Na contramão do provincianismo atribuído historicamente ao Rio Grande do Sul, o Theatro São Pedro chega aos 160 anos como símbolo ainda vibrante de uma sociedade que aspira ao cosmopolitismo. Pelo palco hoje sagrado, que rivaliza em importância e charme com as mais antigas casas de espetáculo do país, passaram alguns dos maiores gênios da criação artística do Brasil e do mundo, como o pianista Arthur Rubinstein (duas vezes), o violonista Andrés Segovia, o compositor Heitor-Villa-Lobos, o dramaturgo Eugène Ionesco, o diretor Bob Wilson e o compositor e pianista Philip Glass.
A lista é longa. Pode-se dizer que a história das artes performáticas tem sido descortinada ao público do São Pedro por diversas gerações como um museu vivo: estiveram por lá as sociedades dramáticas e as companhias líricas do século 19, as grandes companhias de teatro brasileiras do século 20 e as estrelas do presente, assim como os coletivos e artistas que constituem a pujante produção local. Mas nem tudo foi glamour. Um mergulho nos alfarrábios do passado revela uma jornada de glória e decadência, pincelada por episódios insuspeitados pelos espectadores de hoje.
Se o teatro se tornou uma janela para o mundo, nem sempre foi assim. Na ocasião da inauguração do teatro, em 1858, o Rio Grande do Sul era, de fato, uma província. Porto Alegre contava com cerca de 20 mil habitantes. No início dos anos 1860, a cidade tinha apenas 24 padarias, 19 bodegas, 10 cafés, 10 hospedarias e uma confeitaria, na contabilidade de um geógrafo. O primeiro mercado público é de 1844. Foi demolido em 1870 para dar lugar ao novo, que havia sido inaugurado em 1869. A cidade, que já tinha vias centrais calçadas, era iluminada por lampiões a óleo de baleia e, depois, óleo de peixe, conforme informações compiladas pelo historiador Gunter Axt. Em 1864, chegaram os combustores a querosene e, a partir de 1887, alguns comércios e residências passaram a contar com iluminação elétrica. No século 19, muitos habitantes andavam a cavalo. O primeiro automóvel apareceu na cidade em 1906 e, dois anos depois, vieram os bondes elétricos.
Era uma época de transformações. Entre 1892 e 1916, o número de habitantes em Porto Alegre duplicou. Em 1858, ano de inauguração do São Pedro, a província tinha mais de 70 mil cativos, o que correspondia a um quarto da população, segundo dados do historiador Fábio Kühn. O Centro Abolicionista foi criado em 1883. Quatro anos depois, menos de 1% da população sul-rio-grandense era formada por escravos. Em 1906, ocorreu a primeira greve geral de trabalhadores de Porto Alegre, reivindicando jornada diária de oito horas. Em 1918, a cidade já tinha quase 180 mil habitantes.
O São Pedro não foi o primeiro teatro de Porto Alegre de que se sabe. Esse título pertence à Casa da Comédia, um barracão precário inaugurado em 1790 na atual Rua Uruguai, voltado a um público majoritariamente popular e masculino, que assistia às apresentações em pé, interagindo com os artistas. Quatro anos depois, o espaço ganhou ares um pouco mais burgueses, passando a se chamar Casa da Ópera – por isso, a Rua Uruguai era conhecida como Beco da Casa da Ópera. Em 1838, quando o espaço não operava mais, uma sociedade dramática alugou um prédio na atual Rua Marechal Floriano para abrir o Teatro Dom Pedro II. O Teatrinho, como era chamado, funcionou durante 20 anos. Modesto, ainda não era o que Porto Alegre precisava.
Data de 1833 a primeira notícia sobre o que veio a ser o Theatro São Pedro. Foi quando 12 cidadãos de posses se uniram em uma sociedade particular para pleitear ao presidente da Província, Manuel Antôno Galvão, a doação de um terreno para construir uma casa de espetáculos sem precedentes em Porto Alegre.
– Naquela época, uma cidade só podia se considerar cidade se tivesse um bom quartel, uma igreja bacana e um teatro. A existência de um teatro naquele momento era o que dava foros de civilidade para uma determinada comunidade – afirma o historiador Gunter Axt. – Além disso, os espetáculos teatrais tinham um componente didático naquele momento, de formação da moral. Era uma sociedade burguesa querendo se afirmar, e o teatro era o meio para isso.
