Em meio às dificuldades de todo tipo que afetam a criação artística no Brasil, o grupo teatral gaúcho Ói Nóis Aqui Traveiz segue em atividade, ininterruptamente, há 40 anos. Nesse percurso, tornou-se um dos mais respeitados do país com seus espetáculos de inegável capricho estético e contundente crítica social. Seja com releituras de Shakespeare ou dos mitos gregos, as produções falam de temas do presente: justiça social, igualdade de oportunidades e respeito às diferenças. Um dos fundadores do Ói Nóis, Paulo Flores é considerado um mestre do teatro. Será o protagonista do próximo espetáculo do grupo, Meierhold, baseado na vida do teórico russo que viveu entre 1874 e 1941 e que foi perseguido pelo stalinismo. Nesta entrevista, ele lamenta que os 40 anos do Ói Nóis sejam celebrados em um momento de crise, mas reafirma o poder do teatro como laboratório para imaginar um futuro melhor – e resistir.
Quando o Ói Nóis Aqui Traveiz foi criado, em 1978, tinha uma atuação contundente, às vezes colocando o público em situação de desconforto. Hoje, sem deixar de lado a crítica, costuma conduzir os espectadores pela mão. Essa questão do afeto é uma necessidade em tempos de intolerância?
São momentos bem diferentes, mas não acredito que seja preciso ter todo esse cuidado com o público. O teatro que o Ói Nóis faz e com o qual se identifica propõe ao público exercitar a imaginação. Esse é o elemento mais político do teatro. Às vezes, pensamos que é o conteúdo, mas não. Heiner Müller (dramaturgo e diretor alemão, 1929-1995) falava que a importância do teatro contemporâneo é criar essa atmosfera entre ator e espectador, a atmosfera de laboratório para a imaginação social. Esse tem sido um dos motes para o desenvolvimento de nossa pesquisa enquanto criadores. O público tem papel fundamental em uma encenação. Essa ideia já estava no Meyerhold, personagem em que estamos trabalhando para a próxima encenação. Para ele, o público tem de participar da encenação, e esta não pode ser uma ideia fechada, pois é o espectador quem vai dar seu fechamento. É a ideia de obra aberta, que se desenvolve desde o século 20.
Essas considerações são importantes para entender o teatro como arte, e não apenas entretenimento.
Nesse sentido, o Ói Nóis provoca o público. Provoca-o a entrar em outra dimensão, diferenciada do nosso mundo contemporâneo, de relações líquidas, em que tudo é muito rápido. Um espetáculo do Ói Nóis é o momento de uma experiência em que o sentido mais intelectual só vai se dar posteriormente. Antes, o espectador tem de se abrir para esse momento dos sentidos. A nossa cenografia é um elemento de diálogo com o espectador. Essa é a ideia do teatro ritual. Vivemos um momento de distanciamento cada vez maior da comunicação direta. No mundo atual, de formas eletrônicas de vivência e comunicação, o teatro é o território no qual existe o encontro do ser humano com o ser humano, olho no olho, carne a carne. O teatro tem um espaço importante no futuro. É a única forma de comunicação que mantém isso vivo.
O teatro tem um espaço importante no futuro.
PAULO FLORES
Estamos em um momento de louvação do individualismo. O Ói Nóis, pelo contrário, tem o princípio da criação coletiva, em que todos participam do processo. Em que medida essa ideia pode ser útil para se repensar a sociedade como um todo?
Entre as ideias que nortearam o início do Ói Nóis, primeiro esteve o pensamento anarquista, com as noções de autonomia, autogestão e criação coletiva. Acho isso fundamental para organizar um novo tipo de sociedade. Somos um grupo teatral que se pretende uma tribo, com relações mais diretas de camaradagem, onde possa haver esse encontro do humano. Quando pensamos em uma tribo como alternativa, é para estreitar essas relações, homenageando essa forma de organização (a tribo indígena). Considero importante que a gente consiga manter esse pensamento, que está na raiz do grupo. É um teatro que tem compromisso com questões sociais, de cidadania, de como o ser humano vive. Isso é o que fez o Ói Nóis trilhar esse caminho, que é um caminho muito difícil dentro dos parâmetros de mercado.
