Descrença na democracia, populismo, mudança climática, notícias falsas e, no Brasil, crise de representação política reforçada pela mobilização dos caminhoneiros. Tudo acena para uma certa percepção de fim dos tempos ou pelo menos fim de uma era. Vale ainda a célebre formulação de Gramsci: "A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo, e o novo ainda não pode nascer".
Sabia-se, só de olhar a programação, que o 13º Festival Palco Giratório Sesc/POA, encerrado no sábado (26), traria a Porto Alegre espetáculos de alta voltagem política, ressonância da realidade na cena, mas foi apenas nos últimos dias, já sob a ameaça de desabastecimento no país, que se observou com mais clareza um recorte mais específico: a ideia de extinção que perpassou alguns trabalhos. É como se a necessidade de se repensar como sociedade não pudesse ser dissociada da própria condição de sobrevivência sobre a Terra, constatação de que as (desastradas) decisões políticas afetam, mais do que nunca, o futuro da espécie humana.
É por isso que a Cia. dos Atores (RJ) celebrou seus 30 anos no festival com uma fábula política escrita por Jô Bilac que tomou como ponto de partida a extinção das abelhas – que poderia provocar o nosso próprio fim. Dirigida por Rodrigo Portella, Insetos trouxe à Capital, com senso de humor, cenas da vida em comunidade de pequenos seres nas quais era possível reconhecer comportamentos demasiado humanos.
Dinamarca, o Hamlet desconstruído do Grupo Magiluth (PE), contou com uma cena do ator Giordano Castro em que o discurso do espectro do pai se transforma antropofagicamente em um solilóquio sobre a teimosia do ser humano em perpetuar as iniquidades impostas pelo poder mesmo depois que a civilização renasce das cinzas. Com uma proposta iconoclasta, Dinamarca impactou e foi uma das boas atrações do Palco Giratório.
Também os dois espetáculos Tremor, do projeto Transit, parceria do Instituto Goethe com o Sesc, abordaram a necessidade de repensar a sociedade como condição de sobrevivência, sugerindo o perdão como chave para atingir esse objetivo. Respondendo diferentemente aos desafios do texto babélico da jovem dramaturga alemã Maria Milisavljevic, que esteve presente em Porto Alegre, a diretora Patrícia Fagundes conseguiu se apropriar criativamente da matéria-prima em uma montagem baseada nas relações de afeto, corporificadas pelos intérpretes da Cia. Rústica (entre eles, a diretora), enquanto Lucca Simas, estreando na direção profissional, sublinhou na montagem do Grupojogo a onipresença da tecnologia nas relações humanas, em um trabalho que indica uma estética em desenvolvimento.
Política apareceu sob diversas formas
Para além do tema da extinção, a 13ª edição do festival foi política de múltiplas formas. Embora alguém possa argumentar que todo teatro é político, essa característica se materializou na cena brasileira com ênfase desde junho de 2013. Mas foi o impeachment, ocorrido três anos depois, que se configurou como referência constante no palco, seja como inspiração direta para a criação, seja em manifestações dos artistas ao final das sessões.
Peça sempre atual, Hamlet ganhou uma âncora no presente com montagens sobre a usurpação de poder, a exemplo da já citada versão do Magiluth e do Hamlet da Armazém Cia. de Teatro (RJ), com Patrícia Selonk no papel-título. As sessões em Porto Alegre contaram com uma admirável participação de última hora da atriz Fernanda Petit como Gertrudes, substituindo uma atriz que não pôde vir. Foi muito aplaudida pelos espectadores que conhecem seu trabalho na cena teatral gaúcha.
Uma longa lista de espetáculos do Palco Giratório foi política ao tocar a questão da representatividade, abordando a realidade de coletividades à margem da norma e interrogando as violências e desigualdades crônicas de um Brasil (um mundo?) que parece ter parado no tempo ou até regredido. Quarto 19 adaptou um conto de Doris Lessing, protagonizado pela atriz Amanda Lyra, sobre uma mulher que sofre com uma configuração familiar sufocante; Farinha com Açúcar revelou ao público gaúcho o talento de Jé Oliveira e do Coletivo Negro (SP) em uma peça-show que recria as músicas dos Racionais como acontecimento cênico; Eles Não Usam Tênis Naique encenou as aspirações e dilemas de jovens da Maré pela Cia. Marginal (RJ); Tom na Fazenda mostrou outro trabalho do diretor Rodrigo Portella (RJ) com uma denúncia à intolerância ao amor homoerótico, o que o aproxima de O Jornal – The Rolling Stone, codireção de Kiko Mascarenhas e Lázaro Ramos ambientada em Uganda, também sobre perseguição a um amor proibido entre homens.
São apenas algumas leituras possíveis, baseadas nos espetáculos a que assisti, apontando para um cenário vibrante que não apenas reflete sobre um mundo em transformação, como pretende nele intervir. Que estes artistas tenham escolhido a cena como meio de troca é uma honra a todos os espectadores, também eles, de certa forma, sobreviventes.