Lenine se considera um artesão e um mascate. Apesar viajar o mundo com sua música, o pernambucano foi desacreditado pela indústria da fonográfica no início da carreira – seu pop regionalista não estava entre as apostas das gravadoras nos anos 1980 e 1990. Ele então aprendeu a produzir e a divulgar seu trabalho de modo alternativo e original. O recém-lançado Em Trânsito prova que Lenine segue indócil aos padrões de consumo: trata-se de um álbum de canções inéditas registrado ao vivo, com desdobramentos em CD, DVD e documentário lançados em datas diferentes – o disco pode ser ouvido nas plataformas de streaming. O cantor e compositor conversou com ZH pouco antes de vir a Porto Alegre, onde faria show na sexta-feira (22/6) – confira o serviço completo do show aqui. Na entrevista, ele defende o afeto como forma de superar o "tempo cinzento" de intolerância.
Em Trânsito, seu novo álbum, é um disco de inéditas, mas gravado aos vivo. As faixas apareceram primeiro nos serviços de streaming, o CD deve sair neste mês e o DVD está programado para 1º de agosto, mesma data de estreia do documentário sobre o projeto no Canal Brasil. Por que esse modo inusitado de divulgação?
Ao longo da vida toda, o músico tenta burlar um sentimento de repetição próprio do nosso ofício. Com os anos, aprendi que o bacana não é chegar a algum lugar, mas mergulhar no caminho. Descobri que há um período de vida útil de cada trabalho que faço, de dois anos e meio a três, para retornar aos lugares que costumo tocar e abrir novos públicos. No final do ano passado, eu não queria voltar a um estúdio, pois esse é um processo que dura de cinco a oito meses. Conversando com meu filho Bruno (Giorgi, é diretor musical do projeto), ele disse: "Pô, vamos fazer um show. Você vive de show". Fazer um show novo exige músicas novas e tudo o que vem a reboque. A descoberta desse caminho também reafirma uma coletividade. No final das contas, meu trabalho sempre foi muito familiar, no sentido de que tenho um grupo de pessoas que me acompanha há 20 ou 30 anos, adaptando os discos que gravo para o palco. Para você ter uma ideia, o mais novo é o Bruno, que nasceu no meio desse lance. No Em Trânsito, aproveitei para que a banda desse a primeira roupagem das canções. Ou seja, coloquei o foco nesse coletivo.
Mais uma coisa marcante é que, nesse novo disco, você não está tão presente com o violão.
Eu me impus algo importante nesse processo. Apresentei as canções inéditas a capela para a banda. Apenas a melodia e as palavras. Parti da premissa de que, se a música não soasse bem desse modo, faria outra. Como eu sabia do foco que esse grupo de músicos que toca comigo deveria ter, não quis "dar o hálito". Vou explicar o que é isso. O violão é quase uma extensão do meu corpo. Minhas composições são carregadas desse DNA. Mas esse violão induz um caminho, porque é um violão impregnado de ritmo, tem as baixas frequências que uso sempre. Isso, de alguma maneira, definia um caminho, ou seja, dava o hálito para a coisa. Com as canções novas, me impus mostrá-las sem o instrumento. Esse exorcismo da minha parte foi benéfico. Terminou que o show teve um ganho.
Você fica sem tocar violão no show?
Sim. Em quase metade do show fico sem tocar. As canções começaram a ganhar outro peso, pois pude me divertir de outra maneira no palco. Isso está sendo muito estimulante. As palavras ganham peso diferente quando você não está com seu instrumento. Você não precisa dividir sua atenção. Quando você mergulha nas palavras, aí os significados passam a ser elementos fundamentais para aprofundar, dar outras matizes à música. É incrível porque, mesmo sendo o compositor, às vezes percebo que uma letra ganha outra dimensão por causa de uma pausa ou de outros elementos, em um relevo sonoro. Só descobri isso por causa desse exorcismo do violão.
Apesar de a venda de discos já não ser mais um grande negócio, os artistas continuam gravando álbuns em estúdio, às vezes como um ponto de partida para criar um novo show. Você acabou invertendo esse processo, começando pelo show...
Sim. Extraí de uma única apresentação, que fiz só para amigos, vários produtos diferentes, tanto digitais como físicos: CD, vinil, DVD e documentário. Pensando no digital, tive um esforço de fazer as canções terem sentido mesmo tocadas de maneira randômica, porque cada um faz a sua narrativa a partir do que ouve online. Já os produtos físicos são como uma versão do diretor sem cortes.
Hoje está tudo muito pulverizado. Parece que tudo está disponível na internet, mas, na verdade, há uma invisibilidade muito grande. Já não existe mais aquela coisa de você falar para milhões. Agora são milhares falando para milhares.
LENINE
Músico
Você sente saudade da época em que a indústria do disco estava em alta, como nos anos 1980 e 1990?
