Guignard, Pancetti, Portinari, Nery. Para a maioria de nós, esses são nomes fundamentais da arte brasileira. Para o jornalista e empresário Roberto Marinho (1904 – 2003), eram também amigos cujos ateliês frequentava, acompanhando a criação de obras que ajudariam a construir o modernismo no Brasil.
Foi a partir desse lugar privilegiado que o criador do Grupo Globo começou a compor sua coleção de arte, em 1939, quando tinha 35 anos. Ao invés de mirar grandes nomes, apostou em jovens promissores – aqueles sobrenomes do início deste texto e muitos outros que ajudou a projetar. Essa sua faceta de colecionador de arte e mecenas ganha visibilidade com o Instituto Casa Roberto Marinho, centro cultural inaugurado na residência onde o jornalista viveu, na zona sul do Rio de Janeiro. A bela mansão, no bairro Cosme Velho, tornou-se um lugar para ver arte moderna e abstracionismo informal, especialidades da sua coleção, que é considerada uma das 10 mais importantes do Brasil.
Desde a abertura, em 28 de abril, o espaço tem recebido, em média, 400 visitantes por dia. Quem chega deve circundar um canteiro de flores vermelhas, com estátuas e uma fonte, para chegar ao imponente casarão. A fachada rosa contrasta com o paredão verde da floresta da Tijuca, que emoldura o prédio como uma continuação do jardim. Em um dia claro, é possível enxergar o Cristo Redentor ao longe, acima do telhado.
Vale a pena demorar-se no jardim, um dos primeiros projetos privados do arquiteto paisagista Roberto Burle Marx (1909–1994). Ao som relaxante de uma queda d'água do Rio Carioca, que passa pela propriedade, o visitante é convidado a passear entre plantas tropicais e esculturas de artistas consagrados, como Pássaro (1969), em mármore carrara, de Bruno Giorgi, e Flexos 6 (2007), em metal, de Ascânio MMM.
A mansão foi construída em 1942, por encomenda do próprio Marinho, em estilo neocolonial inspirado no Solar de Megaípe, fazenda pernambucana do século 17. Marinho viveu lá de 1943 até a morte, em 2003, quando o local recebeu seu velório. Nessas seis décadas, a casa virou ponto de encontro da alta sociedade carioca, atraída por eventos que contavam com música, literatura, artes plásticas e teatro. Fotografias de arquivo mostram Dorival Caymmi, Amália Rodrigues e Pixinguinha fazendo shows na sala de estar e os atores Tônia Carrero e Paulo Autran apresentando uma peça nos jardins. Quando Marinho comprou duas pinturas para doar ao Museu de Arte de São Paulo (Masp), uma de Modigliani e outra de Renoir, fez questão de organizar uma festa para apresentar as obras à sociedade carioca. Eram tantas recepções a personalidades ilustres do Exterior e políticos que a casa foi apelidada de "sede informal do Itamaraty". Entre os convidados, estavam os ex-presidentes da república Juscelino Kubitschek e José Sarney.
Hoje restam poucos vestígios desse passado glamoroso: no salão principal, ficou um piano de cauda, agora sem os retratos de família em cima. Sumiram sofás, mesas e tapetes. Para ver a residência mobiliada e conhecer sua história, os visitantes fazem fila para um pequeno cinema, nos fundos do térreo, que exibe continuamente o documentário Casa, do diretor Antonio Carlos da Fontoura. Os famosos flamingos, que eram criados por Marinho e sua esposa Lily, também sumiram. Foram substituídos por carpas já que o fluxo de visitantes da casa aumentaria muito.
Ainda que um canto do jardim guarde uma escultura abstrata assinada pelo próprio Marinho, de maneira geral, a presença do proprietário é discreta na casa. Segundo o antropólogo e curador Lauro Cavalvanti, que dirige o instituto, os filhos do colecionador não queriam uma instituição memorialista:
– A família tomou essa decisão de não fazer um culto à personalidade dele.
Quando pergunto se transformar a casa em instituto era uma vontade de Roberto Marinho, o diretor não sabe responder, mas lembra das várias vezes em que a coleção foi exibida. Ele mesmo foi o curador de algumas, por isso foi convidado a assumir o centro cultural.
– O Roberto tinha vontade que a coleção fosse vista, por isso emprestava bastante as obras. Mas não falava sobre o que viria depois da morte.
A missão de Cavalcanti foi priorizar a arte e criar um centro de referência do modernismo brasileiro.
– Os museus de arte moderna apresentam muitas exposições de arte contemporânea. Aqui nos propomos a ser um lugar onde se pode ver arte moderna de maneira contínua.
Entre 2014 e 2018, o curador acompanhou o projeto de transformar a casa em centro cultural, executado pelo arquiteto Glauco Campello. O terreno ganhou um anexo para reserva técnica e um pavilhão com livraria, café e sala para oficinas e cursos. Enquanto o primeiro piso da mansão sofreu poucas modificações, o segundo foi transformado em uma série de galerias – atualmente, nada indica que um dia foram biblioteca e quartos, exceto um discreto registro na varanda ligada ao antigo dormitório de Marinho. Um elevador foi implantado para melhorar a acessibilidade.
