As pernas correndo aparecem logo no primeiro quadrinho. A sensação de liberdade, porém, não passa de um sonho do personagem. Quando decidiu contar a própria história de vida em seus desenhos, o cartunista Rafael Corrêa já não podia mais correr.
O primeiro sinal foi confundido com uma ressaca. Era março de 2004 quando, depois de tomar todas em uma festa de casamento, ele acordou indisposto e enxergando duas coisas onde só havia uma. Culpou o mal-estar que costuma derrubar quem comete excessos na noite anterior.
A fadiga passou, mas a visão dupla permaneceu causando preocupação. Para dirigir, fechava uma pálpebra na tentativa de ajustar o foco. Procurou oftalmologistas, que garantiram: não havia nada errado com os olhos, e o efeito de enxergar tudo dobrado foi embora com o passar dos dias.
– É uma virose – diziam os médicos.
Vindo de Rosário do Sul, na Fronteira Oeste, Rafael retornou à rotina de desenhista. Tinha 28 anos e já era reconhecido com as histórias de Artur, o Arteiro, nas quais retratava as peripécias de um menino de cabelo amarelo que vivia nos anos 1980.
Quatro anos transcorreram até que outro sintoma surgisse. Em 2008, após uma partida de futebol com amigos, sentiu as pernas excessivamente pesadas. A cada longa caminhada o cansaço se repetia. Mas os médicos seguiam espantando as más previsões.
Em 2009, ao dividir a quadra de futsal com os cartunistas que conheceu nas reuniões dos Grafistas Associados do Rio Grande do Sul (Grafar), entre eles Moa Gutterres e Edgar Vasques, ficou exausto logo aos 10 minutos de jogo. Contentou-se em montar guarda na goleira. Seria a sua última partida de futebol, aos 33 anos.
Logo a fadiga atingiu a mão esquerda – a que usava para desenhar. Foi quando procurou um neurologista, que diagnosticou esclerose múltipla, doença autoimune e degenerativa que, a partir dos ataques das células de defesa ao sistema nervoso, provoca lesões no cérebro e na coluna. Os danos interferem na coordenação motora, tirando a força dos membros e impedindo a locomoção. Mais tarde, Rafael descobriria que seu tipo de esclerose é progressiva: o corpo vai se debilitando aos poucos, com longos intervalos entre um sintoma e outro, o que dificulta o diagnóstico.
Nos quadrinhos de Memórias de um Esclerosado, série que criou em 2015 para contar o dilema de ser um cartunista comprometido pela doença, o momento em que a esclerose é identificada é retratado como um mergulho. Talvez, um afogamento. Depois, há uma volta à tona com direito a sentir-se aliviado – ainda que abalado pela revelação.
– Agora sei qual é o inimigo – pensou.
Cercada de incertezas sobre as causas e a forma como evolui em cada paciente, a esclerose não tem cura. Apesar de Rafael ter conseguido identificar o inimigo que atacava seu corpo, ainda não conseguiu freá-lo.
Antes do diagnóstico
Segundo filho de quatro irmãos, desde cedo Rafael revelou talento para o desenho. Por volta dos cinco anos, já desenhava personagens.
Fã de Hagar e Turma da Mônica, destacou-se em sala de aula inventando suas próprias turminhas. Chegou a expor os trabalhos em uma mostra de talentos promovida para filhos dos funcionários do Banco do Brasil, onde trabalhava sua mãe, Laureci. Aos 14, publicava tirinhas no jornal Gazeta de Rosário. Mantém ainda hoje uma caixa de madeira com os desenhos feitos à caneta.
Chegou a Porto Alegre para estudar Publicidade e Propaganda. O fanzine Bodoque, criado com colegas, colocou-o diante daquele que considerava um mestre: Neltair Rebés Abreu, o Santiago.
– Ah, já conheço esse Bodoque. Gostei. Aparece na reunião da Grafar – disse Santiago, ao receber o zine das mãos de Rafael durante uma oficina de HQs para iniciantes.
