Por Patricia Fossati Druck
Jornalista, conselheira administrativa da Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul
Há mais de 20 anos, um leilão da Christie’s, em Nova York, selaria o destino de uma das mais importantes e emblemáticas obras de arte brasileiras. Pelo valor de US$ 1,3 milhão, o Abaporu, tela icônica de Tarsila do Amaral, foi arrematada pelo colecionador argentino Eduardo Constantini. Hoje, o "homem que come gente" é a principal atração do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba), em Buenos Aires. Para além das lamentações pela perda do Abaporu, é pior reconhecer que, se o episódio do leilão se repetisse, é provável que o endereço final da obra fosse o mesmo. Faltariam interessados?
Não. O que poderia faltar é dinheiro.
Avaliado em aproximadamente US$ 40 milhões, seu custo real para o herói que o comprasse poderia ultrapassar os US$ 56 milhões, já que incidiriam sobre ele os impostos de importação e a burocracia para a repatriação do quadro. Também é possível, sendo otimista, que pela relevância da obra modernista o preço fosse considerado pagável. Mas nem a felicidade de ter a tela de volta ao país seria capaz de disfarçar a realidade: é cada vez mais difícil para colecionadores e galeristas trazerem obras para o Brasil. Mesmo que elas sejam de artistas brasileiros, concebidas e executadas aqui, mas estejam à venda no Exterior.
Sócio da Galeria Almeida e Dale, uma das mais importantes do país, Antônio Almeida afirma que comercializar arte no Brasil é tarefa cada vez mais complicada, principalmente devido às taxas que incidem sobre as transações. Segundo ele, para vender um quadro de artista brasileiro para o Exterior a operação é simples e barata. Basta acrescentar ao valor da obra uma taxa que fica em torno de 4%, equivalente ao Imposto de Renda e à Contribuição Social – além dos valores de frete e seguro. Pronto. Mas vender a mesma obra para um colecionador brasileiro já parte de uma taxação de 27,5%.
– Hoje é muito melhor mandar arte para fora do Brasil – sentencia.
A situação é ainda mais alarmante, de acordo com Almeida, para se trazer obras do Exterior. Mesmo que se trate de um artista brasileiro, para ingressar no país a obra precisa ser repatriada, como qualquer peça internacional:
– Sei que o Brasil tem muitas carências, mas, se os legisladores não pensarem sobre isso, continuaremos muito atrás dos nossos vizinhos da América do Sul, que possuem coleções importantes com Van Gogh, Chagal, Miró, Dalí, Picasso, Renoir. Na Argentina, por exemplo, os impostos facilitam a aquisição de obras. Hoje, no Brasil, é impossível formar uma coleção.
É bom lembrar que são as coleções particulares que garantem exposições e acervos de museus e centros culturais.
– Quando colecionadores adquirem obras, eles as emprestam para as exposições. E quem se beneficia é o povo, que tem a oportunidade de ter contato com a arte sem precisar viajar para a Europa ou os Estados Unidos. O país perde quando os colecionadores não adquirem obras – salienta Almeida.
Arte versus mercadoria
O versus do intertítulo acima poderia ser substituído por um sinal de igual. Por que é isso que a obra de arte é, para a legislação tributária brasileira. As pessoas físicas e até as jurídicas que possuem uma obra detêm um bem valorável e, claro, tributável. Portanto, é bom lembrar que, como qualquer outro bem, a arte deve ser, por exemplo, declarada no Imposto de Renda.
O contador Cassius Silva, especialista em tributação, explica que a legislação é rigorosa na análise de obras de arte. O motivo é o histórico de crimes como evasão de divisas e lavagem de dinheiro, comumente ligados às transações com peças como telas e esculturas.
– A valoração de uma obra de arte é intangível, o que deu margem a crimes por muito tempo. Por isso as leis cercam o objeto por todos os lados, na tentativa de evitar os delitos – afirma Silva.
Na prática, uma obra de arte é, para uma pessoa física, mais ou menos a mesma coisa que um carro – um ativo, um bem. Isso significa que o proprietário de uma peça pode vendê-la sem tributos se o lucro obtido for inferior a R$ 35 mil. Caso o ganho passe disso, os impostos incidem por apuração de ganho de capital: sobre o que o vendedor obtém de lucro, descontando o valor pago pelo objeto. Mais ou menos a mesma regra que vale para a venda de imóveis. Para transações como essa, as alíquotas podem variar de 15% a 22,5%.