De passagem por Porto Alegre durante a construção do São Pedro, o viajante francês Arsène Isabelle lamentou a localização do futuro teatro, no alto de uma rua "que se transforma em uma catarata nos dias de chuva", mas o terreno de 968 metros quadrados doado pelo presidente da Província, na atual Praça da Matriz, ficava em uma região central da cidade. O São Pedro veio a formar um conjunto arquitetônico com um prédio "gêmeo", a Casa da Câmara, inaugurada em 1874 e destruída por um incêndio em 1949, dando lugar ao atual Palácio da Justiça.
Seriam necessários 25 anos até que o Theatro São Pedro fosse inaugurado, após a constituição de três sociedades particulares consecutivas, a concessão de sucessivos empréstimos e até a realização de uma loteria para ajudar a financiar a empreitada. No meio do caminho, tinha uma guerra: a obra foi interrompida quando estava nos alicerces durante os 10 anos da Revolução Farroupilha, a partir de 1835. Àquela altura, a província já contava com os respeitados teatros Sete de Setembro, em Rio Pardo, fundado em 1832, e o Sete de Abril, em Pelotas, aberto no ano seguinte e ainda hoje em operação, embora fechado para restauro desde 2010.
Morte dentro do teatro
A inauguração oficial do São Pedro finalmente ocorreu em 27 de junho de 1858 com a representação do drama Recordações da Mocidade pela Companhia Ginásio Dramático Rio-Grandense, do empresário João Ferreira Bastos. A abertura da solenidade e os intervalos do espetáculo ficaram aos cuidados da orquestra do maestro Joaquim José de Mendanha, mineiro pardo que compôs a música do Hino Rio-Grandense. Augusto Porto Alegre anotou sobre a histórica noite: "A fina flor da sociedade compareceu ao ato, dando o decote das damas e as casacas dos cavalheiros o tom chique da solenidade em que tudo ressumbrava completa alegria".
O cronista destacou também a decoração do teatro, com folhagens, flores e bandeiras iluminadas por um lustre central, "produzindo cintilações cambiantes as facetas de seus inumeráveis pingentes". Presente do governo francês à província, o lustre original, que funcionava com velas, perdeu-se depois de ter sido visto pela última vez em Rio Pardo, por volta de 1880, mas permaneceu no imaginário dos frequentadores do teatro. O atual lustre, reconstituído em 1984 por ocasião da restauração comandada por Eva Sopher, foi inspirado naquele. Clóvis Massa, professor do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UFRGS, explica que a inauguração do Theatro São Pedro deu início a uma nova fase na vida cultural da cidade:
– Possibilitou a organização de várias sociedades dramáticas particulares. O repertório passou a contar com o dramas de casaca, ou seja, peças com vestimenta da época, e não mais o teatro histórico de capa e espada, mas muitas vezes trazia ainda um realismo muito romantizado e até mesmo melodramático.
Uma das novidades do São Pedro em relação aos teatros que funcionaram anteriormente na cidade era a presença das mulheres, que se sentavam com os maridos no camarotes, o setor mais nobre, servidos pelos escravos que circulavam em escadarias posicionadas onde atualmente ficam os banheiros. Sim, comia-se e bebia-se no interior da casa. A plateia era ocupada por estudantes e profissionais liberais solteiros. Já as galerias recebiam as camadas populares, mais fragorosas e participativas. Assim, o Theatro São Pedro reproduzia as diferentes estratificações da sociedade da época, função que exerce ainda hoje de alguma forma. Para o crítico teatral e atual presidente da Fundação Theatro São Pedro, Antonio Hohlfeldt, o teatro era o retrato de uma sociedade que começava a se urbanizar:
– Saint-Hilaire (viajante francês) passou por Porto Alegre em 1821 e anotou que, diferentemente de outras províncias, aqui as mulheres não ficavam escondidas nas casas. Participavam das jantas, conversas, saraus. Temos uma visão machista do Rio Grande do Sul, mas havia uma relação mais equilibrada entre homens e mulheres do que em outros lugares do país. O fato de as mulheres irem ao teatro era um reflexo disso.