O jovem desenhista não hesitou em matar aulas na faculdade para comparecer às reuniões semanais da Grafar. Logo foi abraçado por gigantes do cartum – que o influenciaram a dar contornos políticos a seus desenhos.
– Minha faculdade foi ali. Era onde eu queria estar – recorda.
Quando Porto Alegre recebeu o 1º Fórum Social Mundial, em 2001, Rafael e os colegas da Grafar realizaram a exposição Davos, Tô Fórum, que opunha, com humor e senso crítico, o evento porto-alegrense e o suíço.
Consolidadas nas páginas da Bodoque, as tirinhas de Artur, o Arteiro tinham alguma inspiração na própria infância – apresentam um menino irreverente e questionador, ao estilo da personagem Mafalda, de Quino, e às brincadeiras à moda antiga que marcam a Turma da Mônica, de Maurício de Sousa. Com Artur, Rafael passou a ser reconhecido pelo traço simples e expressivo, escondendo piadas onde aparenta ingenuidade. As tiras renderam dois livros: Direto pro Soe! (2006) e Piolhos Invaders (2007).
Ao primeiro prêmio, que recebeu no Salão Internacional de Desenho para a Imprensa, na Capital, seguiram-se uma série de outros, dentro e fora do país.
Aprendendo a ser destro
No mesmo 2010 em que foi diagnosticado com esclerose, Rafael passou a publicar na Folha de S. Paulo. A mão esquerda já vacilava, mas tinha o compromisso de enviar seis cartuns por semana. Cumpri-lo ficou difícil. Quando queria desenhar um círculo, a mão não acompanhava o movimento, fazendo o traço mudar repentinamente de direção, transformando-se em um risco. A cada trabalho, a demora para finalizá-lo era maior.
Paralelamente, o sistema nervoso começou a ser afetado, resultando na perda de equilíbrio e, consequentemente, em tombos. Até que Laureci lhe deu a primeira bengala. Delicadamente, para não magoar o filho, apresentou o instrumento destacando sua funcionalidade: por ser retrátil, era possível dobrar e guardar na mochila.
– Se tu estás na rua e chega um ladrão, tira a bengala – disse a mãe.
Rafael demorou a aceitar as limitações do corpo. Apesar do temperamento tranquilo, tinha crises de revolta. Por que logo ele? – pensava. Seguir desenhando foi uma resposta.
– É nesses momentos que a gente se esforça. Ou tu te entregas, ou tiras a força do garrão – diz Rafael, usando uma expressão comum na fronteira.
Acompanhando os desenhos de Rafael na internet, Sandro Gomes, o Lobo, seu amigo e atual editor, testemunhou seu amadurecimento como cartunista. Se antes Rafael ainda cozinhava seus dons em um caldeirão com outros desenhistas, agora já havia desenvolvido seu tempero próprio.
– O cara faz muita coisa legal. De uma hora para outra, tudo o que ele faz é maravilhoso. Começava: "Puts, isso tá ótimo!". Depois: "Esse está maravilhoso". Em seguida vinha um cartum genial: "Fantástico". Até que acabam os adjetivos – explica Lobo.
Em 2013, foi premiado no Aidyn Dogan, na Turquia, considerada uma das premiações máximas entre os cartunistas. O desenho escolhido mostra uma garota rica dentro de uma mansão ganhando uma boneca de Natal. Do lado de fora dos portões, uma menina de rua se alegra com o pacote da boneca, deixado no lixo em frente ao casarão. Rafael duvidava da potência do desenho. Achava que, no país islâmico, um cartum crítico à data cristã não surtiria efeito. Mas Moa, que à época já havia sido laureado duas vezes no Aidyn Dogan (e depois foi outras duas), sabia que o trabalho do pupilo tinha potencial.
– Manda que vais ganhar – insistia.
