Testemunha de muitos momentos decisivos do país, o diplomata, embaixador e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, 81 anos, relata bastidores do poder no livro A Diplomacia na Construção do Brasil: 1750-2016 (Versal Editores, 784 páginas, R$ 80, em média). Ele estava em Brasília na queda de João Goulart, era assessor de Tancredo Neves na redemocratização, amigo de Ulysses Guimarães na Constituinte e o "sacerdote do Plano Real", como chegou a ser chamado pelo então presidente Itamar Franco.
Tal exposição, acabou lhe valendo um dos primeiros escândalos de vazamento de informação em rede nacional. No que ficou conhecido como "escândalo da parabólica", em 1º de setembro de 1994, Ricupero, então ministro da Fazenda, preparava-se para dar uma entrevista ao vivo ao jornalista da TV Globo Carlos Monforte, seu cunhado. Fora do ar, afirmou: "Eu não tenho escrúpulos; o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde". A frase lhe valeu o cargo. Nunca mais se candidatou a cargo público.
Mas seguiu carreira no Exterior: foi secretário-geral da Unctad (1995-2004), embaixador na Missão Permanente do Brasil junto às Nações Unidas em Genebra (1987-1991), embaixador em Washington (1991-1993) e em Roma (1995). É autor de inúmeros livros e artigos no campo das Relações Internacionais e atuou, também, na docência. Em maio, ministrou a aula inaugural do curso de Relações Internacionais da Unisinos, em Porto Alegre. Antes conversou com GaúchaZH:
Acho perigoso que o Judiciário se desmoralize, como está acontecendo. Aí, a tentação é que seu papel caiba às Forças Armadas. Quando o poder legítimo que nasce do povo, o poder civil, delega aos militares as suas atribuições, está se confessando incapaz. Isso é gravíssimo.
RUBENS RICUPERO
Seu livro contempla um período histórico longo: de 1750 a 2016. É possível ver simetrias nesse tempo todo?
Tomei como ponto de partida o Tratado de Madri, que deu ao Brasil mais ou menos o perfil territorial que ele tem hoje. Mas meu livro dá ênfase maior aos tempos atuais, do fim da II Guerra Mundial até hoje. Procurei mostrar que a política externa teve papel fundamental em fazer o Brasil o que ele é hoje. A começar pelo território, porque, sem a diplomacia, teríamos menos de um terço do tamanho atual. O Rio Grande do Sul, por exemplo, faria parte do Uruguai ou da Argentina. O Brasil não seria o campeão do agronegócio, porque, dos 10 municípios de maior produção de soja, oito estão no Mato Grosso, que estaria fora das fronteiras brasileiras. O Brasil não seria membro dos Brics, porque não teria tamanho suficiente para isso. O papel da diplomacia foi fundamental também no reconhecimento da independência, na abertura dos portos e, aqui, no Sul, nas questões de consolidação do território em relação às ameaças do Prata. O Tratado de Madri era, como dizem os hispânicos, uma permuta: trocou a Colônia do Sacramento pelas missões do Alto Uruguai. Tratava-se de viabilizar o Rio Grande do Sul, que teve atuação central na diplomacia brasileira.
A diplomacia ajudou a construir a identidade nacional?
Exato. Toda diplomacia parte de um projeto de país. Como De Gaulle dizia: "Para mim, a ideia da França é inseparável da grandeza". O Brasil tem como inseparável da sua ideia de país o fato de estar em paz com todos os vizinhos. Temos 10 vizinhos. Só China e Rússia têm mais. Esses têm tradição de conflitos constantes. Somos um povo que se imagina pacífico. Não somos potência nuclear, nem militar, nossa capacidade mais é de defesa do que de projeção do poder. A ideia que temos é de que o Brasil está satisfeito com seu status territorial, não tem pendências, reivindicações, busca resolver os problemas pelo "poder suave", a negociação, e não o uso da força. Isso tudo são valores que vêm da diplomacia e se incorporaram à ideia que temos de nós mesmos. Pode ser até uma construção ideológica, mas é melhor assim do que se achar superior e ocupar outros países, ou, como imaginam-se os americanos, que têm convicção de que vivem no melhor país do mundo.
Esses princípios da diplomacia brasileira, da não ingerência e do respeito, não são inadequados em momentos de necessidade de ser um jogador mais ativo no cenário internacional?
