Fabio Szwarcwald viveu um turbilhão na semana que passou. Economista que atuou por mais de duas décadas com gestão empresarial e no mercado financeiro (foi vice-presidente do banco Credit Suisse), é um reconhecido colecionador de arte contemporânea e integra conselhos de instituições como MAM-RJ e New Museum de Nova York. No Rio de Janeiro, dirige a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, ligada ao Estado e instalada em um palacete em uma grande área verde do bairro Jardim Botânico, na capital fluminense. É lá que será apresentada, a partir de 18 de agosto, a exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, fechada em setembro de 2017 pelo Santander Cultural, em Porto Alegre. A vaquinha virtual que viabilizou essa nova edição, coordenada por Szwarcwald, bateu recordes. Mas ele foi exonerado do cargo na quarta-feira (11/7) pelo secretário da Cultura do Rio, Leandro Monteiro, e só voltou ao posto, na quinta (12), após pressão da comunidade cultural. A entrevista a seguir ele concedeu presencialmente, no Parque Lage, antes do imbróglio – exceto as duas primeiras perguntas, que foram respondidas por telefone após esse vaivém no cargo.
O Secretário da Cultura do Rio, Leandro Monteiro, o exonerou do cargo de diretor do Parque Lage, mas reconsiderou a decisão no dia seguinte. Como você avaliou esse episódio?
Fui pego de surpresa. Minha exoneração teria sido por motivos administrativos, mas eu realmente não sei até agora que motivos administrativos são esses. Meu foco, no Parque Lage, tem sido desenvolver um trabalho de sustentabilidade, com perfil de captação diferente e resultados expressivos, como foi o crowdfunding da Queermuseu (leia em quadro ao final desta entrevista). Por toda comoção de artistas, professores e a sociedade em geral, o secretário reconsiderou sua decisão. Volto trabalhando normalmente.
Pelo histórico de polêmicas em torno da Queermuseu, a sua exoneração poderia ser uma represália?
Pode parecer, mas não foi. O secretário inclusive comentou publicamente que era a favor da exposição, não a censuraria.
Em outubro, o Museu de Arte do Rio (MAR) anunciou a desistência de montar a Queermuseu. Logo depois, você divulgou a intenção de levar a mostra ao Parque Lage. como foi essa movimentação?
Quando o MAR se colocou à disposição para trazer a mostra ao Rio, pensei: "Perfeito, a Queermuseu virá para uma instituição que se posicionou contra a censura". Só que ninguém esperava que o (prefeito do Rio, Marcelo) Crivella produzisse um videozinho com assessores dizendo que o Rio não quer essa exposição e que ela só vai ocorrer na cidade se for no "fundo do mar". Isso pegou todo mundo desprevenido. Foi aí que a gente se posicionou. Só que não tínhamos dinheiro. Quando o então secretário (da Cultura do Estado do Rio) André Lazaroni assinou um acordo com o (curador da Queermuseu) Gaudêncio Fidelis e com a Associação de Amigos que administra a escola do Parque Lage, no qual todos se comprometiam a realizar a exposição, pudemos começar a busca pelos recursos.
Um ponto contestado pelos críticos da mostra foi o uso de recursos públicos em Porto Alegre. Vocês pensaram em custeá-la com dinheiro do Estado?
O Estado não tem dinheiro para bancar isso, e, se eu fosse usar a Lei Rouanet, perderia o timing de fazer a exposição, pois há demora para aprovação e captação dos recursos. Em nenhum momento pensei em ter recursos públicos, porque creio na apresentação da exposição no Rio como uma resposta da sociedade à censura do prefeito Crivella. Ele falou que o carioca não queria a exposição. Meu trabalho foi mostrar que o carioca quer, sim, ver a exposição. E para isso investiu seu próprio dinheiro, via crowdfunding.
Reabrir a exposição no Rio é uma resposta a Crivella?
Não só a ele. Queremos fazer frente à onda de obscurantismo que há no Brasil. Nesse momento, o porta-voz dela foi o Crivella. Foi ele quem proibiu a exposição de vir para o MAR. Foi ele quem censurou. Nossa luta é contra a censura.