No ano seguinte, Rafael foi de novo reconhecido no prêmio turco, desta vez com um cartum em que retrata o dono de uma fábrica pondo a cabeça para fora da janela para xingar um cachorro que suja a calçada fazendo cocô. No topo da construção, chaminés expelem fumaça.
E o desenho "ficou solto"
Nesse período, Rafael submeteu-se a diversos tratamentos para conter o avanço da doença. De nada adiantou. As decepções constantes com a falta de soluções – e a passividade de alguns médicos – o levaram a enfrentar o ceticismo e recorrer à espiritualidade. Chegou a ir até Abadiânia, em Goiás, na Casa de Dom Inácio de Loyola, onde atende o médium João de Deus, famoso por realizar as chamadas cirurgias espirituais. E ir de novo. Na segunda viagem, embarcou em uma excursão saída de Santa Maria. Queria sentir o que outros doentes sentiam, transformar a ida ao Centro-Oeste em uma experiência de vida.
– Mãe, isso aqui parece um delírio coletivo – dizia Rafael à Laureci, que o acompanhou.
Ainda experimentou a ayahuasca, bebida feita à base de ervas que altera a consciência. Chamada de "medicina da floresta", é usada em rituais religiosos com a promessa de que a pessoa tem um encontro com desafios que limitam seus atos.
Seu entendimento é de que os métodos alternativos não irão curá-lo, mas sim servir de auxílio para enfrentar a doença. Na sua visão, a esclerose não surgiu acidentalmente. Acredita que, sendo uma doença autoimune, que ataca o organismo a partir de uma desorientação das células, pode ser amenizada se for de encontro a dilemas mais profundos:
– Acredito que haja algum sentido nisso. Tem que ter.
Quando as primeiras tirinhas de Memórias de Um Esclerosado foram publicadas em seu blog, Rafael passou a receber e-mails de outros diagnosticados querendo dividir o dilema com ele. Ser lido por quem sofre da mesma debilidade fez com que se sentisse um porta-voz de uma comunidade. E a responsabilidade afetou a vontade de fazer humor. Nos desenhos, Rafael arranca risos dos leitores ao mesmo tempo em que os sensibiliza. Vê graça onde há drama – algo inerente ao ofício de cartunista.
A mudança mais radical veio em 2016, quando, mais acostumado às limitações, mas com dificuldades para seguir usando a mão esquerda, decidiu treinar a direita para os desenhos. E gostou do resultado. Seu traço passou a ser menos preciso, porém, apresentando um movimento mais natural, com ar de despretensão. Aos 42 anos, Rafael parou de se preocupar com a perfeição.
– Me permito o erro. O desenho ficou solto. Isso me libertou um pouco. O desenho está na cabeça. A mão é só uma ferramenta.
O traço continua tendo a minha característica, mas está mais fluido. Com a esquerda, tentava controlar mais. Com a direita, está mais tortinho, mais despreocupado.
Os parceiros de cartum pouco notaram. Dizem não conseguir identificar se um desenho de Rafael foi feito com a mão esquerda ou a direita. A qualidade do novo instrumento de trabalho seguiu reconhecida. Dos 43 prêmios que ganhou entre 2009 e 2017 – todos após ser afetado pela esclerose –, seis foram feitos com a mão direita.
– Ele tinha todo o direito de desistir. De se deprimir. Mas não se entrega – comenta Moa.
Rafael aprendeu a ter paciência. Como a mão não acompanha o ímpeto das ideias que se reviram na cabeça, digita no celular a descrição das imagens que podem virar traços. Antes do corpo sentir as limitações, vivia estressado por não conseguir desenhar, em uma ansiedade para cumprir prazos e realizar objetivos. Se, no início, ficava revoltado com a doença, agora encara a esclerose como se ela tivesse lhe ensinado um tempo diferente, uma outra forma de estar na vida.
– Veio como um aviso: "Desacelera, fica mais tranquilo". Aprendi que a gente tem que respeitar o tempo. Há coisas que a gente não tem que lutar contra. Tem que se adaptar e ficar o mais tranquilo possível – diz.
