Presidente do Conselho de Administração da Livraria Cultura, Pedro Herz lançou recentemente seu livro de memórias O Livreiro, em que conta como uma das maiores redes de livrarias do Brasil nasceu de uma biblioteca de 10 livros em alemão. Eva Herz (1911-2001), mãe de Pedro, imigrante judia alemã radicada no Brasil, começou uma biblioteca circulante para atender à comunidade de expatriados em São Paulo e expandiu o negócio até abrir uma livraria em 1947. Herz, que assumiu a empresa na sequência da mãe, esteve em Porto Alegre para sessão de autógrafos conversou com ZH sobre o mercado atual, recentes aquisições da Cultura (como a Fnac e a Estante Virtual) e o que considera o grande problema de qualquer livraria no Brasil: o descompasso na formação de novos leitores.
Com mais de meio século de atuação como livreiro, como o senhor vê o panorama atual? Qual a principal mudança?
Acho que a mudança que existe hoje não é apenas no mercado do livro. O livro é um produto de varejo e é o varejo que está passando por grandes mudanças sem que o caminho seja muito claramente sinalizado. Ninguém sabe direito para onde vai. Quando você fala do varejo, esbarra também no modelo dos shopping centers, você vê a grande quantidade de lojas, de quaisquer produtos, vazias. Este é o problema: o consumidor está mudando de hábitos. Especificamente no livro, não há formação de novos leitores, e leitor se forma em casa. A familiarização do livro com a criança é em casa. A escola pode ajudar, mas é em casa que isso se define. E os casais estão tendo menos filhos.
Mas pela extensão e população, o Brasil não foi sempre um país de poucos leitores, proporcionalmente falando?
Sim, mas estamos em uma crise fantástica. Estamos indo cada ano pior na escola, e assim não estamos formando novos leitores. Há pesquisas recentes que mostram que não estamos indo bem. E isso faz com que o desenvolvimento do Brasil também fique para trás. Não é só na indústria do livro, é no saber como um todo, em todas as áreas, na medicina, no direito, na engenharia. Advogado que não sabe escrever, tá cheio.
Isso não se inseriria também em um fenômeno mais amplo, de que a proliferação do ambiente de rede virtual produziu leitores menos atentos?
Isso é mundial, sem dúvida. Uma grande dificuldade que vejo é que as pessoas não ouvem mais. Elas falam. E falar não é necessariamente a fala oral. Digitar é falar. As pessoas em um elevador todas estão em seus celulares, teclando com os dedões. No cinema, estão falando, em um concerto, estão falando e não estão ouvindo o que alguém disse. Em um texto, um artigo de jornal, uma revista, você “ouve” o que o autor escreveu e fica calado enquanto lê, para depois considerar aquilo bom ou ruim. E isso, de ficar calado, é a coisa mais difícil atualmente.
Qual o livro que o senhor está lendo agora?
Estou lendo a história da humanidade escrita pelo professor israelense Yuval Harari, Sapiens, foi publicado até pela editora daqui, a L&PM. É bem legal.
O senhor lê em e-reader?
Eu leio, mas prefiro o papel. Estou com um smartphone aqui comigo, mas para ler mesmo eu prefiro em papel. Mas eu fico feliz de ter a opção de, por exemplo, não precisar andar pra todo lado com um Grande Sertão Veredas, por exemplo, que é um livrão.
A que o senhor atribui a dificuldade dos e-readers de conquistarem mercado?
O aparelho não faz o leitor. Quem faz o leitor é a casa, mesmo que a criança não seja alfabetizada. O gesto dos pais pegando um livro contamina. Meus filhos pegavam os livros de ponta-cabeça quando ainda não eram alfabetizados. Eles não sabiam ler, mas estavam imitando o gesto que me viam fazer, o de ter o livro nas mãos. E hoje, adultos, são leitores.
Qual seria uma receita sua para fazer um leitor?
Eu digo: se você não ler, como quer fazer seu filho ler? Essa é a frase que deveríamos repetir para todos os pais. Se eles não dão o exemplo de ficarem confortavelmente sentados, em silêncio, porque ler é, na maioria das vezes, uma atividade solitária, se ele não consegue fazer isso, não vai convencer seus filhos de que aquilo é importante.
No livro de memórias O Livreiro, o senhor comenta que o modelo de livrarias megastores talvez não seja mais sustentável. E esse é um modelo que a Cultura ajudou a consolidar no Brasil. O senhor está reavaliando a própria estrutura de seu negócio?