A experiência de Silva confirma a percepção do galerista Antônio Almeida. O Brasil é um país de vocação exportadora. Por isso, mandar obras de artistas brasileiros para fora do país é simples e barato. Já importar é o contrário: muito mais caro e complexo.
– Quem exporta só paga Imposto de Renda e Contribuição Social. Para trazer as obras o trâmite é muito mais complicado. Além dos custos com seguro e frete, é preciso contratar despachantes aduaneiros e pagar mais taxas – comenta o contador.
Nem tudo, porém, são espinhos. De acordo com Silva, é possível encontrar algumas benesses no intricado sistema tributário que envolve o trânsito de obras de arte para dentro do país. Em alguns casos, é possível pleitear a isenção de taxas como o Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) ou uma alíquota mais baixa do Imposto sobre Importações. Impostos estaduais, como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), cujas alíquotas são fixadas pelas unidades da federação, também podem ser mais baixos, dependendo do local.
– No pior cenário, considerando frete e seguro, a obra de arte importada pode sair até 50% mais cara para seu comprador, em função da burocracia e tributação – calcula Silva.
Cada público, um valor
Colecionadores acreditam, muitas vezes, que vender suas obras fora do país pode lhes garantir melhor negócio. Mas o sucesso da transação depende do gosto do público a quem a peça é apresentada. E, nesse caso, tudo é possível. Até mesmo fazer melhor negócio no Brasil do que em leilões e galerias estrangeiras.
De acordo com Antônio Almeida, a arte brasileira já ganhou o mundo e é festejada nas maiores feiras e leilões, de Nova York à Suíça. Nem toda a produção nacional, no entanto, goza desse prestígio. No panteão dos queridinhos do público comprador estão os contemporâneos, como as celebradíssimas Beatriz Milhazes e Adriana Varejão. Obras suas e de outros, como Tunga e Cildo Meireles, são disputadas e atingem valores expressivos. São consumidas em países como Estados Unidos, Espanha, Itália, Alemanha e França. Também figuram nos principais museus do mundo, como Tate, Reina Sofia, Fundação Cartier, Moma e Metropolitan, entre outros.
Já a arte mais valorizada pelos colecionadores e apreciadores brasileiros é de outra época, mais especificamente os modernistas, até meados dos anos 1950. Artistas como Di Cavalcante, Candido Portinari, Alfredo Volpi, José Pancetti e Lasar Segall têm mais valor interno do que lá fora.
– Às vezes, os colecionadores se decepcionam com as cotações de suas obras no Exterior. Mas isso é natural, pois esses artistas são mais valorizados aqui do que fora – explica Almeida.
Questão de identidade
Com o tema das migrações entre Europa, África e a América Latina, a 11ª Bienal do Mercosul, que se encerrou no dia 3 de junho, abordou as influências de povos e culturas que moldaram o caráter da arte latino-americana e, especialmente, da arte brasileira. Para o atual presidente da Bienal, Gilberto Schwartsmann, contudo, esse movimento de troca cultural e artística precisa ser permanente para que o ambiente seja favorável ao desenvolvimento dos artistas e do mercado de arte como um todo no país.
Segundo ele, a arte brasileira já não é vista como algo exótico ou pitoresco nas principais galerias e museus do mundo. Pelo contrário. As obras são prestigiadas em qualquer dos principais espaços de exposição do planeta.
– É muito interessante chegar nos museus mais importantes da Europa e dos Estados Unidos e ver artistas como Vik Muniz, Cildo Meireles, Adriana Varejão, Beatriz Milhazes, Tunga e muitos outros em lugar privilegiado – comenta Schwartsmann.
O presidente da Bienal alerta, porém, que não basta que a arte brasileira ganhe o mundo. O reverso também precisa funcionar, ou seja, obras estrangeiras precisam entrar no país, por meio de galerias e colecionadores, formando permanentemente o acervo:
– É muito complicado trazer obras para o Brasil em função dos altos custos e da burocracia. E isso é muito ruim para o país como um todo.
Nas Bienais, de acordo com Schwartsmann, há um grande esforço para formação e educação cultural do público – somente nesta edição, foram 15 mil alunos de escolas públicas a visitar os complexos da mostra. Esse esforço, no entanto, precisa ser paralelo a todos os outros. Criar acervo, trazendo obras de fora do país, é uma das variáveis dessa complicada equação.