A rua sempre foi o lugar de Pablito Aguiar. É ali que encontra a matéria-prima do seu trabalho: as pessoas. Aos 32 anos, o jovem quadrinista é conhecido não por inventar personagens, mas por retratar a vida real de gente comum. Pessoas tão normais que, não fosse o traçado e a tinta, passariam despercebidas por todos nós.
Morador de Alvorada, na Região Metropolitana, Pablito iniciou pelos conterrâneos. Quis contar a vida dos alvoradenses para melhorar a autoestima de uma cidade que costuma figurar na seção policial dos jornais. Ouviu e desenhou gente de todo tipo: a mãe de santo, o padre, o projecionista do cinema mais antigo, o morador de rua, o escritor. Em 2017, reuniu essas histórias no livro Alvorada em Quadrinhos, que lhe garantiu o primeiro lugar na última edição do Salão Internacional de Desenho para a Imprensa, importante premiação em Porto Alegre que reconhecia o trabalho de grafistas de todo o Brasil.
Em 2019, passou a andar pelas ruas de Porto Alegre em busca de histórias de quem faz a Capital. Com um traço mais adulto e olhar mais preocupado com temas sociais, seu trabalho ganhou outra dimensão. Retratou, por exemplo, uma médica que atende famílias de comunidades, um pescador que se entristece com a poluição do Guaíba, uma dona de casa da periferia e o porteiro do edifício Santa Cruz, o mais alto de Porto Alegre, prédio que o pai ajudou a construir com as próprias mãos. Histórias que nunca seriam contadas se ele não tivesse um interesse genuíno por essas vidas.
— Pessoas mais humildes me interessam mais. Sinto que meu trabalho tem valor maior para elas. Não tenho interesse em conversar com uma pessoa que já foi ouvida diversas vezes — diz o desenhista.
Pablito chama essas conversas de entrevistas, o que dá uma noção de como encara o próprio trabalho. Para ele, não são apenas desenhos, mas jornalismo em quadrinhos, gênero que tem Joe Sacco como um dos pioneiros e que no Brasil foi difundido por Alexandre de Maio, mas ainda é pouco explorado. Nas histórias de Pablito, não há um tema específico, uma pauta urgente, como no clássico Palestina: Uma Nação Ocupada (1994), em que Sacco dá espaço para judeus e palestinos contarem suas versões do conflito, e também em Meninas em Jogo (2014), em que Maio desenha para quem quiser entender a teia de relações por trás da exploração sexual de crianças e adolescentes. Suas histórias são despretensiosas, quase acidentais. Como se, ao andar pela rua, tivesse trombado com aquela pessoa e visto nela algo diferente. Com Adriana de Oliveira Machado da Rosa, 45 anos, foi mais ou menos assim.
— Estava indo para a igreja com meus filhos. Sentei no banco do ônibus, bem do lado dele, e meus filhos à minha volta. Aí ele começou a nos olhar, olhar muito. Começamos a trocar ideia e ele pegou papel e caneta da bolsa. E nisso começou a desenhar um retrato do Pedrinho (o filho caçula de Adriana) — conta a mulher.
O resultado é um delicado quadrinho sobre uma mulher negra, periférica e evangélica, que após o marido morrer por causa da aids encontrou na igreja a força para cuidar sozinha de cinco filhos. Moradora do bairro Nonoai, na zona sul de Porto Alegre, Adriana se surpreende ao ver-se retratada nos desenhos.
— Me senti divina, divina por ele ter feito esse trabalho lindo. Vou guardar os quadrinhos, são meu tesouro. Quando tenho oportunidade, mostro para as pessoas. Ali é a história real, do povo mesmo. Alguma coisa a gente sempre aprende com essas histórias.
Ao estreitar o foco para a subjetividade do personagem, fragilidades que demarcam sua posição no mundo, Pablito faz uma crítica sutil à sociedade, diferentemente de um dos maiores nomes do desenho no Estado, o veterano Santiago, reconhecido pelas charges políticas sempre mordazes. Ainda assim, Pablito diz se inspirar nele para esmiuçar o desenho, enriquecer com detalhes.
Santiago define o trabalho de Pablito:
— Pablito foi revelado pelo Salão de Desenho de Imprensa que a prefeitura de Porto Alegre sepultou e era um dos grandes canais para revelar jovens grafistas. Se manteve à altura do prêmio com as suas excelentes crônicas de pessoas comuns da periferia que ele tão bem fixou na linguagem da história em quadrinhos. A simplicidade do seu desenho casa muito bem com os relatos simples e humanos que nos conta — diz o mestre.
Retratos da pandemia
O plano era lançar o Porto Alegre em Quadrinhos ainda na metade do ano, mas então veio o coronavírus e Pablito parou de ir para a rua. Também pararam as entrevistas e os relatos de quem compõe a cidade. Levou algumas semanas para que aderisse a um dos mais populares meios de comunicação na quarentena, as videochamadas. Só que, enquanto a humanidade vive a experiência global de uma pandemia, entendeu que o tema não poderia ser ignorado.
Na revista Parêntese, publica quinzenalmente relatos de quem vive o isolamento ou de quem não pode ficar em casa porque está na luta contra o vírus. Todos os quadrinhos são divulgados nas redes sociais, onde Pablito, expoente de uma geração de grafistas que tem na internet sua principal plataforma de divulgação, é lido e tem público cativo. Por lá, até a Laerte Coutinho, cartunista de Zero Hora e uma das maiores do país, anda elogiando seu trabalho.
Mas ele sente mesmo é saudade da rua.
— O Porto Alegre em Quadrinhos tinha o objetivo de me fazer viver algo com a pessoa. Isso faz falta. Mas estou tranquilo, daqui a pouco, vai voltar.
As entrevistas por videochamadas seguirão até que a recomendação seja para ficar em casa. A esperança de Pablito é que, antes do fim do ano, possa retomar o Porto Alegre em Quadrinhos. Enquanto não puder, o sonho do segundo livro ficará suspenso. Assim como a vida de toda a gente comum.