Em 1978, no início do grupo, o Brasil ainda vivia sob ditadura militar – que deixou como legado uma crise econômica. Hoje o Brasil está novamente tentando sair de uma crise. Como se comparam essas realidades?
Quando o Ói Nóis surgiu, existia uma vitalidade grande daqueles jovens que formaram o grupo em combate contra a ditadura. Havia toda uma perspectiva de transformação social. O Ói Nóis acompanhou e fez parte das lutas que redemocratizaram o país, que trouxeram novos elementos para a discussão, como a preservação da natureza e a luta das minorias. Sempre pensamos que o país continuaria se democratizando com o passar dos anos. Agora, quando vemos o retrocesso atual, começamos uma luta para conter a onda conservadora e as ideias fascistas, em defesa da democracia. Nossa vivência, neste momento, é essa. Estamos vendo de novo coisas daquele momento sombrio, que são a censura, a perseguição e a prisão de artistas. Isso é assustador. O Meyerhold, que estou estudando, foi um genial ator e encenador processado, preso e fuzilado pelo sistema stalinista. Vivemos algo próximo a isso no Brasil atual.
Estamos vendo de novo coisas daquele momento sombrio, que são a censura, a perseguição e a prisão de artistas.
PAULO FLORES
Como assim?
Estudo o processo de Meyerhold e penso no processo do Lula. De que maneira se consegue legalmente criar uma acusação a uma pessoa para que ela possa ser eliminada da vida pública? Isso tem sido algo triste para mim, mas também revelador de como o sistema dominante consegue ter nas mãos todas as instâncias possíveis, todas as instituições a seu serviço. Sabemos que, historicamente, o sistema jurídico está a favor de uma elite financeira. Chega a ser ridículo que 1% da população detenha as riquezas do Brasil. Um país de milhões de pobres que vivem apenas para o trabalho, que não conseguem imaginar outra possibilidade de vida. Isso é quase escravidão, porque não há perspectiva. E aí tem a classe média, que é a tropa de choque, apoiando a elite.
Se em 1978 havia intensa movimentação social, hoje parece haver certo desânimo. A sociedade está menos mobilizada?
Acredito que ainda possa haver uma reversão. Nesse sentido, existe um otimismo da minha parte sobre este ano, que vai ser decisivo. Mas nem sabemos se vai haver eleição ou não. Se o candidato do sistema não estiver pronto para ganhar, talvez inventem uma forma de adiar a eleição. Espero que os defensores da democracia vão para a rua. É a única maneira de conter a onda desse pensamento fascista que está tomando conta do país. Quando vemos que Bolsonaro tem 15% nas pesquisas (19% sem Lula, segundo Datafolha), com ideias tiradas da matriz fascista de Mussolini (ditador da Itália entre 1922 e 1943), fica claro que se está num momento em que os trabalhadores têm de se mobilizar para ir às ruas. A atual onda conservadora não é só conservadora – é fascista. É apavorante que o fascismo está começando a tomar conta de diversas camadas da sociedade, inclusive algumas fatias das camadas populares.
Em meio à crise, o financiamento à cultura está secando, tanto das fontes privadas quanto das públicas. O que os artistas podem fazer?
Acredito que a cultura, pelo menos no Brasil, sempre viveu essa crise. A arte independente e autônoma sempre encontrou essas dificuldades. Durante os anos 2000, houve uma sensibilidade maior nas políticas do Ministério da Cultura. Projetos como os Pontos de Cultura avançaram um pouco na ideia de uma cultura mais participativa, que pudesse democratizar o acesso, descentralizar. Hoje, com o Ministério da Cultura desmantelado, tudo fica mais difícil. Todas as formas de inovação artística estão à deriva no país. No caso gaúcho, é triste porque não existe nada no Estado e no município. Não há uma política de fomento à cultura, de incentivo aos novos artistas, de formação de plateia, de circulação dos artistas. Espero que artistas continuem, porque esse é o momento de não desistir.
Hoje, com o Ministério da Cultura desmantelado, tudo fica mais difícil. Todas as formas de inovação artística estão à deriva no país.
PAULO FLORES
O que vai acontecer, no seu ponto de vista?