O repertório refletia a diversidade de gostos do público do século 19. Encenavam-se óperas e operetas. A arte teatral encantava o público com dramas românticos, mas também servia de meio para defender a abolição da escravatura e a causa republicana, temas de que se ocuparam dramaturgos gaúchos precursores do que hoje se conhece como arte engajada. Havia também atrações de viés popular, como comédias de costumes, shows de ilusionismo, espetáculos circenses e de variedades, levando a crítica a torcer o nariz ao lamentar o desinteresse da plateia pelas coisas "sérias" do palco. Um cronista da época declarou que o público porto-alegrense tinha "uma queda para palhaçadas", o que pareceu um exagero ao pesquisador do teatro Athos Damasceno Ferreira (1902-1975), tendo em vista que grandes espetáculos também atraíam os gaúchos. Gunter Axt aponta:
– Já no século 19, o São Pedro ficou muito conhecido pelas temporadas líricas. Era um verdadeiro acontecimento social. Tinha congestionamento de carruagens na porta do teatro. As damas usavam vestidões, faiscavam joias, farfalhavam sedas. Os homens vestiam fraque. Mas a turma não estava bem adestrada ainda: muita gente chegava atrasada. Enquanto a orquestra tocava, tinha gente levantando para dar passagem, mulheres fazendo barulho com seus vestidos. Tudo isso foi se ajustando com o tempo.
Era outra época mesmo, quando um crítico musical podia desafiar outro para um duelo de pistola a fim de resolver uma divergência sobre música de concerto. Quem conta é Athos Damasceno no livro Palco, Salão e Picadeiro em Porto Alegre no Século 19. O diretor de O Progresso, R. Ludwig, achava que os programas da Filarmônica Porto-Alegrense, um respeitado conjunto do século 19, estavam focados demais na escola italiana e deveriam incluir Bach, Beethoven, Mozart e Haydn. Acontece que a Filarmônica era queridinha da crítica musical local, o que rendeu a Ludwig acusações de "germanofilia". Foi assim que ele desafiou José Gertum, da Revista Musical, para resolver a questão de modo nada ortodoxo. Para saúde da imprensa musical, o duelo não foi levado a cabo.
Outra altercação, entretanto, terminou em tragédia. A temporada de 1895 foi marcada por muitas vaias, mas nada se comparou ao que ocorreu no São Pedro no dia 29 de dezembro. Quem acha que a sociedade está polarizada hoje é porque desconhece a rivalidade que havia entre os fãs da Companhia de Ismênia dos Santos e da Companhia Dramática de Apolônia Pinto. Depois de rumar para o interior do Estado, o grupo de Ismênia retornou à Capital quando o São Pedro já estava cedido à trupe de Apolônia, o que provocou prejuízos materiais à primeira. Irritados, os fãs de Ismênia não apenas vaiaram Apolônia e seus parceiros, como um conflito dentro do teatro levou à morte "por violentas cacetadas", segundo Athos, de um jovem italiano descrito como chefe de família. Apolônia quase cancelou a temporada, mas permaneceu com o apoio da imprensa, do público e, claro, da polícia.
Violista escapa de um acidente
Como se vê, a crônica da época reserva histórias pitorescas. Em 1875, o São Pedro já era duramente criticado por seu mau estado de conservação, o que foi resolvido por um novo arrendatário que providenciou limpeza geral, pintura interna e externa, nova distribuição de gás e iluminação para o palco. Na virada do século, o teatro trazia a modernidade para a cena. Ao apresentar o repertório de sua companhia, em 1900, a atriz portuguesa Lucinda Simões foi saudada pela imprensa da época como o maior talento teatral que já pisara no palco rio-grandense. A empolgação justificava-se também pela estreia por estas plagas do drama realista Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen (1828-1906), que chocara a sociedade europeia com a história de uma mulher que abandona marido e filhos. Considerado hoje o pai do teatro moderno, o autor norueguês era desconhecido do grande público, mas familiar às "classes ilustradas" de Porto Alegre, segundo Athos, pelas traduções em francês de suas peças que circulavam na cidade.
Veio o século 20, e o São Pedro sediou, em 1901, sua primeira sessão de cinematógrafo, que levou multidões à sala de espetáculo, ávidas pela experiência de assistir a um filme no teatro. Novas sessões concorridas em 1903, 1904 e 1905 indicavam que esse negócio de cinema tinha futuro. Nos três primeiros meses de 1908, foram três sessões de teatro para 20 de cinematógrafo, segundo pesquisa de Guilhermino Cesar (1908-1993). Com a chegada do primeiro espaço destinado especificamente ao cinema em Porto Alegre, naquele ano, e a criação de cine-teatros, nos anos seguintes, o São Pedro aos poucos deixa de exercer essa função.
