Daiane Griá Sales, 14 anos, sonhava ser professora e ensinava às amigas a língua portuguesa, já que muitas delas dominavam somente o idioma indígena. A garota caingangue cresceu na reserva da Guarita, no interior de Redentora, município de 9,9 mil habitantes perto da fronteira gaúcha com a Argentina.
Foi ali também, numa lavoura, que os sonhos juvenis foram encerrados de forma brutal. A adolescente foi estuprada e morta no fim de julho de 2021 — seu corpo só foi achado quatro dias depois. Réu pelo crime, Dieison Corrêa Zandavalli, 36 anos, que está preso, irá a julgamento em 13 de fevereiro, em Coronel Bicaco (veja abaixo o que diz a defesa).
Daiane saiu da moradia simples da família, num domingo, 31 de julho, para ir a um local onde aconteciam os chamados "sons", onde jovens se reúnem para ouvir música e dançar, na Vila São João, perto da reserva. Acostumada a cuidar das sobrinhas, prometeu à irmã que faria isso ao voltar. Mas não retornou. O corpo dela foi encontrado numa estrada, junto de uma lavoura, em Posse Ferraz, a 10 quilômetros de distância, em área contígua à reserva caingangue.
A Polícia Civil concluiu que a adolescente foi levada por Dieison num veículo, na madrugada de 1º de agosto. Com a adolescente no carro, teria seguido até a área de mata, cometido a violência sexual e estrangulado a vítima, até matá-la, por asfixia.
Dieison foi indiciado pelo crime, e, mais tarde, denunciado pelo Ministério Público (MP) por estupro de vulnerável e homicídio com seis qualificadoras (meio cruel, motivo torpe, dissimulação, recurso que dificultou a defesa da vítima, para assegurar a ocultação de outro crime e feminicídio).
Segundo a denúncia, o homem "estava procurando sua vítima em eventos sabidamente frequentados por jovens indígenas, havendo, inclusive, oferecido carona a outras garotas da mesma etnia de Daiane, de modo que se pode afirmar que o fato de a ofendida integrar tal etnia foi fator determinante para que ela fosse objeto preferencial da escolha do denunciado". Ainda conforme o MP, Dieison teria assassinado a adolescente com intuito de esconder o crime de estupro.
— Foi esse ambiente de menosprezo à cultura indígena, à mulher, à criança, que acabou vitimando a Daiane. Ela foi vista como um objeto e não como pessoa, por ser mulher e, ainda mais, por ser indígena, o que agrava isso. Há um debate que a família faz questão de fazer. A dona Júlia (mãe da adolescente) desde o início fala que quer dar voz para a Daiane — diz o advogado Bira Teixeira, que representa a família da vítima no processo, como assistente de acusação.
O ímpeto da mãe, que mal se comunica em português, de dar voz à filha, é, de certa forma, um meio de representar Daiane, segundo o advogado. A adolescente era bastante comunicativa e considerada uma liderança juvenil dentro da reserva e na comunidade caingangue. Participava de grupos de canto, do coral, sonhava ser cantora e professora.
— Isso ampliou o grau de perplexidade com esse crime. Foi uma perda para a comunidade. A morte da Daiane tem esse pano de fundo de desrespeito total à comunidade indígena, à figura da mulher indígena. Foram essas circunstâncias que levaram a esse crime — afirma o advogado.
Família quer novas investigações
Na época, além de Dieison, um outro homem de 21 anos chegou a ser preso por suspeita de envolvimento no assassinato. Ele havia emprestado um moletom para Daiane, que foi encontrado junto ao corpo. Os dois tinham sido vistos na companhia da vítima, e ambos negaram ter cometido o crime.
Foram ouvidas pela polícia 88 testemunhas durante a investigação. A conclusão foi de que somente Dieison estuprou e matou a adolescente. Enquanto esteve preso, ele apresentou diferentes versões, que, segundo a polícia, estavam "recheadas de contradições".
A família da adolescente ainda hoje suspeita que possa ter havido a participação de mais pessoas no crime. Segundo o advogado, os familiares seguem no intuito de dar seguimento às investigações.
— A expectativa é de que essa pessoa (o réu), que está bem substanciado no processo que estava na cena do crime, tenha confirmada a condenação e permaneça em cárcere. Mas a família e a reserva não compreendem que isso tenha sido um ato isolado dele. O que a família entende é que é necessário dar continuidade às investigações, além de levar esse processo para julgamento. Para entender se realmente há mais participantes nesse crime — afirma o advogado.
Audiência e vigília
Familiares e outros integrantes da comunidade indígena estão se mobilizando para realizar atos em datas próximas ao julgamento. Para 4 de fevereiro, está prevista a realização de uma audiência pública, com transmissão online, a partir das 19h, para reunir entidades, lideranças indígenas e outros representantes da sociedade para debater o que representa a morte da adolescente.
— O caso da Daiane acabou virando símbolo nacional de luta. Hoje, em vários eventos, congressos, dos povos indígenas, de movimentos ligados à defesa dos direitos das mulheres, se percebe a presença de cartazes "todos por Daiane". Ela virou um símbolo nacional de enfrentamento a esse desprezo contra a mulher indígena — diz Teixeira.
Entre os dias 12 e 13 de fevereiro, a família da adolescente e outros membros da comunidade indígena pretendem realizar uma vigília em frente ao Fórum de Coronel Bicaco, onde ocorrerá o julgamento. O intuito da mobilização é despertar a atenção para o caso.
Contraponto
As advogadas Pâmela Londero, Ana Caroline Massafra e Laura Villar Piccoli, que atuam na defesa de Dieison Corrêa Zandavalli, enviaram nota sobre o caso. Confira:
"A defesa reafirma seu compromisso com o pleno exercício do devido processo legal. O aprazamento da sessão do júri representa um avanço importante para que a verdade dos fatos seja devidamente apurada e a justiça seja feita. Confiamos na imparcialidade do Tribunal e na sabedoria dos jurados para que seja proferida uma decisão justa."
Passo a passo do julgamento
- O júri está previsto para ocorrer no dia 13, a partir das 8h, no Fórum de Coronel Bicaco.
- Inicialmente, serão sorteados os nomes dos sete jurados que integrarão o Conselho de Sentença.
- Na sequência, se dá início com os depoimentos das testemunhas de acusação e de defesa. Estão previstas 11 testemunhas ao todo.
- Logo depois, é ouvido o réu, que pode optar por permanecer em silêncio, se preferir.
- Então, iniciam-se os debates, por parte da acusação e da defesa, com 1h30min cada.
- Ainda é possível que o Ministério Público decida ir à réplica, com mais uma hora para apresentar seus argumentos. E, neste caso, a defesa também tem uma hora logo depois.
- É depois disso que os jurados se reúnem em sala secreta e votam se o réu é culpado ou não pelo crime.
- Em caso de condenação, a dosimetria (estabelecer tempo de pena) é realizada pelo juiz responsável.