Na disciplina de Direito Penal em sua graduação na Ulbra, Roberta Arabiane Siqueira recusou-se a cumprir a avaliação final em um semestre: visitar um presídio. Preferiu ser a única da turma a prestar uma prova ao invés de visitar um ambiente, para ela, desumano.
Duas décadas depois, está entre as principais autoridades em sistema penitenciário no Rio Grande do Sul. Aos 43 anos, a procuradora do Estado frequenta cadeias semanalmente, come a mesma comida preparada para os presos e responde, uma a uma, as cartas enviadas por eles.
Do alto de seu 1m55cm, com os braços riscados de tatuagens, quer mudar o sistema. Reconhece a falência da política de segurança pública e defende que a missão da prisão é recuperar o apenado:
— Até 2016, o Brasil era o quarto país com a maior população carcerária. Em 2017, subiu para terceiro, mas os índices de violência não diminuíram. Alguma coisa estamos fazendo errado.
Procuradora desde 2002, Roberta atuou até maio de 2017 como agente setorial na Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe). Em 2005, ao deparar com uma pilha de ações públicas contra o Estado em razão das más condições dos presídios, organizou um grupo interinstitucional para firmar acordos nos processos, colocando a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) em um papel de protagonismo inédito no sistema carcerário.
Foi nesse grupo que surgiu a ideia de transformar o Complexo Penitenciário de Canoas (Pecan) em um modelo de ressocialização. E o trabalho vem trazendo resultados: em dezembro, a prática de humanização do cárcere levou Roberta a vencer o Prêmio Innovare, principal reconhecimento na área jurídica no país.
Em meio ao caos nas penitenciárias, a senhora venceu o principal prêmio da Justiça no país com uma prática de humanização do sistema. No que consiste a iniciativa?
Há processos judiciais sobre tudo no sistema prisional. De ações ambientais a pedidos de interdição. Na PGE, percebi que Ministério Público, Defensoria Pública e Judiciário não conversavam entre si. Por isso, havia uma incongruência. Todos pediam questões razoáveis, mas, para cumprir uma, o Estado descumpria outra. Diante de governos que sucessivamente não investem nessa área, a situação jurídica foi piorando e o diálogo se tornou muito difícil. Então, chamamos os servidores que atuam na ponta para uma reunião com quem conhece o sistema, entra na cadeia e atende preso. Descobrimos que as demandas eram as mesmas, mas cada um tentava solucionar de uma maneira diferente. Foi quando começamos a conversar para firmar acordos nos processos judiciais.
Em que momento surgiu a iniciativa de humanização na ocupação da Pecan?
Havia uma ação civil pública que discutia o problema do esgoto no Presídio Central e outra que previa a criação de novas vagas no sistema com a Pecan. No fim do governo Tarso (Genro), foi feito um acordo extrajudicial para se acoplar esses dois processos. O Estado imaginou desocupar o Central e deslocar os detentos para Canoas. Reunimos os envolvidos e perguntamos: "Temos um presídio novo onde podemos realizar um trabalho diferente e recuperar o preso. O que faremos?". Todos queriam o mesmo. As pessoas não se dão conta de que o preso entra para o presídio, mas uma hora ele sai. Queremos que saia melhor ou pior?
No Central, o preso entra só com a roupa do corpo. Não recebe papel higiênico, nem escova de dente, nem toalha, nada. Se o Estado não fornece, quem acaba fornecendo? A facção. Quando ele é solto, tem de pagar esse período de "hotelaria".
Na prática, no que a Pecan é diferente das demais penitenciárias gaúchas?
Decidimos oferecer tudo que é necessário para manter a cadeia calma – atendimento à saúde, processo célere e assistência familiar – e não permitir facções. No Central, o preso entra só com a roupa do corpo. Não recebe papel higiênico, nem escova de dente, nem toalha, nada. Se o Estado não fornece, quem acaba fornecendo? A facção. Quando ele é solto, tem de pagar esse período de "hotelaria" e cometerá outros crimes para devolver o dinheiro ao crime organizado. Para o preso se manter livre de facções, o Estado precisa prover completamente este preso. Na Pecan, o preso usa uniforme, o que retira o poderio econômico dentro da prisão, recebe kit de higiene, assiste a aulas e tem atendimento médico regular. Ele se sente cuidado.