Nas primeiras décadas do século 20, o nobre palco recebeu algumas das maiores estrelas da música de concerto, como Arthur Rubinstein, Bidu Sayão e Andrés Segovia. Com o fim da II Guerra, mais ícones eruditos desembarcaram por aqui, entre eles Aaron Copland, Jacques Thibaud, Erno Dohnányi e novamente Rubinstein. Foi também no São Pedro que nasceu, em 1950, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), comandada até 1978 pelo maestro húngaro Pablo Komlós. Aquela que se tornaria a principal orquestra do Estado chegou a ser regida por ninguém menos que Villa-Lobos em 1953, feito eternizado com uma placa comemorativa no teatro.
O São Pedro, que já havia recebido figuras de proa do teatro nacional como Procópio Ferreira, Henriqueta Brieba, Itália Fausta e Dulcina de Moraes, foi palco, no pós-guerra, de companhias que moldaram o teatro brasileiro moderno. Apenas entre 1956 e 1959, estiveram por lá a Cia. Tônia-Celi-Autran (integrada por Tônia Carrero, Adolfo Celi e Paulo Autran), Cacilda Becker (com Walmor Chagas) e o Teatro Brasileiro de Comédia (com Nathalia Timberg). Em 1957, nasceu o Curso de Arte Dramática, atual Departamento de Arte Dramática da UFRGS, que ajudou a qualificar ainda mais a produção gaúcha. A dança não ficou para trás: pioneiras como Lya Bastian Meyer, Tony Petzhold e Chinita Ullmann executaram seus movimentos por lá.
Foi ainda nos anos 1950 que o interior do teatro ganhou nova estética. Os gradis de ferro dos camarotes foram cobertos com um tipo de gesso rosa, cor que marcou presença também na pintura das paredes, compondo um conjunto de gosto exótico com o plástico verde das poltronas. Gunter Axt observa que foram diversas as modificações internas no teatro ao logo de sua história:
– No século 19, as mulheres usavam saia sobre saia, mas nos anos 1950 já começavam a usar vestidos mais curtos. Como os rapazes que sentavam na plateia podiam ver as pernas delas pelos gradis, resolveu-se tapar com gesso. Imagine que horror.
Entre o final de 1960 e os primeiros meses de 1961, breve recesso para novas melhorias, mas o teatro reabriu para receber o Teatro de Arena de São Paulo, que marcaria a resistência cultural à ditadura instaurada no país em 1964. Também continuaram afluindo estrelas do calibre de Cacilda Becker, Paulo Autran e Cleide Yáconis. Mas a década de 1970 encontrou o São Pedro em péssima situação. Cupins, infiltrações e problemas na rede elétrica revelavam o cansaço do prédio. Em 1972, uma parte de um refletor caiu no palco durante apresentação da violista japonesa Nobuko Imai, quase atingindo seu instrumento. Destemida, a musicista seguiu tocando até o fim, mas o risco de segurança foi o sinal que faltava para que o teatro fosse efetivamente interditado, o que ocorreu no ano seguinte.
Naquele momento em que o Brasil já vivia sob um regime de exceção, Porto Alegre contava com grandes teatros como o Leopoldina (depois ocupado pela Ospa) e o Presidente, que recebiam produções nacionais, além de salas de menor porte para espetáculos independentes e experimentais que ainda estão em operação, como o Teatro de Arena de Porto Alegre e o Teatro de Câmara, este fechado para reforma desde 2014. O Renascença e a Sala Álvaro Moreyra seriam fundados em 1978.
