A consulta da semana vem da dona Helena Passos da Rocha, que tem bom ouvido para os fatos da língua e escreve molhando a pena no tinteiro do elogio: "Tenho 76 anos; gosto muito de ler jornais e é com prazer que leio as suas colunas quinzenais. Cursei até o segundo grau completo e há algum tempo tenho vontade de questioná-lo a respeito de uma palavra que me intriga muito, já que o senhor sabe até de onde as palavras nascem. A palavra é costas (digo costas do corpo humano). Coçamos o peito, mas coçamos as costas; ora, por que esse plural? Espero não estar escrevendo bobagens, mas esta é a minha dúvida".
Não há nenhuma bobagem aqui, Dona Helena. Eu já escrevi sobre isso há muito tempo (talvez não saiba, mas O Prazer das Palavras está entrando no seu décimo oitavo ano), mas terei imenso prazer de reabrir este caso em sua homenagem. Este plural é realmente esquisito mas tem uma explicação: o sentido primitivo de costa, que provém de vocábulo idêntico no Latim, é o de costela. Quem se queixava de dor nas costas estava acusando dor nas costelas, muito simplesmente. Isso ainda fica bem evidente nos vocábulos costal (relativo às costelas) e intercostal (situado entre as costelas), onde aparece o radical puro. A nossa tradicional costelinha de porco, segundo o Aurélio e o Houaiss, é chamada em Portugal entrecosto (ou seja, a carne "entre costelas"). O entrecôte francês, que alguns denominam de filé de costela, é também conhecido pela forma aportuguesada (e mais do meu gosto) de entrecô, que reproduz mais ou menos a pronúncia francesa.
Ora, como acontece muitas vezes na história do idioma, o ingresso de novas palavras numa família lexical termina provocando uma redistribuição dos papéis. Foi exatamente o que aconteceu aqui: com a formação do derivado costela, com sua vaga noção diminutiva, as costas passaram a designar tão simplesmente a parte de trás do tórax, o dorso; por isso falamos em nado de costas, deitar de costas, coçar as costas, mãos atrás das costas, carregar o time nas costas, matar pelas costas, etc. Transpondo isso aos objetos, falamos nas costas da mão, da cadeira, nas costas do papel.
Até o séc. 19, o termo costela era raramente empregado. Na Vida e feitos de Júlio César, versão portuguesa de um original francês do séc. 14 (edição cuidadosíssima da professora Mira Mateus), um guerreiro dá no oponente uma espadeirada com "tão grande força que o passou pelo meio do corpo e cortou-lhe duas costas, e saiu-lhe a ponta acerca do espinhaço". Num acordo notarial do séc. 15, fica estabelecido que um casal deveria receber, como parte da paga por determinada tarefa, "uma espádua de porco de nove costas".
O melhor exemplo desse antigo emprego do termo, contudo, vem do séc. 17, da pena do Padre Vieira, que sempre lerei com um misto de encanto, admiração e pura inveja de quem escreve tão bem:
"Diz o texto sagrado que tirou Deus uma costa do lado de Adão, e que desta costa formou a Eva; mas duvidam, e com muito fundamento os teólogos, que costa de Adão foi esta, porque se era uma das costas de que naturalmente se compõe o corpo humano, segue-se que o corpo de Adão ficou defeituoso e imperfeito, o que se não deve admitir, sendo Adão o primeiro homem, e o modelo original de todos os homens que dele haviam de nascer. E se o corpo de Adão ficou perfeito, antes perfeitíssimo (como era bem que fosse), que costa foi esta sua, de que Eva se formou? Responde Santo Tomás que o corpo de Adão, quando ao princípio foi criado, tinha uma costa demais em um dos lados, e que deste lado e desta costa, que nele sobejava, foi formada Eva" (Sermão da Bula da Santa Cruzada).