Em cartaz e em livro
Assim como rejeitou a bengala, Rafael demorou para aceitar a cadeira de rodas. Cedeu em abril deste ano. Em geral, usa-a somente para fazer trajetos longos na rua. Quando perguntado sobre o novo meio de locomoção, diz que o veículo, elétrico, repleto de botões, "só não faz café". Para descontrair, diverte os amigos imitando o físico Stephen Hawking (1942-2018), também vítima de esclerose, morto em março passado.
Dividindo o apartamento no Bom Fim com a namorada, a fotógrafa Mariana Villa Real, 32 anos, precisa de ajuda para tomar banho e se vestir. Preocupa-se em não deixar a companheira sobrecarregada. Também é Mariana quem presencia os momentos em que Rafael – que na frente dos amigos ri de si mesmo – desaba.
– Ele é a pessoa mais madura com quem já me relacionei. É clichê, mas o sofrimento alarga a alma – afirma.
É na madrugada que Rafael sente-se melhor. Chega a andar sem ajuda da bengala, a tomar banho e a vestir-se sozinho. Também é quando despende forças para desenhar. São os "surtos de Super-Homem", como ele fala.
A comparação com super-heróis vem da infância. Em Memórias de um Esclerosado, voltou às brincadeiras ao lado dos irmãos, quando subia e pulava os muros da casa em Rosário do Sul imaginando ter os poderes do Batman. No início da HQ – que quer transformar em livro –, retrata um sonho comum da época em que era menino: voar desajeitadamente, "como uma borboleta em uma ventania".
Me permito o erro. O desenho ficou solto. Isso me libertou um pouco. O desenho está na cabeça. A mão é só uma ferramenta.
RAFAEL CORRÊA
Agora que tem dificuldades para andar, os voos deram lugar aos sonhos em que aparece caminhando. Caminhar é o novo superpoder.
– Vai ver é meu próprio inconsciente se acostumando.
A rotina diária inclui sessões de fisioterapia. Em julho, sua campanha de arrecadação de fundos para lançar a primeira coletânea de desenhos atingiu o objetivo de obter R$ 35 mil dois dias antes do prazo final. O que significa que, em setembro, cerca de 220 cartuns e tirinhas passarão a circular em outro livro: Até Aqui Tudo Bem. A exposição de mesmo nome está em cartaz na Galeria Hipotética (Rua Visconde do Rio Branco, 431) até a próxima quinta-feira (9/8).
Os tratamentos foram interrompidos em janeiro, mas a esperança com a medicina se renovou ao saber que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou a primeira medicação indicada para esclerose progressiva. Elaborado por um laboratório suíço, o remédio já está disponível, mas precisa ser aplicado em doses repetidas a cada seis meses, no valor de R$ 60 mil cada. A novidade é que um grupo de pesquisa da PUCRS está selecionando pacientes para tratamento gratuito. Rafael candidatou-se para submeter-se à droga e, neste momento, aguarda resposta do laboratório.
Enquanto isso, a série Memórias de um Esclerosado ganha novos episódios, agora dando conta das aventuras espirituais e da progressão da doença. Rafael pretende lançar o livro em 2020. Além desse projeto, segue publicando na Folha de S. Paulo, na revista Le Monde Diplomatique e no jornal Extra Classe. E ainda há trabalhos para serem postados diariamente nas redes sociais.
É um artista que não admite viver sem o desenho. Se for necessário, diz, vai pôr a caneta na boca ou no pé.
– Parece que o Rafael entendeu que não existe mais espaço pra lenga-lenga na vida – resume o mestre e, hoje, amigo Santiago.
Se na infância fantasiava que podia voar como um super-herói e, com o avanço da esclerose, passou a sonhar com as duas pernas correndo, hoje Rafael tem como objetivo frear a doença – e seguir desenhando. Sonho ou realidade, tudo, afinal, vira quadrinho.