Embora importantes, nenhum deles substituía o Theatro São Pedro, que precisava de uma verdadeira reconstrução. Eis que entra em cena uma personagem que teria papel definitivo nessa história. Imigrante judia que havia deixado a Alemanha em 1936, por causa do nazismo, Eva Sopher havia se tornado figura de destaque na cena cultural gaúcha por seu trabalho na Pró Arte, que promovia concertos eruditos internacionais na Capital, inclusive no São Pedro, nos anos 1960. Devido à atuação na área, recebeu um convite do jornalista Paulo Amorim, então no Departamento de Assuntos Culturais da Secretaria de Educação do Estado, para comandar a restauração. O ano era 1975. Recusou porque estava envolvida com outros projetos, mas seu marido, Wolfgang Klaus Sopher, encontrou um argumento para convencê-la: "É melhor você aceitar. Caso contrário, são capazes de derrubar o teatro assim como fizeram com seu irmão gêmeo do outro lado da rua". Ele se referia, claro, à histórica Casa da Câmara, que deu lugar ao prédio modernista do Palácio de Justiça, inaugurado em 1968.
Então Eva aceitou.
O abraço que salvou Eva Sopher
A previsão era que a obra consumisse dois anos de trabalho, mas a reinauguração ocorreu apenas em 1984. Nesse ínterim, o miolo do teatro foi completamente demolido, restando praticamente apenas as paredes. Aos poucos, as madeiras deram lugar às vigas de aço. A partir das referências originais, foram recuperados os gradis dos camarotes, as portas e o suntuoso lustre central, pesando 600 quilos, com um mecanismo que permite baixá-lo para a realização da limpeza. As poltronas da plateia ganharam uma elegante estampa a partir de uma peça de veludo francês. E o forro foi decorado com pinturas de Danúbio Gonçalves, Léo Dexheimer, Plínio Bernhardt e Carlos Antônio Mancuso, arquiteto que comandou a obra, falecido em 2010. Sem falar nos modernos equipamentos de som e luz para o palco. Nada disso teria sido possível sem uma pessoa apaixonada à frente de tamanha empreitada, que exigiu poder de mobilização da opinião pública e levantamento de recursos.
– O processo foi muito bonito porque não foi dirigido por uma pessoa só – afirma Hohlfeldt. – Eva evidentemente comandou, mas seu grande mérito foi ser capaz de articular uma equipe multidisciplinar, que é uma palavra da moda agora. Trouxe várias cabeças, vários modos de ver, o que resultou nisso.
Foi assim que o Theatro São Pedro nasceu de novo no dia 28 de junho de 1984, perante os olhos de um público embasbacado. E devidamente treinado. Dois dias antes, Eva Sopher havia publicado em Zero Hora uma "bula" sobre o uso do teatro: "Atrasos, ruídos e chicletes usados devem ser engolidos habilmente, guardados no bolso ou então colocados em recipientes tais como cinzeiros e cestos de papel, jamais jogados no chão ou grudados embaixo da poltrona. Fumo: 'aquele' nunca; outros, só onde é permitido e onde tem cinzeiros". Os tempos mudaram, e hoje nenhum tipo de fumo é permitido ao público dentro do teatro.
A noite de reinauguração começou com o Hino Nacional, executado pelas mãos dos músicos da Ospa, sob a batuta de Eleazar de Carvalho, um de seus maestros memoráveis. Radamés Gnattali, que havia se apresentado no teatro quando jovem, retornou triunfante para dirigir sua Sinfonia Popular nº 1. Por fim, o grupo teatral Cem Modos encenou O Caso Térmita. A peça mostrava o julgamento de um cupim acusado de ter provocado o fechamento do teatro. Ao final, revelava-se que a verdadeira causa era o descaso das autoridades e a burocracia.
A estrela da primeira temporada de 1984 foi Bibi Ferreira, que encenou 41 concorridas sessões do musical Piaf. E assim o São Pedro retornou, mais glorioso do que nunca, à cena cultural brasileira, sediando espetáculos de teatro, dança, circo e música de artistas internacionais, nacionais e locais, sempre sob a supervisão do selo de qualidade de Eva Sopher, que se tornou a presidente da Fundação Theatro São Pedro. Sua determinação em preservar o prédio histórico frente à constante ameaça de sucateamento dos espaços públicos conquistou a admiração e o carinho não só do público gaúcho como dos diversos artistas que desembarcavam na Capital. O Theatro São Pedro se tornou uma fortaleza da cultura.