Queremos fazer frente à onda de obscurantismo que há no Brasil. Nesse momento, o porta-voz dela foi o Crivella. Foi ele quem proibiu a exposição de vir para o MAR. Foi ele quem censurou. Nossa luta é contra a censura.
FABIO SZWARCWALD
O prefeito pode barrar uma exposição no MAR?
O MAR é uma organização social (OAS), que tem um mandato para administrar o museu, mas que é baseado em um contrato de alguns anos feito com a prefeitura. Esse contrato pode ser cindido por alguma das partes. O grande receio, ao meu ver, é você ter uma situação em que eles poderiam bancar a exposição, mas podendo haver, depois, um problema contratual, uma represália. Acho que foi por isso que recuaram.
Crivella procurou você?
Não, nem Crivella, nem MBL (que liderou os protestos contra a exposição em Porto Alegre). Toda essa situação trouxe à tona a questão da censura no país. É algo que a gente nunca imaginou ver de novo, que era falar sobre pedofilia na arte, ou zoofilia, que era mais absurdo ainda. Isso foi divulgado de uma maneira completamente distorcida pelo MBL, criando uma situação em que você começa a questionar os valores da família brasileira, a perguntar: "Você vai levar a sua criança numa exposição em que você vai ver um cara pelado?". Como se o trabalho saísse da parede e influenciasse um pai a pensar em pedofilia ou zoofilia. É uma loucura. O Ministério Público Federal obrigou o Santander a reabrir a exposição, dizendo que não havia pedofilia nem zoofilia. E o Santander não quis.
Após o anúncio de que traria a exposição, o Parque Lage recebeu críticas?
Não. Houve reações contra o MAR, que recebeu milhares de e-mails em um fim de semana – mas de robôs virtuais. No Parque Lage, contratamos uma empresa para responder a perguntas, caso aparecessem. Mas não houve muito e-mail contra – uns 10, no máximo.
Vocês estão preocupados com possíveis agressões?
Não. Seria uma surpresa. As pessoas já viram que não tem veracidade nenhuma no que foi falado. Então, só se for algum fanático. Mas a gente vai estar preparado, com uma estrutura de segurança. E, apesar de a entrada ser gratuita, as pessoas vão ter de se cadastrar para ver a exposição, botar e-mail e telefone, para a gente ter um controle de quem está frequentando.
Haverá classificação etária?
Estamos analisando isso. Vamos seguir o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Constituição. Vamos fazer o que a lei manda.
O que manda a lei?
Esse tipo de episódio nunca existiu em nenhuma exposição de arte. Você pode avisar que há cenas de nudez. Foi assim com a exposição A História da Sexualidade, do Museu de Arte de São Paulo (Masp), que proibiu a entrada de menores, mas depois mudou para uma classificação de 16 anos.
Houve pais que não puderam levar seus filhos nessa mostra.
Não podia, depois mudou. A Deborah Duprat (procuradora da República) fez uma nota dizendo que não fazia sentido proibir por questões religiosas ou sexuais. Aí o Masp mudou. Foi uma mostra linda. Das mais visitadas do Masp.
E foi aberta logo depois da Queermuseu.
Exatamente. Acho que o Masp teve medo, depois do que aconteceu.
Esse medo pode levar as instituições a uma autocensura. Quando vocês abraçam a Queermuseu, qual recado estão mandando para outras instituições?
Trata-se de um ato de resistência e demonstração a todos os outros equipamentos culturais de que não podemos aceitar a censura. É um recado a todo o Brasil. Não faz nenhum sentido dizer que a exposição desrespeita religiões. O que poderia fazer isso? Um Cristo misturado com Shiva? Isso não tem nada a ver.
A campanha de financiamento coletivo bateu o recorde brasileiro. Como foi a estratégia de vocês?
Quando acertamos a realização da exposição, já era novembro, e lançar uma campanha de crowdfunding em dezembro é ruim, porque você perde a atenção das pessoas para as festas. Por isso lançamos no fim de janeiro, para pegar março, também. As campanhas têm um pico no início, depois há um vale e sobe de novo no final. Nesse ínterim a gente fez vários eventos para se conectar às pessoas, incluindo um show do Caetano Veloso.