Não. Autodeterminação, e não ingerência, são princípios de sabedoria válidos em todos os tempos. Exemplo disso são as intervenções americanas no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, agora na Síria. Por melhores que sejam as intenções – de ajudar esses povos a derrubar governos tirânicos –, o resultado final costuma ser pior do que se queria corrigir. Os americanos consideram que a maior ameaça no Oriente Médio é o poder do Irã, que se tornou potência regional, só que eles não dizem que isso se deve em grande parte à invasão do Iraque. O contrapeso ao Irã xiita era o Saddam Hussein, um sunita. Com a derrubada de Saddam, criou-se um vácuo, subiram ao poder no Iraque os xiitas, ligados ao Irã. O Irã passou a ter um predomínio no Iraque, na Síria, graças à guerra civil, no Iêmen, e, no Líbano, por causa do Hezbollah. O Estado Islâmico era formado por quadros do exército e da polícia de Saddam que foram dissolvidos pelos americanos e postos na prisão de Abu Ghraib, onde se radicalizaram. Antes, com Saddam, o Iraque tinha muitos problemas, mas não tinha o terrorismo e nem a influência do islamismo radical, porque Saddam era chefe de um governo laico, que não se deixava contaminar pela religião.
No Brasil, durante as presidências do PT, houve tentativas de aumentar a relevância do país no cenário internacional. Por outro lado, há críticas sobre a partidarização da diplomacia. Que avaliação o senhor faz desse período?
Houve muita coisa interessante. Não sou crítico da política externa do Lula e do Celso Amorim. Acho que houve coisas muito inteligentes, como a busca de um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU.
O senhor já foi filiado a algum partido político?
Nunca. Penso que o diplomata, como militar, tem de ter certa reserva, moderação. Não que deixe de ser cidadão e de ter suas próprias opiniões, mas, como o militar, o diplomata representa o Estado. O Raymond Aron, grande filósofo francês, diz que o soldado e o diplomata são duas faces da mesma moeda, porque representam o Estado. E não um governo. O Barão do Rio Branco: várias vezes quiseram fazer dele presidente. Ele nunca aceitou. Dizia que, se fosse eleito, dividira, não teria mais o consenso que buscava na política externa. A política externa deve representar a continuidade do Estado, deve ter o apoio. Muita gente pensa que fui do PSDB, mas não tem nada a ver. Fui membro do governo Itamar. Não fui do governo FHC. Se alguma vez cheguei a ter posição pública foi em meio ambiente, porque fui ministro da área. Tomei partido no debate sobre o código florestal, mas pela causa, o meio ambiente, e não por um partido.
Quando você compara (o episódio “Não tenho escrúpulos”) ao que tem sido gravado desses políticos (investigados na Lava-Jato), o que eu disse é uma coisa de jardim da infância. Porque essas pessoas são criminosas. discutem como roubar o fisco.
RUBENS RICUPERO
No seu entendimento, há protagonismo demasiado do Judiciário?
O Judiciário deve ser o árbitro. O que é o juiz, em última instância? É aquele que, quando há um conflito entre dois particulares sobre um contrato, deve ouvir ambos e arbitrar. No plano político, o mais alto nível é o Supremo Tribunal Federal (STF). Quando os membros do STF começam a ceder a paixões partidárias, e mesmo que não digam explicitamente, agem e votam em função de preferências partidárias, ou fazem declarações, eles se inviabilizam como árbitros. Caso se esgote esse papel, quem vai desempenhá-lo? Na tradição brasileira, são as Forças Armadas. Acho perigoso que o Judiciário se desmoralize, se inviabilize, como está acontecendo, com maiorias tênues de 6 votos a 5, com mudanças constantes que criam enormes inseguranças jurídicas. Está se criando uma situação em que o papel do Judiciário de arbitrar segundo a Constituição está se tornando inviável. Aí, a tentação é que esse papel caiba às Forças Armadas. É muito perigoso que o poder civil recorra constantemente às Forças Armadas para garantir a lei e a ordem nas ruas. Porque o apanágio irredutível do poder é ter o monopólio dos meios de coação. O que permite ao poder impor a uma sociedade a lei e a ordem é que o único que pode ter arma e exercer a repressão, legalmente, é o poder legítimo que nasce do povo, portanto, poder civil, resultado de eleições. Quando esse poder civil delega aos militares as suas atribuições, está renunciando a um atributo essencial e irredutível seu. Está se confessando incapaz de manter a lei e a ordem. Isso é gravíssimo. Acho que o poder civil teria todas as condições para equacionar o problema de segurança. Simplesmente chamar os militares é uma solução aparentemente fácil, mas que não é bom nem para os militares. Porque não é função deles. A função deles é a de ser excelentes profissionais na defesa do país, não policiais.
