de Ana Júlia W., jovem mãe do Paraná: “Prezado Professor: fui aprovada no vestibular e comecei a jogar fora a montanha de papel que usei para estudar. Como está tudo riscado, não serve para nada, e meu marido disse que vamos fazer uma grande fogueira no sítio para brincar com as crianças. Porém, olhando um por um antes de descartar, encontrei uma dúvida anotada no pdf do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente: é naquela parte em que o Corregedor apresenta um documento ao Diabo e este responde ‘Oh, que isca este papel para um fogo que eu sei’. Meu professor do cursinho também acha que a frase não tem muito sentido no contexto, que não fala de pesca. É isso mesmo? Acompanho o senhor no site Sua Língua e leio sua coluna na ZH pela internet; será que isso me dá direito a uma resposta?”.
Cara Ana Júlia, o simples fato de teres lido atentamente o texto integral de Gil Vicente (e não o seu resumo, como soem fazer quase todos os vestibulandos de hoje) já te assegurou um lugar vip entre os perguntadores desta coluna. Antes de responder, no entanto, peço licença para rememorar para os demais leitores o enredo desta peça, a fim de que todos possam seguir meu raciocínio: num pequeno porto estão ancoradas a barca do Inferno e a barca da Glória (do Paraíso), capitaneadas pelo Diabo e pelo Anjo, respectivamente. Os personagens – o Fidalgo, o Avarento, o Frade, a Alcoviteira, etc. – vão chegando um a um, todos com a esperança de conseguir lugar no Paraíso, mas a maioria termina sendo rejeitada por causa dos pecados e malfeitos que cometeram em vida.
No caso do Corregedor (cargo equiparável, mutatis mutandis, ao de um juiz de nosso Supremo), ele comparece cheio de empáfia e de latinórios, dirigindo-se espontaneamente à barca do Diabo, que é mais bonita e enfeitada. Quando fica sabendo que o destino é o fogo do Inferno, protesta, apresentando suas credenciais e alegando sua carreira ilibada. O Diabo, porém, que tudo sabe, menciona as sentenças que ele vendia e a extorsão dos comerciantes judeus feita por sua mulher (ao que o Corregedor, muito moderno, alega que isso eram lá negócios dela: “Não são pecados meus!”). Com a credencial na mão, o Diabo então profere a fala a que te referes: “”Oh, que isca este papel para um fogo que eu sei”. O fogo, nós também sabemos qual é; e a isca? Excluindo o papel-moeda, que sempre vai atrair peixinhos e peixões, papel pode servir de isca?
Ora, claro que sim: para o isqueiro. Talvez não saibas, mas até a invenção e comercialização dos fósforos de segurança, no início do séc. 20, a maneira mais usada para acender o fogo era bater com um pedaço de ferro (chamado fuzil) numa pedra (sílex ou pederneira) para, com as fagulhas obtidas, produzir uma pequena brasa na isca (geralmente um pedaço de pano queimado ou um chumaço fofo de algodão, materiais facilmente inflamáveis). O conjunto desses avios era chamado de isqueiro, e cheguei a ver, na mão de velhos peões da fronteira, isqueiros assim, à la antiga, guardados numa ponta de chifre. É por isso, aliás, que em toda nossa literatura se fala em “bater o isqueiro”, “bater o fuzil”, “petiscar a pedra” e similares. É por isso também que na letra de Au claire de la lune (lembra?), o meu amigo Pierrot manda bater na porta da vizinha, pois ali “on bat le briquet” – ali se ouve bater o isqueiro. Olhares menos inocentes veem nessa canção uma espécie de antecipação do funk: minha vela está apagada, não tenho mais fogo, a vizinha pode acendê-lo, o isqueiro dela solta faísca, etc. ? tudo dentro do antiquíssimo esquema metafórico de associar fogo e sexo. Aliás, não é por acaso que o aplicativo de encontros românticos se chama de Tinder – que é a palavra inglesa para “isca para fazer fogo”.