Como vocês aproveitaram a verba extra obtida com o crowdfunding?
Reformamos as cavalariças (as Cavalariças do Parque Lage, espaço onde ficará a exposição) e melhorei o programa para trazer pessoas de outros Estados para dar palestras aqui.
Vamos usar a ‘Queermuseu’ para demonstrar que a arte é tão vital quanto saúde, educação e segurança. Porque ela faz com que a gente não repita erros do passado. É a cultura que faz as pessoas entenderem sua história e seu lugar no mundo.
FABIO SZWARCWALD
A polêmica em torno da exposição estava relacionada à falta de informação sobre a mostra, que sequer foi vista por muitos que a discutiram, mas também porque parte do público se sente perdida diante da arte contemporânea, fica sem referências para poder opinar.
Exato. As pessoas vão às exposições, não entendem, leem um texto, mas aquilo não as toca. É por isso que minha ideia é realizarmos debates sobre a mostra. Vamos usar a importância da Queermuseu também para demonstrar que a arte é vital, tão importante quanto saúde, educação e segurança. Por quê? Porque ela faz com que a gente não repita os erros do passado. Estamos vendo agora uma onda de agressividade, bradada por pessoas que não entendem o que foi a ditadura no Brasil, quantos morreram, o quanto houve de corrupção e outras coisas muito piores do que estamos vivendo hoje. Porque, na época, não se sabia e não se podia falar a respeito. É a cultura que faz as pessoas entenderem a sua história, o seu passado e seu lugar no mundo. Qual é o primeiro ministério que se acaba quando corta o orçamento? A Cultura. Por quê? Em que tempo a gente vive? A cultura é valorizada no mundo inteiro. E a brasileira é maravilhosa.
O fato de a exposição ser montada em uma escola também é simbólico.
Exatamente por ser uma escola é que é mais importante ainda trazer a Queermuseu. A arte tem de ensinar as pessoas. Essa questão de censura é ignorância; as pessoas censuram o que elas não conhecem. As pessoas têm medo de falar sobre certas questões quando essas questões não parecem ser seus problemas, mas dos outros. É o caso da cultura LGBT+. Mas temos de nos dar conta de que, não, essa cultura afeta toda a nossa sociedade.
O Parque Lage tem um espaço bem diferente do Santander Cultural, o que por si só já determina que a exposição do Rio seja diferente, mas haverá mudanças com relação às obras em exibição?
A diferença vai ser muito pequena. Devem vir mais de quatro quintos das obras: se no Sul houve 260 trabalhos, aqui haverá 223. Havia artistas com cinco ou seis obras, de quem vamos trazer três, por exemplo. A princípio terá quase o mesmo número de artistas.
As obras mais polêmicas estarão no Rio, como as de Fernando Baril, Bia Leite e Adriana Varejão?
A ideia é trazer todos esses trabalhos polêmicos, sim. A pintura Cruzando Jesus Cristo com o Deus Shiva, do Baril, com certeza estará na exposição. A da Adriana (Cena de Interior II, em que há imagens que compilam diversas práticas sexuais) também. É uma obra forte, mas não tem nada de mais, mostra nosso histórico de colonização, coisas que aconteciam – e que as pessoas não querem ver. Seria a mesma coisa os poloneses não quererem mais admitir o nazismo. Como se não falar trouxesse benefícios para a sociedade, fazendo esquecer o sofrimento. Não se esquece! Não gostamos de falar de assunto sofrido, mas, se não sofremos, não evoluímos.
E a pintura Travesti de Lambada e Deusa das Águas, de Bia Leite?
Está confirmada, também. Esse trabalho dela é incrível, porque "viada" (inscrição na obra, na qual se veem duas crianças) é uma expressão que nem existe. Fala sobre a questão do bullying. Veja o que é: as pessoas leem a inscrição "criança viada" e a associam à pedofilia...
Você viu a exposição em Porto Alegre?
Não. Como 99% das pessoas que criticam não viram.