A obra foi financiada com recursos próprios da família Marinho, sem recorrer a incentivos fiscais, mas o orçamento não é divulgado.
– Foi feito um esforço grande para pôr esse centro de pé. Não se recorreu a isenção fiscal, em um período de crise. É nosso objetivo retomar compras, mas não pelos primeiros dois anos. Primeiro, vamos fazer uma coleção sólida – diz o diretor.
Segundo Cavalcanti, a prioridade agora é costurar parcerias com outras instituições. A próxima mostra, em dezembro, incluirá peças do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Outro objetivo é estabelecer contatos com instituições vizinhas para melhorar o bairro, que costumava abrigar o Museu Internacional de Arte Naïf (Mian), hoje desativado.
A coleção
A Coleção Roberto Marinho começou como uma aposta em artistas promissores da primeira metade do século 20, nomes como Portinari e Guignard, que assimilavam as vanguardas europeias ao mesmo tempo em que buscavam uma linguagem e temáticas distintamente brasileiras. Hoje, conta com 1.473 obras, entre pinturas, esculturas, gravuras e desenhos. Apesar de incluir estrangeiros, como Chagall, De Chirico e Léger, o foco do acervo é o modernismo brasileiro, especialmente o dos anos 1930 e 1940, e o abstracionismo informal – movimento das décadas de 1950 e 1960, composto por nomes como Antonio Bandeira, Iberê Camargo, Manabu Mabe e Tomie Ohtake.
Para adquirir as obras, Marinho contava com a ajuda de especialistas, mas era dele a palavra final. Quando a coleção ficou grande para as paredes da casa, passou a ser guardada em um local específico e era frequentemente emprestada para instituições. Entre 1984 e 2014, foram organizadas doze mostras da coleção em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza, Buenos Aires e Lisboa.
Atualmente, duas exposições estão em cartaz no casarão e poderão ser visitadas até o início de dezembro. Em uma pequena galeria do térreo, 10 Contemporâneos – A Casa reúne gravuras inéditas sobre o tema "casa". Encomendadas a 10 artistas contemporâneos (nomes do primeiro escalão, como Daniel Senise e Anna Bella Geiger), passaram a integrar a coleção Roberto Marinho. Mostras assim, em que artistas de hoje dialogam com o instituto e seu acervo, devem ser comuns na instituição. No jardim, também há novas obras, encomendadas especificamente para o local, como a instalação de Carlos Vergara que conversa com um conjunto de bambus e a escultura Mulher Nova 3 (2017), de Raul Mourão, que se move com o vento, apesar de ser de aço e ter 350 metros de altura.
Ocupando todo o segundo andar, está a exposição principal: 10 Modernos – Destaques da Coleção. Cavalcanti selecionou 124 obras dos artistas que melhor representam o acervo de Roberto Marinho e são também expoentes do modernismo brasileiro dos anos 1930 e 1940: Di Cavalcanti, Alberto Guignard, Cândido Portinari, Tarsila do Amaral, Djanira, Burle Marx, Milton Dacosta, José Pancetti, Lasar Segall e Ismael Nery.
Como a coleção foi constituída a partir do gosto pessoal de Marinho, é inevitável se perguntar, por exemplo, o que lhe teria cativado em obras tão diferentes quanto um vaso de flores pintado por Portinari em 1950 e a soturna tela A Barca, do mesmo artista, de 1941. Ou por que preferiu adquirir três telas com o mesmo tema pintadas por Tarsila do Amaral.
São paisagens com casas em montanhas, como O Touro (Paisagem com Touro), uma raridade de 1925 que o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) solicitou para sua retrospectiva da artista.
– Esse quadro iria para o MoMA, mas não queríamos desfalcar a exposição na abertura da casa. É uma pintura emblemática da primeira fase da Tarsila, uma das 10 obras mais importantes da pintora – explica o curador.
Quatro telas revelam que o Burle Marx pintor tinha muito em comum com o Burle Marx paisagista: as formas humanas são arredondadas como os canteiros do jardim; nas naturezas-mortas, o fascínio pelas plantas é expresso nas folhas verdes exuberantes, que protagonizam os quadros. De Guignard, há uma sala inteira.
Ismael Nery é o artista com mais trabalhos na coleção: são 70, na maioria, desenhos. Obras com uma figura bissexual ou o encontro de Cristo e Lênin mostram como o artista se debruçava sobre temáticas à frente do seu tempo – e, segundo o curador, recebia incentivos de Marinho por isso.
Com 29 obras de Pancetti, Marinho era um dos principais colecionadores do artista no país e costumava expor suas obras em uma sala específica. As marinhas, gênero pelo qual o artista é mais conhecido, estão alinhadas em uma parede, como se costuradas num mesmo horizonte. E um quadro recebe destaque: Boneco (1939), que Marinho recebeu de presente do artista e amigo, era o seu favorito. Ao olhar para a figura, o empresário fazia uma viagem introspectiva à própria infância. Apresentado junto a um texto seu, o quadro torna-se mais íntimo do que qualquer objeto pessoal que poderia estar exposto.