Sou meio que uma exceção no meio disso. Falando em 1980 e 1990, fui eu quem produzi meus discos. Em um período de 10 anos, não tive nada editado, do Baque Solto (1983) ao Olho de Peixe (1993). Sempre fui meio artesão, mascate.
Isso deve ter fortalecido você para esse ambiente em que não há grandes corporações dando visibilidade aos artistas, mas cada artista dando um jeito de mostrar o seu trabalho.
Exato. Neste momento em que as pessoas descobrem que são a mochila que carregam, o seu conteúdo e o trânsito que conseguem fazer com ela, percebo que fiz isso a vida toda. Sinto-me confortável. Mas a questão maior é que adquiri um grande liberdade, de só fazer o que me sinto capaz, além de ousar pensar um pouquinho além. Tanto é que só uma parte do que produzo me sinto capaz de gravar. Não interpreto tudo o que componho, por exemplo.
O formato do Em Trânsito prova que é possível produzir e divulgar música de modos originais, combinando tecnologias digitais, mídias analógicas e performances ao vivo. Para um músico que está começando, isso pode ser uma inspiração, mas também uma fonte de angústia, já que não há um padrão a seguir. Como você analisa esse cenário para os jovens músicos?
Hoje está tudo muito pulverizado, embora haja essa sensação de que é fácil encontrar as coisas. Porque tudo parece que tudo está disponível na internet, mas, na verdade, há uma invisibilidade muito grande. A arte de procurar virou uma coisa fundamental dentro desse universo de tanta informação. Pelo fato de trabalhar com música, de ter esse viés autônomo, recebo muita coisa boa de gente nova. Percebo que há muita coisa bacana sendo produzida. É lógico que isso chega para mim porque tenho essa exposição, tenho três filhos que me municiam e que são próximos e cúmplices. Por causa disso, tenho acesso. Mas sua pergunta é muito difícil de responder, porque já não existe mais aquela coisa de você falar para milhões. Isso ainda acontece, mas é casa vez mais raro. Agora são milhares falando para milhares.
Você mencionou que o período de circulação de cada novo trabalho seu é de cerca de dois anos e meio. É tempo para visitar palcos do Brasil, mas também da América do Sul e de outros continentes. Como você conseguiu conquistar públicos tão distantes?
Quando você tem a possibilidade de sair do Brasil, você se reconhece nas pessoas. Esse primeiro interesse internacional se deu no início da década de 1990, com Olho de Peixe. Naquele momento, também estava bombando a ideia da world music, como se houvesse uma "jupiter music" ou uma "mars music". Na verdade, levava esse rótulo qualquer música que não era anglo-saxã. Tudo que não era cantado em inglês. Apesar desse rótulo estranho, isso deflagrou uma série de festivais com o mesmo espírito. Aí me reconheci em muita gente de longe. Era possível perceber que um cara lá na Ucrânia que tinha um trabalho que dialogava com o meu, por exemplo. Isso fazia você se sentir menos sozinho. Foi algo que me fortaleceu e me acompanha pela vida.
Como está esse cenário hoje? Ficou mais fácil ou difícil circular fora do país?
Para mim, sempre foi difícil, mas também muito prazeroso. Minha equação é diferente. As incógnitas são diferentes. Sempre fui meu próprio produtor, mas não aprendi a ser produtor. Tive de fazê-lo porque tomei um "não" da indústria. Uma série de coisas deflagrou os caminhos que percorri. E a maioria delas passa por esse espírito mascate e uma grande dose de cabeça-durismo, de dizer "Não, eu quero ir ali, eu quero ir além". Como não tinha onde aprender, fui fazendo e aprendendo.
Você teve uma presença marcante nos festivais regionais. Em 1992, ganhou o Musicanto, em Santa Rosa (RS), com a música Candeeiro Encantado. Qual foi a importância de festivais como esse na sua carreira?
Ganhei o Musicanto e saí de Santa Rosa dirigindo o carro que me deram de prêmio, lembro bem (risos). Nos festivais, descobri uma coisa muito bacana: os pares. Era um um bocado de gente que se sentia inadequada dentro do que estava estabelecido. Eu me reconhecia naqueles compositores que só tinham os festivais para mostrar seu trabalho. Para mim, isso foi muito revelador. Por dois ou três anos, ficou evidente, para mim, que havia tanta gente compondo belamente, cantando e tocando, e que não tinha um nicho. Eu já me senti dessa maneira. Além disso, tinha parceiros da minha geração aí do Sul, dos quais eu era muito próximo. Vitor Ramil é um exemplo. Quando cheguei no Rio pela primeira vez, Vitor também estava chegando. A gente se reconheceu de imediato, embora eu viesse de um lugar pleno de aridez, e ele já estivesse falando de Estética do Frio (manifesto lançado nos anos 1990, à época do disco Ramilonga). A gente achou bacana perceber que o Brasil tinha essa amplitude.