Sim, todos os varejistas estamos. Eu não consigo mais viver apenas de livros. Eu tinha CDs, DVDs, alguma coisa a mais, temos café, teatros em algumas unidades. Agora, sustentar isso está cada vez mais difícil, porque o consumo foi para outro caminho. Como perdemos os CDs e os DVDs, estamos buscando outros produtos para pôr no lugar físico dessas lojas. Na parte eletrônica, vale a velha frase: “Se funciona, é obsoleto”. Então a substituição é brutal, e em uma rapidez e uma velocidade impressionantes.
Há pouco tempo, a rede Cultura adquiriu as lojas da Fnac no Brasil. A Cultura, embora trabalhe com eletrônicos, tem um perfil mais voltado ao de uma livraria tradicional, enquanto a Fnac vende até alguns eletrodomésticos. Com as duas na mesma rede, vai ocorrer alguma adequação de ambas? Vão ser mantidos ambos os perfis distintos?
É provável que vá se adequar, mas com um dinamismo fantástico de substituição.
Mas quem vai se adequar a quem? A Fnac à Cultura ou a Cultura à Fnac?
A Fnac vai mudar muito mais do que a Cultura, com certeza. Sabe, a coisa eletrônica evolui de uma forma tão rápida que é mais veloz do que o comportamento humano. Você quer comprar um modelo novo de telefone celular. Você vai pensar, discutir com a sua família, e quando você finalmente comprar e chegar com ele em casa, ele será velho. Com o livro, as coisas não acontecem nessa velocidade.
Os senhores passaram a cuidar da operação de e-commerce da CNOVA, que reúne Casas Bahia, Ponto Frio e Extra, lojas de varejo de produtos diversificados. O senhor quer fazer da Cultura uma Amazon brasileira?
Não totalmente, porque não quero vender vitamina para cavalo (risos). Mas ser a Amazon é uma boa meta, oxalá eu consiga, porque eles são muito bons, eficientes e inteligentes. E estão montados no dinheiro para fazer e inovar como quiserem.
Para livrarias como a Cultura, unidades muito grandes com um acervo gigante, isso significaria trabalhar então com lojas menores?
Não necessariamente. Elas podem até aumentar, para diversificar mais os produtos. Mas ali você vai ver, decidir o que vai comprar e depois vai buscar o melhor preço.
O senhor também comprou a Estante Virtual, um agregador de sebos. Por que um dos maiores vendedores de livros novos decidiu lidar com livros usados?
Porque eu acho que livro novo é aquele que você não leu. Se você se interessa por um título que está esgotado no mercado, o caminho é esse. E é uma plataforma digital absolutamente fantástica. Extremamente útil e boa em que você consegue ter acesso a coisas que não consegue comprar em canto nenhum porque não são editadas mais. Particularmente, fico muito feliz de termos feito esse negócio. Não gosto muito da palavra “sebo”, eu prefiro “antiquário”, “raro”, mas “sebo”, coisa ensebada? Não sei a origem da palavra, mas eu não gosto. Só que é a palavra que se usa e eu não vou mudar.
Há alguns anos, em uma entrevista, o senhor comentava que a maioria das editoras do Brasil estava em um grau baixo de profissionalização e que não sabia trabalhar com o produto livro. O senhor acha que isso mudou?
Algumas sim, outras não. Por uma questão até de recursos de investimento. Hoje a gente tem e trabalha bastante com Business Inteligence, inteligência artificial que me permite saber o que as pessoas olham e procuram. Isso pode me dar pistas para uma série de coisas. Essa é uma metodologia usada pelo varejo em larga escala. Te traz um monte de informações. Em um supermercado, por exemplo, determinados produtos estão em um lugar porque se sabe que é o melhor lugar para posicioná-los. Hoje eu sei o que você está vendo quando entra no nosso site.
Como fica a privacidade do consumidor?
Mas a privacidade hoje já não existe no ambiente digital. Eu sei que você olhou um livro de plantas. Aí posso chegar e fazer a oferta de um regador para você, um vaso. Isso é uma abordagem inteligente. Agora, quanto à privacidade, basta ter um celular no bolso e alguém em algum lugar está monitorando.
Como o senhor vê a atual onda dos Youtubers literários? Há poucas semanas, a Youtuber Jout Jout leu um livro infantil inteiro da Companhia em seu canal e ele se tornou fenômeno de vendas.
São fenômenos momentâneos de consumo.
Eles não seriam hoje novos formadores de opinião?