Uma única vez o cargo de Eva Sopher foi ameaçado. No início de 1991, correu a notícia de que o então governador eleito Alceu Collares tinha a intenção de substitui-la no São Pedro, assim como Sergio Napp (1939-2015) na direção da Casa de Cultura Mario Quintana. A reação da classe artística foi imediata. Segundo registro de Zero Hora na época, artistas como Antonio Fagundes, Fernanda Montenegro, Jô Soares e Marco Nanini enviaram mensagens a Collares pela permanência de Dona Eva. O gesto mais simbólico foi o abraço coletivo no prédio do teatro com cerca de 200 pessoas, no dia 14 de março, liderado pela Cia. de Ópera Seca, tendo Bete Coelho à frente. Gerald Tomas, diretor da companhia, escreveu um texto para Zero Hora de Munique: "São Pedro é dona Eva Sopher, pelo amor de Deus".
Durante o abraço coletivo, Eva acenava da sacada do prédio, que ganhou uma faixa preta de luto. Figuras da intelectualidade gaúcha, como Lya Luft, Olga Reverbel, P.F. Gastal e Tânia Carvalho, que era presidente da Associação de Amigos do teatro, marcaram presença no ato, que incluiu um abraço na própria homenageada. O movimento resultou na permanência de Eva e Napp em seus postos. Collares declarou: "O problema dela não surgiu de nós porque nunca imaginamos tirá-la da direção do Theatro São Pedro".
Um sonho ainda inacabado
Desde a época da reinauguração, Eva Sopher tinha o sonho de expandir o teatro para os terrenos contíguos. Depois de longas negociações envolvendo a prefeitura e o governo estadual, com doações e desapropriações, o projeto de um complexo cultural começou a tomar forma. A obra do que veio a ser chamado de Multipalco começou em março de 2003, com previsão de três anos de duração, a um custo de R$ 28 milhões. Diversas etapas foram inauguradas desde então, incluindo o estacionamento com três andares subterrâneos, área administrativa, salas multiuso, restaurante, Sala da Música, concha acústica (ainda sem equipamentos de som e luz) e foyer para eventos.
Já foram investidos R$ 42 milhões de patrocinadores e doadores individuais, financiados por meio da Lei Rouanet e da Lei de Incentivo à Cultura estadual, além de investimentos diretos, mas o Multipalco não está pronto. Ainda falta toda a parte interna do novo teatro italiano e do teatro-oficina, este voltado a espetáculos experimentais, embora o atual presidente do teatro, Antonio Hohlfeldt, tenha a ideia de já disponibilizar o teatro-oficina para uso do festival Porto Alegre Em Cena, em setembro. Traduzindo em números, será necessário captar ainda R$ 19 milhões para que a conclusão do Multipalco se torne realidade.
Em seus últimos anos, Eva Sopher se dedicou a capitanear uma ampla campanha nacional para arrecadar doações ao projeto, contando com campanha na televisão e apoio de estrelas nacionais. Foi uma causa que abraçou com a mesma intensidade com que havia se dedicado à reconstrução do teatro, entre os anos 1970 e 1980. Jamais desistiu. Mas no dia 7 de fevereiro deste ano, como uma atriz que entende ter cumprido seu papel mais importante, Dona Eva saiu de cena. Seu velório ocorreu dentro do teatro que foi sua segunda casa, ou talvez a primeira. As cinzas foram jogadas, em parte, junto à paineira de estimação, na área externa ao São Pedro. Outra porção foi levada a Santa Maria, onde está enterrado o corpo do marido. Seu legado foi de perseverança, como observa a designer Renata Rubim, uma das filhas de Eva:
– Acho que ela reforçou isso com o casamento, porque meu pai era um apoiador total. Se tivesse sido com outra pessoa ou sozinha, não se teria sido assim. Ela dizia que tinha todo esse vigor por causa do apoio dele. Minha mãe sempre foi muito informal, não tinha nada de convencional.
Inspirada em Eva, a filha Ruth Sopher Péreyron tornou-se também guardiã de um teatro, o Treze de Maio, em Santa Maria. Ela recorda:
– Minha mãe tem uma plaquinha no teatro, porque é nossa madrinha. Nos ajudou muito. Tudo que eu precisava, buscava com ela. Todo mundo diz que o Treze é o filhotinho do São Pedro, até porque tem metade do tamanho.
Também para os colegas do São Pedro Dona Eva representa uma inspiração. O presidente da Associação Amigos do Theatro São Pedro, José Roberto Diniz de Moraes, afirma que ela deixou como desafio a conclusão do Multipalco:
– De certa forma, diria que ela viu isso aqui pronto. Não viu o grande teatro e o teatro-oficina, mas isso é detalhe. Quando concluímos o foyer, em dezembro, eu a chamei. Ela sorriu. Acho que gostou uma barbaridade do que viu.