Como o senhor avalia a polarização que vivemos a poucos meses da eleição?
Vivemos a agonia de um ciclo da história. Esse ciclo se iniciou quando os militares se afastaram do poder, no final do governo João Figueiredo, entre 1983 e 1985, e aí nasceram as atuais grandes lideranças, Lula no Sindicato dos Metalúrgicos, Fernando Henrique voltando do exílio. Tudo o que aconteceu ali está morrendo agora. As lideranças ou estão envelhecendo ou, devido às complicações da Lava-Jato, têm problemas judiciários. Tanto o PT quanto o PSDB se debatem com esse desgaste do sistema que nasceu há 33 anos. É um sistema que se baseou em um mecanismo de transferência de dinheiro da economia para os partidos e, muitas vezes, para o bolso dos políticos. Esse mecanismo foi crescendo e chegou a um ponto tal que inviabilizou a continuação até do crescimento econômico. Esse sistema age como metástase cancerosa, por multiplicação de células. Prova disso é o número de partidos: começamos com dois, depois cinco ou seis, hoje são 35, 36. Quanto mais partidos, mais se gasta. Mesmo essa solução do fundo partidário é temporária porque, se continuar o aumento dos partidos, em algum dia vai ter de se usar quase todos os recursos do governo para o fundo partidário. Esse sistema está falido.
Como superá-lo?
O sistema tem de se autorreformar, com voto distrital misto, cláusula de barreira efetiva, e não essa mínima que temos aí, proibição de coligações em eleições para deputado, limitação do tempo e de gastos de campanha, sem marquetagem e programas caros de TV, redução da campanha à discussão de ideias. Ou o sistema faz isso, ou se inviabiliza. Não que vá ser derrubado. Vai chegar a um ponto, como não se consegue fazer as reformas, que não se vai ter mais dinheiro para pagar as coisas – o que aconteceu no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. Vejo as eleições de 2018 com sentimento misto: de um lado esperança, porque uma eleição permite renovação e dá sentimento de legitimidade; por outro, teremos as mesmas regras anteriores, com poucas mudanças em termos de cláusula de barreira e proibição das coligações, e assim, mesmo que se tenha um presidente de qualidade, ele vai ter que atuar com esse número de partidos. Esse ódio que vivemos têm a ver com o impeachment de Dilma Rousseff, que foi traumático, independentemente de se saber se foi ou não aplicação da Constituição. Impeachment é sempre traumático. O grupo afastado do poder se sentiu amargurado. Tenho esperança de que a eleição permita canalizar esse descontentamento para um processo de cidadania.
Como o senhor projeta o pleito deste ano?
Vai pesar não tanto a economia, porque ela não está tão boa que domine positivamente o debate, nem tão mal que domine negativamente, mas, isso sim, temas mais complicados: segurança, problemas de lei e ordem, corrupção, diferenças ideológicas ao abordar os problemas. É uma incógnita como os candidatos vão interpretar isso. Alguns estão interpretando no sentido simplista, com soluções na base da bala, da pena de morte. Não é por aí. Tem de ter outro tipo de abordagem. Vai ser uma campanha complicada.
Hoje o senhor fala com tranquilidade sobre o vazamento de sua frase em rede nacional, que levou a sua saída do Ministério da Fazenda, em 1994?
Naquele momento foi muito ruim. Foi o final súbito de uma gestão. Mas nunca culpei ninguém por isso. Assumi desde o inicio, me desculpei publicamente. Deixei o governo, nunca mais pleiteei posto de vida pública. Na verdade, o que fiz foi um deslize, uma infelicidade verbal. O que sempre me espanta, mas não há nada que eu possa fazer para mudar isso, é que as pessoas não se dão conta de que eu disse uma coisa e fazia o contrário. Porque o que eu disse é que o que era bom, a gente divulga, o que era ruim, a gente esconde. Que é uma frase boba. Nunca acreditei nisso. O que as pessoas não perceberam é que eu estava escondendo que a inflação tinha caído no segundo mês, e eu não podia falar ainda porque faltavam dois dias para fechar o mês de agosto.
O senhor estava escondendo a boa notícia?
Sim. E nunca ninguém se deu conta disso, porque as pessoas se impressionam mais pelo que você diz do que pelo que você faz.
O senhor mudou sua relação com os jornalistas?