Tudo vai ser feito com orçamento menor. É do interesse desse sistema dominante que o teatro e as artes em geral percam força. Assim, vão ficando por aqui só os artistas inseridos na ótica do mercado. Quem está na contramão do sistema de produção capitalista vai desaparecendo. Certamente vão desaparecer muitos grupos de teatro nesse processo. Não há nenhum tipo de verba. E a atuação em conjunto é muito difícil, porque vivemos em um país de dimensão continental. Quanto sai uma passagem daqui ao Mato Grosso? Mesmo a comunicação virtual é difícil, porque, para se organizar, é preciso passar por ações físicas, presentes. Quando criamos o Movimento de Teatro de Grupo (Redemoinho – Movimento Brasileiro de Teatro de Grupo), nos anos 1990, os grupos se encontravam com todos os seus integrantes, apresentavam espetáculos, faziam-se debates, pensava-se o que a gente queria para o país. Foi uma época rica. Hoje, tanto em âmbito federal quanto estadual e municipal há a dissolução do pensamento crítico da arte, o que passa pelo extermínio dos grupos de teatro, porque eles têm uma força grande de reunir pessoas, se movimentar, fazer pensar e pulsar vários questionamentos sobre a sociedade. Mas alguns resistirão. Tomara que o Ói Nóis seja um deles.
Seria a hora de buscar alternativas?
Eu acredito. Em uma das piores crises do Ói Nóis, fizemos o (espetáculo de teatro de rua) Caliban – A Tempestade de Augusto Boal (2017) porque achamos importante ir para a rua falar da resistência. Caliban é um personagem escravizado, colonizado, mas que resiste. É isso: mesmo escravizados, precisamos resistir. O chamamento do Ói Nóis é esse. Temos de ir para as ruas, estar junto das ideias progressistas, com todas as pessoas que lutaram até hoje pela democracia. A juventude trouxe um exemplo forte de mobilização ao ocupar as escolas (em 2016). Existe uma possibilidade de resistência ainda, e o teatro deve estar presente.
Existe uma possibilidade de resistência ainda, e o teatro deve estar presente.
PAULO FLORES
Entre as causas abraçadas pelo Ói Nóis, está o feminismo. O aspecto feminino está até no nome da sede do grupo, a Terreira da Tribo. Hoje, o feminismo está ainda mais difundido do que estava no início do grupo. Qual a sua visão sobre esse crescimento?
O Ói Nóis levantou a questão ambiental, a defesa das minorias, lutamos sempre em prol do feminismo, contra o racismo. Todas as bandeiras das chamadas minorias sempre estiveram nas nossas intervenções cênicas, o que foi fundamental para a fortificação do grupo. Mas nunca perdemos de vista que essas questões fazem parte da luta de classes, que é o que tem mantido coerência no grupo.
Nestes 40 anos, você percebe o reconhecimento ao grupo e ao seu trabalho como um mestre do teatro?
Para mim, é importante que o Ói Nóis deixe um legado, porque incentivamos várias formas de criação artística. Consideramos que o teatro tem que estar comprometido com a mudança social, então sempre fizemos um teatro associado a movimentos populares. Isso se refletiu em encenações, em nosso movimento artístico-pedagógico e mesmo em participações em momentos de atuação política direta. Levamos o teatro para a rua como forma de contestação ou reflexão sobre questões que estavam acontecendo na cidade e no país. Esse legado é importante e vai continuar. Se vamos ter uma recepção maior ou não, vai depender muito de quem tem o poder, de quem gere essas instituições de recepção. Por exemplo, o Departamento de Arte Dramática da UFRGS vai assumir isso ou não (o estudo sobre o trabalho do Ói Nóis Aqui Traveiz)? Vai depender dos professores que estão ali. Todo o país está estudando o Ói Nóis. Como Porto Alegre não estuda? Esse teatro de contestação, que se coloca sobre as questões nacionais, terá apoio em algum lugar do mundo? Sabemos que em países que alcançaram uma democracia mais evoluída há grupos com uma visão crítica da sociedade que têm respaldo porque é de direito. Nosso teatro é de direito. Fazemos um teatro público e temos direito a verbas públicas porque chegamos à maior parte da população através do nosso ensino, da nossa ação artístico-pedagógica, das diversas oficinas feitas na Terreira e nos bairros populares, como o teatro de rua, que chega às praças e parques de Porto Alegre e do país, inclusive na zona rural. O Ói Nóis é um dos poucos grupos que se apresentam em assentamentos rurais.