Você avalia que o Sul e o Nordeste têm muito em comum, no sentido de que são duas regiões que se desenvolvem fora do eixo central do país?
Sim, e as pessoas não querem perceber isso. Se você procurar, descobre afinidades onde, em tese, não existiriam. Isso também remete ao Em Trânsito. Como um contraponto a essa distopia em que vivemos, essa desesperança, não foi gratuito o fato de abrirmos nosso show, o disco e o vinil com a canção Leve e Suave, que fala sobre “viver no afeto”. Essa questão é fundamental. É preciso reverberar que a maior tecnologia que o ser humano já inventou é o afeto. Não é por acaso que tenho essa banda familiar, que está comigo há muitos anos. Não é por acaso que meu filho é o diretor musical. Esse formato corrobora tudo isso. Tem uma coisa que nos envolve, que não é fidelidade. Fidelidade é coisa para cachorro. É uma lealdade sonora e estética que nos uniu durante todo esse tempo que evidenciou essa assinatura coletiva que é o meu trabalho.
A intolerância é uma vedete dos dias de hoje. As pessoas vão vivendo em seus avatares, e a intolerância acaba regendo tudo. Esse dualismo entre coxinhas e petralhas é um troço muito burro. Estamos perdendo muita coisa com isso. No meio dessa confusão, estão fazendo atrocidades com a causa indígena, por exemplo. Tudo isso dá uma desesperança enorme. Diante disso, como se pode ter alguma sanidade? Não sou um cara pessimista, mas não vejo possibilidade real de mudança a curto prazo.
LENINE
Músico
Leve e Suave é uma canção sobre afeto, mas há também um lado sombrio no disco. O título de uma das músicas é Intolerância. É uma canção sobre esses tempos de polarização política?
Não apenas Intolerância, mas outra canções também têm essa sincronicidade com o tempo cinzento em que vivemos. A intolerância é uma vedete dos dias de hoje, no meio da nuvem, no meio da rede. As pessoas vão vivendo em seus avatares, e a intolerância acaba regendo tudo. Esse dualismo entre coxinhas e petralhas é um troço muito burro. Estamos perdendo muita coisa com isso. No meio dessa confusão, estão fazendo atrocidades com a causa indígena, por exemplo. Essa dissimulação está enraizada em todos os setores da sociedade. Isso é uma praga, porque a pessoas dizem uma coisa e fazem outra no maior descaramento. Tudo isso dá uma desesperança enorme. Diante disso, como se pode ter alguma sanidade? Não sou um cara pessimista, mas não vejo possibilidade real de mudança a curto prazo.
Na época do impeachment de Dilma Rousseff, você chegou a se manifestar, por meio de uma postagem no Facebook, em apoio às eleições diretas . O que mudou de lá para cá?
A dissimulação continua. É de intolerância que estamos falando. Em vez de sublimar e relevar, é preciso sublinhar e revelar. Estamos falando sobre clareza, transparência, urgência em se ter honestidade. Daí a necessidade do afeto. Não vejo de outra maneira. Isso rege não apenas as canções inéditas do projeto Em Trânsito como todo, mas também as canções que pincei para compor junto ao projeto. Trata-se de um show com 20 e tantas canções. Mesmo as canções que fomos buscar no passado foram pensadas conforme a adequação que teriam, a adaptação que poderiam ter a esse contexto. Isso foi muito acertado, porque você pode perceber que uma canção que já tem 20 e tantos anos pode ainda carregar certo frescor.
Você é um artista identificado com a causa ecológica, muito presente em ações do projeto preservacionista Tamar, por exemplo. Nesse sentido, você se sente representado por algum grupo político ou possível candidato? Como vislumbra as eleições deste ano?
Estamos vivendo um momento esquisito. Sobraram poucos éticos que merecem a minha atenção. Há uma dissidência do PT, o Psol, mas com as mesmas pessoas. E há uma quase certeza de uma perpetuação familiar de nomes, tanto no Senado, quanto na Câmara e no Judiciário. Não vejo como isso pode mudar a curto prazo. Isso dá uma dor. Tenho simpatia por alguns nomes, mas todo mundo já conhece a quase totalidade deles. No sentido de renovação, que é de uma urgência tremenda, não vejo mobilização. Isso talvez seja a causa dessa desesperança que estamos reverberando nessa entrevista. Mas, de qualquer maneira, acredito no homem, e sei muito que dessas coisas de dar dois passos para a frente e três para trás; cinco para frente, quatro para trás. A humanidade é assim. O que estamos passando hoje vai significar algo daqui a 20 anos, com certeza, mas eu queria ver hoje, ou melhor, ontem, essa melhora, com a mesma urgência que estamos vendo outras mudanças.