Três velhos palhaços se reencontram, depois de muito tempo, na sala de espera de uma entrevista de emprego. Com esse enredo que parece início de piada, o dramaturgo Matéi Visniec escreveu, em 1986, Um Trabalhinho para Velhos Palhaços, peça que já recebeu diferentes montagens no Brasil. Cada vez mais conhecido no país desde que a editora É Realizações começou a publicar, em 2012, sua obra completa em português, o autor romeno naturalizado francês é celebrado pela espirituosidade com que relê a tradição. Fazendo referência a Esperando Godot, de Beckett, e a Entre Quatro Paredes, de Sartre, Visniec imaginou três palhaços – Nicollo, Filippo e Peppino – aguardando, em uma sala claustrofóbica, um recrutador que nunca aparece.
Recordando de um passado glorioso que o público tem motivo para desconfiar que nunca existiu, cada velho palhaço recorre aos mais baixos estratagemas para dissuadir os demais de concorrer à vaga. Metáfora das agruras da vida de artista, da feira de vaidades que se passa nos bastidores dos holofotes e da competição no mercado de trabalho, o espetáculo é sobre clowns, mas nem sempre é divertido. Está mais próximo de provocar um sorriso amarelo.
Encantada com a primeira montagem do texto no Brasil, de André Paes Leme, exibida no Porto Alegre Em Cena no ano 2000, a diretora Adriane Mottola encontrou na peça matéria-prima para reunir um elenco de estrelas da cena gaúcha: Arlete Cunha (como Nicollo), Sandra Dani (Filippo) e Zé Adão Barbosa (Peppino). Com o título Pequeno Trabalho para Velhos Palhaços, o espetáculo estreia na sexta (5), no Theatro São Pedro, na abertura do Porto Verão Alegre, festival que é correalizador do trabalho.
Ouça entrevista com Sandra Dani:
No intervalo de um ensaio no estúdio da Cia. Stravaganza, que completa 30 anos em 2018, os artistas falaram à reportagem de GaúchaZH sobre o antigo desejo de trabalhar juntos. Afinal, Adriane, 63 anos; Arlete, 57; Sandra, 70; e Zé Adão, 60, somam algumas das maiores glórias dos palcos do Estado. No final de julho último, eles tiveram a oportunidade de informar ao próprio Visniec sobre a montagem por ocasião de sua palestra no Festival de Inverno de Porto Alegre – e ainda descolaram uma foto com o dramaturgo. Adriane considera Pequeno Trabalho Para Velhos Palhaços "quase um clássico":
– É uma peça que já teve várias montagens (a mais recente no Brasil estreou em 2016, em São Paulo, com direção de José Roberto Jardim, sob o título Adeus, Palhaços Mortos). Tomamos a liberdade de transformar o texto em imagem, ação, em um teatro mais físico de vez em quando, e de colocar música.
Canção exclusiva foi composta para a peça
Responsável pela trilha sonora, Álvaro RosaCosta compôs uma canção em parceria com Leandro Maia especialmente para ser apresentada em cena, à moda de Brecht. Canção para Velhos Palhaços denuncia a situação dos artistas e os descaminhos da atualidade brasileira ("Escarram mil perdões na nossa cara / E depois me pedem pra sorrir"). Dos três atores do elenco, apenas Arlete já havia desenvolvido trabalho de clown. Por isso, a produção contou com a "assessoria clownesca" de Jéferson Rachewsky. Para adaptar um número de mágica exigido pelo texto no segundo ato, Eric Chartiot prestou consultoria em ilusionismo – mais do que isso o repórter não deve revelar para não estragar a surpresa. Embora se encontrem na mesma situação de penúria, os três palhaços da história guardam diferentes personalidades, o que não os impede de perder igualmente a compostura se a circunstância assim o exigir, como nota Arlete:
– A relação que eles estabelecem entre si é ingênua, mas também sacana. O cômico, para eles, é debochar do outro. Isso foi desafiador para nós, como atores. Nos tira de uma zona de conforto.
Para Zé Adão, a decadência e o fracasso são os dois elementos mais fortes na personalidade dos três velhos palhaços:
– São fantasmas que assombram qualquer artista. A decadência pode vir devido a um único trabalho. Em alguns países, a crítica destrói uma carreira. O que mais me emociona é que esses personagens vivem do passado.
Seria improvável que a entrevista com o elenco não abordasse, em algum momento, a própria condição do artista hoje. Sandra avalia que o grande desafio para um "velho ator" é manter sua arte atual:
– Sempre tive essa preocupação. Nunca havia trabalhado com a linguagem que estamos empregando, mas adorei a ideia. É uma experiência nova. Tem algo de cruel na nossa profissão: valemos pelo nosso mais recente trabalho. É uma espada sempre sobre as nossas cabeças.
É consenso entre os atores da produção que, apesar dos absurdos que o dramaturgo reserva para a peça, o retrato das dificuldades dos artistas não está assim tão longe da realidade. Mas poucas profissões têm esse privilégio de caçoar do destino como forma de resistência.
Canção para Velhos Palhaços
(Álvaro RosaCosta/Leandro Maia)
Escarram mil perdões na nossa cara
E depois me pedem pra sorrir
Preparam a cortina de fumaça
Em nome do Senhor vão extorquir
Promessas de um verão abençoado
Da China vil tecidos de organdi
Memórias de uma morte anunciada
Ração protocolar em Boudeville
Estranhos tempos... Ninguém diria...
Que essas piadas virariam profecia
Então tiraram Cristo pra soldado
Envolto na bandeira do país
Pior ofensa é alguém pelado
Enquanto vendem tudo em Wall Street
Disseram então que era necessário
Bater bem na panela com Bombril
Tiraram a velha farda do armário
A Bíblia, o cassetete e o fuzil
E o melhor palhaço tá calado
E o bom bandido já tomou Doril
A negra, o pobre, a bicha e favelados
Foram deportados de navio
Num país de gente boa e séria
Baixa-se a cabeça sem dar pio
E obedece quem tem bom juízo
E manda quem souber ser arredio
O ódio já se compra destilado
O preço bem cotado no barril