Sabendo dessa proximidade do grupo com as camadas populares, como esse segmento da população brasileira está percebendo a realidade do país?
Tudo é muito difícil de falar nesse momento em que houve uma ruptura democrática no país. Observamos que, contrapondo-se ao extremo individualismo das classes médias, superiores e da elite, existe um espírito de solidariedade (nas comunidades pobres). Não é aquela ilusão do morro nos anos 1960. Existe realmente. O que vemos nas comunidades mais pobres? Estão dominadas por um tipo de estética que não foram elas que escolheram, mas que foi imposta pela mídia dominante. Por que tu gostas de determinada música e não de outra? Porque tu és bombardeado o dia inteiro com aquela música. Se nunca viste nada diferente, como vais gostar de outra coisa? O teatro sempre entra na contramão. Como o teatro é algo bem à parte, tem um caminho um pouco mais livre, porque traz outra forma de se expressar que é diferenciada daquela música que bate no ouvido todos os dias. É nesse sentido que o teatro é importante para a mudança da sociedade. Espero que a gente chegue em algum momento do país em que o governo pense que o teatro é fundamental para essa transformação de mentalidade, que a gente possa ver a outra pessoa como um igual. O teatro humaniza. Estamos vivendo um momento em que é cada um por si, salve-se quem puder. E, o que é pior, estamos vivendo um momento em que a classe média está forjando um ódio cada vez maior contra os pobres, que são a maior parte da população.
Você não tem celular, nem está nas redes sociais. esse estilo de vida é uma declaração de um outsider?
Claro que é uma declaração. Hoje, as pessoas aparentemente se comunicam muito e, ao mesmo tempo, não se comunicam nada. É um novo aspecto da nossa solidão individual. Essa coisa de as pessoas irem à rede social denunciar tal coisa... É claro que a denúncia é importante, mas às vezes, nas redes, dizem barbaridades. Umberto Eco falou sobre isso (o pensador italiano morto em 2016 declarou: "As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade"). Falo do teatro como uma força que se contrapõe a isso. Quando me perguntam se o teatro vai acabar, respondo que não. Vai ser o reduto do encontro do ser humano com o ser humano.
Quando me perguntam se o teatro vai acabar, respondo que não. Vai ser o reduto do encontro do ser humano com o ser humano.
PAULO FLORES
Você também é vegetariano, embora não faça ativismo sobre isso. Como essa ideia começou?
Viemos de uma cultura que determina todas as coisas que vamos ser até o fim da nossa vida. É uma luta grande romper com isso, romper com todos os parâmetros que aprendemos na família e na escola. Comecei a pensar nessa questão na minha adolescência. Chegou um momento em que concluí: “Tenho que parar de comer carne”. Se tu almejas uma sociedade melhor, nenhuma espécie pode se sobrepor a outra. Se queres uma sociedade mais igualitária, não podes te manter exercendo esse poder de te alimentares de outro ser vivo que é tão próximo de ti. Alguém pode rebater: “E a alface? E a beterraba?” (risos). São completamente diferentes, têm outro processo de evolução. Isso me levou a me tornar vegetariano (quem não come carne) e, depois, vegano (quem não consome nenhum produto de origem animal). É mais difícil ainda. Sou vegano há mais de 10 anos e vegetariano há quase 40. O Ói Nóis me levou a repensar todas as coisas da minha vida. Quando o grupo surgiu, queríamos que transformasse os outros e nos transformasse primeiro. Então, essa questão ética é importante para o Ói Nóis. Muitos atores entram no grupo e se transformam. Mas sem a obrigação. O Ói Nóis nunca pediu atestado ideológico para ninguém. Fomos um dos primeiros grupos que lançaram a campanha do lixo seco em Porto Alegre, no início dos anos 1990. Havia uma espécie de contêiner na frente da Terreira para o pessoal colocar o lixo seco. Fizemos encenações na frente dos supermercados para ensinar a separar o lixo. Os primeiros postos de lixo seco em Porto Alegre foram a Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural) e a Terreira da Tribo. Mas, em meio a todas essas questões, o Ói Nóis nunca esqueceu a luta de classes.