Não, isso é questão de temperamento. Falo o que eu penso. Hoje, não tenho nenhuma função pública. Não me preocupa formular julgamentos.
Se fosse hoje, com as redes sociais, a repercussão seria imediata e ainda maior.
Pois é, mas quando você compara (o episódio "Não tenho escrúpulos") ao que tem sido gravado desses políticos (pegos na Lava-Jato), o que eu disse é uma coisa de jardim da infância, pré-escolar. Porque esse pessoal é criminoso. São sujeitos que ficam discutindo como roubar o fisco. Não há comparação possível.
Que episódio o senhor tem orgulho de ter testemunhado?
Tive a oportunidade de trabalhar com dois homens que, na minha opinião, teriam mudado o país: San Tiago Dantas (ex-ministro das Relações Exteriores) e Tancredo Neves. Do San Tiago, fui oficial de gabinete no governo parlamentarista que era chefiado pelo Tancredo. Era um grande governo, que hoje você não teria condições de fazer porque não há talentos desse tipo. O San Tiago poderia ter sido o ministro sucessor do Tancredo, em meados de 1962. O Congresso rejeitou a candidatura, não pelos defeitos dele, mas pelas suas qualidades. Ele queria acabar com a inflação, levar adiante um plano de reforma social. Ver a derrota dele no plenário do Congresso me marcou muito. O Brasil perdeu uma grande oportunidade ali. Tenho a impressão de que, se o San Tiago Dantas tivesse sido ministro, não teria havido o golpe militar em 1964. Ele teria evitado a aceleração da deterioração da inflação e consolidado o poder civil. Foi uma fatalidade da História. Tudo também teria sido diferente, depois dos anos de ditadura, se José Sarney tivesse seguido o conselho que o Carlos Castelo Branco, o grande analista político da imprensa brasileira, deu a ele, que era o de, quando a Constituição ficasse pronta, convocar rede de TV e rádio e anunciar: "Minha missão está completa. Herdei a presidência (de Tancredo Neves), levei o barco até a nova Constituição e agora precisamos começar vida nova, com eleições". Sarney queria ficar. Me disse: "Sabe por que não segui o conselho? Porque, se eu fizesse o que Castelo me recomendava, quem ganharia a eleição seria o Leonel Brizola, e os militares não iam deixar". Não sei se é verdade. Mas, se Tancredo tivesse vivido, o Brasil não teria caído na hiperinflação, não teríamos tido a eleição de Fernando Collor, porque o Tancredo teria o comando político da eleição. A História do Brasil podia ter sido diferente nesses dois momentos.
O Brasil está melhor hoje?
Sim. O Brasil começou o século 20 com 17 milhões de habitantes, dos quais 84% eram analfabetos, herdeiros da escravidão. Algumas coisas como a criminalidade, estão piores. Mas o restante, economia, educação, universidades, quase tudo está melhor. Agora, ainda vai haver sofrimento, altos e baixos, muito esforço. Mas não sou pessimista porque sou, sobretudo, um homem que gosta de História, e a História deve ser vista a longo prazo.
E o mundo, com Donald Trump, Theresa May...
Está em retrocesso. Está acontecendo um gradual abandono do que os próprios americanos tinham ajudado a criar mais do que qualquer outro país: o sistema das Nações Unidas, baseado na Carta das Nações Unidas, que já tem 73 anos. Desde 1945 até hoje, não tivemos nova guerra mundial. Entre a primeira e a segunda guerras, foram 20 anos. Nunca mais se usou arma nuclear contra população civil. Esse sistema acomodou o crescimento da China, que pôde se tornar membro permanente do Conselho de Segurança, a dissolução da União Soviética, que deu lugar a 15 países sem guerras. Esse sistema era baseado em leis que consideravam a guerra ilegal. O aquecimento global vem da atmosfera, nenhum país pode resolver sozinho. O crime cibernético, que vem pelas ondas, e os direitos humanos, e o problema da água, todos esses são problemas comuns a todos os países. Precisam de uma abordagem coletiva, negociada. Barack Obama, em três episódios que constituem a sua herança, mostrou como esse sistema era fecundo: normalizou as relações com Cuba, fez o Acordo de Paris sobre o clima e resolveu o problema do Irã. Todas essas coisas estão sendo desmanteladas por Trump. Estamos vendo o país que mais contribuiu para criar esse sistema como o que, agora, mais contribui para solapá-lo. Ainda não destruiu. Mas, se continuar assim, onde vamos parar? Hoje, a única voz moral importante do mundo é o papa Francisco.