Um preso que recebe assistência integral custa mais caro para o Estado, que está falido, do que os demais.
Em termos. O preso é filho do Estado. Ele precisa se vestir, se alimentar, estudar e ser transportado para audiências. Em Canoas, o apenado custa R$ 2.256 por mês com uma probabilidade enorme de não cometer delitos novamente. No Central, o custo de um detento chega a cerca de R$ 1,5 mil, mas, sem receber absolutamente nada do Estado, ele sai devendo favores para o crime. Em tese, custa menos, mas o preso volta a cometer delitos, a Brigada Militar volta a prendê-lo e a Polícia Civil volta a investigá-lo. É mais barato investir adequadamente no sistema. Investir no sistema prisional significa retirar violência da rua.
Como convencer a população de que o preso merece um tratamento digno enquanto uma parcela defende que "bandido bom é bandido morto"?
O desafio é mudar a mentalidade do preso exatamente porque a população pensa que bandido bom é bandido morto. O preso se intitula como bandido e sabe que morrerá a qualquer momento. Ao entender o valor da sua vida, ele começa a valorizar a vida do outro e não matará por causa de um par de tênis. Mas, para isso, precisa se enxergar como ser humano. Precisamos matar o criminoso e resgatar o ser humano que mora dentro dele. No final das contas, a população não quer bandido morto. Ela quer que não haja bandidos.
Em resumo, o sistema carcerário ruiu.
Exatamente. O sistema penitenciário precisa ser analisado como política de segurança pública. Por exemplo: o censo carcerário mostra que o preso no Brasil não tem escolaridade – 90% não terminaram o Ensino Médio e 60% sequer concluíram o Fundamental. Se o Estado analisasse números para escolher uma estratégia, a primeira seria combater a evasão escolar. A cada ano que uma pessoa estuda, diminui 10% o risco de ser presa. Mas o sistema prisional se tornou um moedor de gente. Nos últimos anos, o país adotou a política do super-encarceramento, os presídios estão enchendo cada vez mais e o Estado não consegue criar vagas e custeá-las.
Hoje, o RS tem 37,5 mil presos, um déficit de 12 mil vagas e se encontra em uma crise financeira. Há solução?
Sim, mas existem questões que o governo precisa enfrentar. A primeira está na criação de uma secretaria para os serviços penitenciários, o que não demanda muitos gastos, somente vontade política. É importante que um secretário olhe somente para a Susepe (Superintendência dos Serviços Penitenciários) e seu orçamento. Não adianta discutir sistema prisional quando, na Secretaria da Segurança Pública, o orçamento se divide em cinco – Brigada Militar, Polícia Civil, Corpo de Bombeiros, Instituto-Geral de Perícias e Susepe. A segunda está na revisão da política de segurança pública. O problema está na favela, na criança sem pai com uma mãe que precisa sair para trabalhar. Essas mulheres criam suas famílias sozinhas e, sem ter onde deixar o filho, o tráfico o absorve. Investir em segurança pública significa colocar escola e creche dentro da vila para que a mãe possa deixar o filho e trabalhar. Há ainda a questão da dependência química. Em 80% das prisões, o tráfico aparece como crime conexo – mas esse é um problema de saúde pública que não se resolve dentro de presídio.
O governo Sartori foi o que menos criou vagas no sistema penitenciário na comparação com seus antecessores e, recentemente, gastou R$ 6 milhões para a construção de centros de triagem para presos. Resolve o problema?
Se o Estado analisasse números para escolher uma estratégia, a primeira seria combater a evasão escolar. A cada ano que uma pessoa estuda, diminui 10% o risco de ser presa. Mas o sistema prisional se tornou um moedor de gente.
Evidentemente que não. É rasgar dinheiro. Centro de triagem não representa vaga, mas um local para o preso esperar pela vaga para cumprir a pena. Hoje, o problema está na falta de vagas para os presos condenados. Há detentos legalmente soltos aguardando a colocação de tornozeleira ou vaga no semiaberto. Dinheiro bem empregado estaria na construção de presídios.