Trinta e quatro anos depois da reabertura, também o prédio histórico está exigindo atenção. Hohlfeldt, que tem mandato até dezembro como presidente da Fundação Theatro São Pedro, planeja para o final do ano uma parada para reforma que incluirá a renovação de algumas poltronas, carpete e sistema de ar-condicionado. Também é considerada a inclusão de poltronas para obesos e a ampliação da área para cadeirantes. O custo estimado das melhorias é R$ 1,5 milhão. Depois de assumir, em março último, o cargo que pertenceu a Eva Sopher com o discurso de conclusão do Multipalco, Hohlfeldt afirma que estará à disposição do próximo governo estadual para continuar o trabalho, mas não pretende ter uma trajetória tão longeva quanto a de sua antecessora:
– Se ficarmos mais quatro anos, é muito provável que consiga terminar a obra. Tenho disponibilidade para ficar mais um período, mas não gostaria de ficar muito mais do que isso, sinceramente.
Pouco antes do aniversário de 160 anos, a Orquestra Theatro São Pedro (OCTSP), criada em 1985, também ganhou novo comando. Evandro Matté assumiu como diretor-artístico e regente principal no lugar de Antônio Borges-Cunha, que comandou o conjunto nos últimos 18 anos. Matté acumulará o cargo duplo com a direção artística da Ospa e da Orquestra Unisinos Anchieta. Um concerto comemorativo pelo aniversário do teatro será realizado pela OCTSP neste domingo (24/6), às 18h, sob regência de Matté, com participação da Cia. Municipal de Dança de Porto Alegre.
Coexistindo hoje com grandes salas de espetáculo, como o Teatro do Bourbon Country, o Auditório Araújo Vianna e o Teatro do Sesi, o Theatro São Pedro nunca perdeu um lugar especial no coração dos espectadores. Tornou-se insubstituível. De certa forma, conecta os gaúchos com o rio da história. Como se não bastasse, virou "pop", na expressão do pesquisador teatral Luís Francisco Wasilewski:
– Graças a Eva Sopher. Ela era uma figura pop. O fato de ter permanecido na direção foi um ganho para o São Pedro. Acompanhando outros teatros no Brasil, e percebo que, quando trocam o diretor, o novo acaba com o trabalho do anterior. Veja, por outro lado, a maneira como Eva Sopher conseguiu tratar aquela casa e se tornar querida entre os atores de fora daqui.
Se no século 19 o São Pedro era o centro da vida cultural e social da cidade, hoje talvez represente um espaço de resistência. Que está prestes a se tornar, com o Multipalco, um dos maiores complexos culturais do país. Mas restam desafios. Um deles é conquistar um novo público cuja atenção é disputada com uma infinidade de distrações pós-modernas. Outro é buscar um equilíbrio entre a programação de fora do Estado e a produção local. Artistas gaúchos historicamente reivindicam mais agenda no tradicional palco. Para Clóvis Massa, da Pós-graduação em Artes Cênicas da UFRGS, a parceria entre uma sociedade particular e o poder público costurada por ocasião da construção do São Pedro, no século 19, marcou sua identidade:
– No meu entendimento, esse início nebuloso e conflituoso em relação à posse pública ou privada, e a falta de um projeto de descentralização cultural de parte dos órgãos públicos quando de sua atividade a partir de sua reinauguração, tornam o Theatro São Pedro um espaço público (administrado pelo governo estadual) mascarado de espaço privado, ou vice-versa.
Pensando no equilíbrio entre a programação local e de fora do Estado, o diretor artístico do São Pedro, Dilmar Messias (ele também um representante da cena gaúcha), celebra o atingimento de uma proporção de 82% de programação local nos espaços do teatro em 2017, entre palco principal, foyer e Sala da Música do Multipalco.
– O dado alentador é que o percentual de público se manteve estável mesmo com o aumento do espaço para a produção local, contrariando algumas previsões pessimistas – diz Messias. – Os projetos que criamos para este ano, como Mistura Fina, Teatro Hoje e a Mostra Pirlimpimpim de Teatro Infantil, também são voltados principalmente a atrações locais.
* Colaborou Fernando Corrêa