Podem ser, mas voláteis.
Qual sua posição sobre a recente campanha do preço único nas capas de livros?
O preço de publicações no mundo é fixo. Se você comprar um jornal, tem o preço impresso. Se comprar uma revista, tem o preço impresso. Se comprar livros lá fora, eles vêm com o preço impresso. É o uso e o costume. No Brasil, nunca se teve isso além de revistas e jornais por causa da inflação. Mas se você for no Exterior, tem o preço na orelha, impresso, sugerido, e sempre que você tem alguma ação, reduz esse preço.
Eu, particularmente, achei que o senhor teria uma opinião diferente nessa questão do preço fixo, porque suas livrarias são das que têm condições de negociar variações e descontos mais substanciais.
É que há coisas que estão acontecendo, principalmente no e-commerce. A Amazon, por exemplo, não liga nem um pouco para dar lucro. Ela inventa coisas novas que fazem a ação subir, mas os acionistas não ganham dinheiro. Se você é possuidor de “xis” ações, você não tem todo ano distribuição de lucro. O que está acontecendo no comércio eletrônico de modo geral são empresas muito grandes que não estão muito preocupadas com esse resultado. Então compram o livro por R$ 10 e vendem por R$ 3. E é mais barato eu comprar desse fornecedor do que da editora, porque eu não tenho essa margem e vivo do resultado do meu negócio.
No seu livro, o senhor comenta que gosta de fazer compras em estabelecimentos menores e mais aconchegantes. Essas movimentações de mercado na verdade não significam um risco à própria existência das pequenas livrarias?
Elas estão renascendo nos EUA. Chamam de “independent bookstores”, que não são de grandes cadeias. Isso está crescendo por lá.
Sim, isso a gente chamava de "livrarias de calçada". Mas no Brasil a realidade é de pequenas livrarias fechando.
Vai chegar aqui no Brasil. As pessoas gostam de conversar com alguém, de ser bem atendidas por alguém que entenda aquilo que você está falando. Porque às vezes o cara vem para você procurando um livro de que ele ouviu falar, não sabe direito o título, mas acha que a capa é vermelha. E, no fim, é azul. Isso acontece muito. Então esse interlocutor é parte do atendimento humano. As pessoas vão querer continuar sendo bem-atendidas em qualquer estabelecimento, seja a livraria, seja um restaurante.
Há algum livro que o senhor se recusaria ou já se recusou a vender?
Sim, claro. Livros que pregam o racismo. Eu me recuso a vender livros que pregam qualquer forma de discriminação política ou religiosa. Eu sou judeu. Se alguém vem me dizer em um livro que o Holocausto não existiu, eu não quero vender esse livro. Não sou obrigado. Compro aquilo que quero vender. E não adianta reclamar. Tem gente que me pergunta por que eu não vendo o livro do Hitler (Mein Kampf, que entrou em domínio público em 2016 e ganhou edições em vários idiomas). Não vendo porque não quero. Hitler expulsou meus pais da terra deles. E nós tínhamos um presidente da República, Getúlio Vargas, que era amigo dele, não estou falando nada de novo aqui. Meus pais não conseguiram desembarcar no Brasil quando fugiram da Alemanha porque o governo do Getúlio não permitiu. Não quero participar disso. Aliás, acho que o lugar mais democrático do mundo é uma estante de livraria ou biblioteca, onde posições antagônicas convivem pacificamente uma ao lado da outra.
Mesmo assim, há coisas que o senhor não põe na estante. Há coisas das quais a democracia precisa ser defendida?
Com certeza, porque aí é um debate do qual eu não quero participar. Eu respeito minha opinião e vou atrás dela. Não há lei que me obrigue. E não adianta reclamar. Até porque as pessoas se tornam muito agressivas. Eu vi o início da internet, estou na internet desde 1994. As pessoas iam ao site da livraria lá no início e escreviam "Cheiquespir". Aí aparecia um pop up de "autor não cadastrado". E o valentão que havia escrito Shakespeare com quatro "X", três cedilhas e 19 "S" respondia: "Mas que merda de livraria". Isso eu vi, era assim. Além disso, também não sei se o João que está escrevendo é João e se a Maria é Maria. O anonimato que a internet proporcionou é a origem das fake news.
As memórias de Herz
O Livreiro (Editora Planeta, 240 páginas, R$ 56,90) costura um relato biográfico com a evolução da Livraria Cultura até se tornar uma das maiores redes do Brasil.