Em outubro, o governo deu início à ocupação do módulo 2 da Pecan com o apoio da BM – situação semelhante à ocorrida há 20 anos no Presídio Central. Há o temor de que a Pecan se torne um novo Central?
Sim. Ocorre que passamos muito tempo pedindo a abertura de concurso para agentes penitenciários porque havia a iminência de abertura de vagas em Canoas, mas o governo estava sem dinheiro. A autorização do concurso demorou demais e, quando saiu, era tarde. Hoje, os 480 agentes nomeados ainda estão em curso de formação. Por isso, a BM assumiu o módulo 2 da Pecan – e esperamos que seja provisoriamente. A BM não tem formação para lidar com preso. É excelente para o policiamento ostensivo, mas uma coisa é lidar com o bandido na rua, outra é lidar com o preso. Esse treinamento a BM não tem. O policial encontra dentro do presídio a pessoa com quem trocou tiros na rua, e o tratamento será violento. Aí, perdemos tudo o que havíamos pensado sobre resgatar o ser humano, valorizá-lo e fazê-lo mudar de vida. O preso não pode continuar sendo tratado como bandido.
O governo questiona uma suposta contradição do Judiciário: enquanto juízes determinam interdições de penitenciárias, abrem processos para novas vagas. Como a senhora avalia esse impasse?
Não há nada de contraditório. A Lei de Execuções Penais determina que o juiz fiscalize o presídio no mínimo uma vez por mês. Se o encontra fora das condições legais, com pessoas dormindo no chão, sem terem onde comer ou usar o banheiro, vai interditar. É obrigação do Judiciário fazer cumprir a lei. Tem de fechar o presídio porque não há mais condições de receber ninguém. Ao mesmo tempo, as pessoas ficam onde? Amarradas na via pública, dentro de delegacias ou empilhadas no pátio do presídio. Evidentemente, o juiz vai determinar a abertura de vagas. O Judiciário está cumprindo seu papel. Quem está deixando de cumpri-lo é o Executivo que insiste em uma política de segurança pública ultrapassada.
Nos últimos dias, uma cena usual de 2017 voltou a ser registrada no Estado: presos algemados em viaturas. Como solucionar esse problema?
Já sabíamos que aconteceria e havíamos alertado o governo. Na primeira metade, esse governo implementou como política de segurança pública o encarceramento em massa. Depois do latrocínio de uma mãe em frente a uma escola, a política passou a ser o policiamento ostensivo e o encarceramento em massa. Nada mais. Não foi implementado nenhum programa de prevenção à violência. Se não atacar lá atrás, antes do crime, a violência vai aumentar. Se você está fazendo apenas policiamento ostensivo e encarceramento em massa, vai aumentar o número de prisões – se não criar o número de vagas correspondentes, as pessoas vão ficar presas nas delegacias ou nas viaturas.
Recentemente, um vídeo mostrou centenas de carreiras de cocaína enfileiradas para consumo durante uma "festa" no Presídio Central. Como explicar a entrada e o uso da droga em uma prisão controlada pela Brigada Militar?
Nada de novo. O Presídio Central e a Pasc (Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas) têm scanner corporal. Já testei. Aparece absolutamente tudo, inclusive o fecho de metal do sutiã. Então, pela porta de entrada, com as visitas, não passam drogas, nem celulares. A não ser que deixem passar. Há carregamento de droga e celular por arremesso, mas, no Central, vários pavilhões ficam longe dos muros. Ou seja, a droga entra de outra maneira. Qual? Acredito que Polícia Civil, BM e MP estão investigando.
No Estado, há juízes que atuam no sistema penitenciário que foram ameaçados. E a senhora?
Não. Nunca sofri ameaça de preso, mas já sofri represálias de servidores. Não tenho medo, nunca tive.
Como é ser mulher e trabalhar nesse ambiente?
Dentro dos presídios, com os presos, o ambiente é absolutamente respeitoso. Nunca fui desrespeitada de qualquer forma, nem mesmo senti um olhar diferente. Com os servidores públicos, também. Agora, no ambiente da segurança pública, existe muito machismo e misoginia. Em algumas reuniões, tenho de manter o tempo todo uma posição bastante dura e firme simplesmente pelo fato de ser mulher. Depois, a gente passa por cima: coloca um batom, sacode o cabelo e vai.