Então foi uma aposta cega que vocês fizeram?
Não foi uma aposta. A qualidade da exposição pouco importa. A causa ficou muito mais importante. Estamos lutando contra a censura à arte, e não a favor de uma única exposição.
Quando os aeroportos foram privatizados, empresas começaram a ver formas de maximizar o lucro. Querem um tipo de taxação em que você valora a obra e aí cobra um percentual sobre esse valor, e não sobre a metragem cúbica do negócio. No mundo inteiro, é usada a metragem cúbica, e há uma taxa pequena se for obra de arte. A gente está inventando moda. Não veremos mais Picasso no Brasil. Nem Matisse. Isso é uma tragédia.
FABIO SZWARCWALD
Qual é a sua expectativa de público?
Acho que vai ser inacreditável, todo mundo quer vir ver. E a entrada será gratuita. As pessoas querem conhecer o que aconteceu. É algo que precisa ser visto, porque está tudo no imaginário das pessoas. Há quase sete meses, todo o país fala dessa exposição, e ninguém a viu. Exceto vocês, gaúchos. É uma coisa meio cabeça de bacalhau, que todo mundo come, mas nunca ninguém viu... Parece uma exposição fantasma. Vamos vê-la e debatê-la, e depois chegar às nossas conclusões.
Você acredita que estamos vivendo uma onda de censura à arte no mundo?
A direita, hoje, está em ascensão no mundo todo. Em lugares como o Leste Europeu e os países árabes, isso pode estar acontecendo de maneira muito pior do que se imagina, mas só vemos episódios na França, nos EUA. Há um movimento mundial em direção ao conservadorismo, e, como a arte cria discussões, instiga, tira você da zona de conforto, acaba provocando reações. Muita gente não quer sair da zona de conforto, está receosa da nova ordem mundial segundo a qual há mais pluralidade. Trata-se de um momento muito complicado para as artes, sim.
Como colecionador, você deve estar atento à polêmica envolvendo o aumento nas taxas de armazenagem de objetos culturais importados praticadas pelas concessionárias dos aeroportos de Guarulhos, Viracopos e Galeão. O que acha disso?
É uma loucura, um absurdo. Quando os aeroportos foram privatizados, várias empresas assumiram a operação e começaram a ver formas de maximizar o lucro da movimentação de cargas. Querem um tipo de taxação em que você valora a obra e aí cobra um percentual sobre esse valor, e não sobre a metragem cúbica do negócio. No mundo inteiro, é usada a metragem cúbica, e há uma taxa pequena se for obra de arte. A gente está inventando moda com isso. É mais uma situação complicada para a nossa cultura, porque não vai mais haver exposição de grandes artistas de fora aqui no país!
É possível que isso tenha impacto na Queermuseu?
Acho que não, porque o transporte será rodoviário. E as obras são do Brasil. Mas assim: não veremos mais exposição do Picasso no Brasil. Nem do Matisse. Porque o cara que pagava R$ 20 mil para a questão aduaneira agora vai pagar R$ 500 mil ou R$ 1 milhão. Não há dinheiro para isso, virou uma coisa absurda. E aí ficamos nós, brasileiros, sem poder ver as grandes obras de arte, com os caras dos aeroportos achando que está tudo bem. Isso é muito preocupante. É uma tragédia.
Arrecadação recorde
A vaquinha virtual realizada pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage para bancar a exposição Queermuseu é considerada a de maior arrecadação já obtida no Brasil. A meta era somar R$ 690 mil entre janeiro e março deste ano, e o valor chegou a R$ 1,081 milhão, doados por 1,7 mil pessoas.
O Parque e a Escola
Fundada em 1975 pelo artista Rubens Gerchman, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage é uma escola livre, ou seja, não oferece diploma, mas certificado, e tem em seu quadro de professores nomes importantes das artes visuais do país. Ela é parte do equipamento da Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Janeiro e habita um espaço federal, já que o Palacete e o jardim pertencem ao ICM-Bio (antigo Ibama). A escola tem um comodato com o Estado por 20 anos, renováveis por mais 20 anos no palacete.