Há algo de enigmático nos palhaços de Matéi Visniec: nunca conseguimos apreender realmente quem são, o que querem e qual o seu lugar no mundo. Há quem veja no patético duelo desses três clowns por uma vaga de emprego – que nem sabem qual é – uma crítica ácida à condição do artista na sociedade, mas em nenhum momento eles fazem qualquer esforço para despertar nossa comiseração. Muito pelo contrário, estão sempre tentando vender uma imagem melhor do que aquela que escondem suas tristes carreiras. O que há de verdadeiro em Nicollo, Filippo e Peppino é sua involuntária vocação para nos fazer rir. Um riso melancólico, é verdade, mas sem sombra de dúvida autêntico.
O espetáculo Pequeno Trabalho para Velhos Palhaços, que estreou no Porto Verão Alegre e tem nova sessão nesta terça (27/3) no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, é uma homenagem meio gauche ao ofício da criação. Por sua atualidade, o texto de Visniec foi encenado diversas vezes no Brasil e no mundo. A versão que inspirou a montagem gaúcha da diretora Adriane Mottola foi a de André Paes Leme, a primeira no país, exibida no Porto Alegre Em Cena no ano 2000. Escrita em 1986, a peça aborda diferentes temas ao mesmo tempo: é sobre arte, mas também sobre amizade, sinceridade, mercado de trabalho e, por último, solidão. O soturno desfecho que acomete essas pobres almas (não revelarei aqui) nos lembra que esses não são clowns usuais. Eles nos provocam aquele estranhamento familiar de que falava Freud. Por meio desses espelhos distorcidos, constatamos com mais clareza algo sobre a sociedade em que vivemos.
Assistir a esta montagem é como ver saltar verbetes de um dicionário da história do teatro no Rio Grande do Sul – não como documentação empoeirada, e sim como testemunho vivo de artistas à altura dos desafios do presente. Arlete Cunha (como Nicollo), Sandra Dani (Filippo) e Zé Adão Barbosa (Peppino) oferecem ao público o que se espera deles: um raro encontro de três dos mais experientes atores da cena gaúcha, orientados por uma diretora idem. É um privilégio vê-los juntos, pois, como o título antecipa, a peça é também sobre a passagem do tempo na vida do artista. Um pouco da magia se perderia ao desconsiderar essa questão metateatral.
Arlete tem uma consistente trajetória pelo teatro de pesquisa, tendo atuado em grupos fundamentais como Ói Nóis Aqui Traveiz e Depósito de Teatro. Em trabalhos próprios, dedica-se à tarefa de levar à cena a obra de Hilda Hilst, autora de quem é uma espécie de devota laica. Sandra ajudou a moldar o teatro gaúcho moderno, dos clássicos aos contemporâneos. Quem perdeu sua Winnie de Oh, os Belos Dias (2013), de Beckett, dirigida por Rubens Rusche, não pode jamais se perdoar. Zé Adão é provavelmente o mais popular professor de teatro de Porto Alegre fora da Academia, responsável pela formação de gerações de profissionais. Adriane, por sua vez, comanda a indefectível Stravaganza, companhia de longa trajetória que comemora 30 anos em 2018 e que assina esta produção.
Eles captam com potência estética as referências que o dramaturgo romeno naturalizado francês distribui como se fossem piscadelas para os espectadores. Os palhaços reclamam da falta de ar no ambiente, que é claustrofóbico como o de Entre Quatro Paredes, de Sartre. O recrutador que nunca aparece para chamá-los para a entrevista de emprego remete, claro, a Esperando Godot, mas, ao contrário dos personagens de Beckett, os palhaços de Visniec não exibem qualquer curiosidade sobre o interlocutor aguardado. A preocupação declarada é com o tipo de trabalho que será oferecido (será que é de tratador?, temem eles) e a não declarada é com o tamanho da indignidade que estariam dispostos a suportar em troca do vil metal. “Eles têm que pagar o transporte!”, brada Niccolo a certa altura. A montagem inclui uma canção inédita de Álvaro RosaCosta e Leandro Maia que estabelece uma ponte com o contexto socioeconômico brasileiro de hoje, uma engajada descontração em meio ao drama dos velhos palhaços.
Se é verdade que nunca acreditamos nas palavras desses personagens quando se gabam das glórias do passado, é inegável que nos divertimos com suas demonstrações de virtuosismo artístico, mesmo que às vezes meio picaretas: a mágica de Filippo, a declamação de Peppino, a pantomima de Nicollo. É na hora do show que eles se desvelam para o público em sua inteira fragilidade, e é impossível não se comover com essa entrega que é humana, demasiado humana. O clown é aquele que compreende a dimensão trágica da existência.
PEQUENO TRABALHO PARA VELHOS PALHAÇOS
Nesta terça-feira (27/3), às 21h.
Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/n°), fone (51) 3227-5100, em Porto Alegre.
Ingressos: R$ 20 (galerias), R$ 30 (camarote lateral) e R$ 40 (plateia, cadeira extra e camarote central). Desconto de 50% para idosos, classe artística, estudantes, jovens de baixa renda e pessoas com deficiência. À venda na bilheteria do teatro hoje, das 13h até o início da sessão (sem taxa) e pelo site bit.ly/ptvp-poa (com taxa).