A caingangue Daiane Griá Sales, 14 anos, sonhava em ser cantora – e, de certa forma, conseguiu. Não de forma profissional, mas no coro gospel do templo da Assembleia de Deus, igreja evangélica que frequentava. Ela também queria ser professora, mas enquanto esperava a graduação, se contentava em repassar conhecimento de português às amigas, muitas das quais só dominam o idioma indígena. A garota só não tinha como imaginar que seus projetos de vida seriam interrompidos de forma brutal. Daiane foi estuprada e morta em 31 de julho, junto à reserva onde vivia, a Guarita, a maior do Rio Grande do Sul, situada próximo à fronteira com a Argentina.
GZH foi à Guarita, que abrange três municípios (Redentora, Miraguaí e Tenente Portela). O assassinato chocou por diversos motivos. O corpo seminu de Daiane – diminuto, cerca de 1m55cm de altura, quase de uma criança – foi encontrado cinco dias depois da morte, numa trilha de um matagal junto à reserva. Estava estraçalhado da cintura para baixo. A blusa estava levantada (com busto à mostra), um batom e um absorvente estavam junto ao cadáver, a indicar o abuso antes da morte.
Boatos de magia negra logo se espalharam na reserva, mas a perícia concluiu que os ferimentos visíveis em Daiane foram causados por animais, após a morte. A causa mais provável do assassinato foi estrangulamento, por meio de uma corda – que chegou a ser vista próximo ao corpo, mas sumiu.
A última vez em que Daiane tinha sido vista era numa festa, um “som” emanado de carros ao ar livre junto a um bar na Vila São João, ao lado da reserva. Cenário onde grupos de jovens costumam se reunir, embalados a bebidas e drogas.
Fazia pouco que Daiane frequentava esses locais, mas naquele fim de semana tinha comparecido a várias festas do tipo. Era alegre, a mais desinibida das irmãs, descreve a mãe dela, a agricultora Júlia Griá, 43 anos.
— Ela cantava muito e também fazia as coreografias no coral gospel da igreja, que fica na reserva. Era tipo um teatro e todos gostavam do jeito dela. Frequentou até a 6ª série do colégio, fez datilografia — descreve, com orgulho, Júlia, em conversa com GZH. Como ela mal fala português, a tradução é feita por familiares.
Júlia diz que Daiane não fazia “dança no mundo, não se arrumava para dança no mundo”. A referência é a tudo que existe fora da aldeia. Não, a vida para ela era na reserva... até quatro meses atrás, quando começou a circular em festas próximas à cidade, pegar caronas, relata a mãe.
Caçula da família, a adolescente tinha mais cinco irmãos – três homens e duas mulheres. São agricultores que vivem quase na miséria e não é força de expressão. Para chegar na residência dos Griá Sales é preciso pegar uma estrada de pedra que corta a reserva, depois uma trilha embarrada onde é difícil passar, a menos que o veículo tenha tração nas quatro rodas. A casa é feita com tábuas de costaneira, sem acabamento, no meio de um lamaçal. É diminuta e carce de esgotamento sanitário. Cultivam milho e alguma hortaliça. A carne é pouca. O contato com as cidades é esporádico, só para comprar alguma roupa.
— Antes de falarem mal dos indígenas, as pessoas deveriam ver como muitos deles sobrevivem — resume o advogado Bira Teixeira, que se ofereceu para representar a família de Daiane na pressão por justiça neste caso.
Evangélica “daquelas de frequentar culto a toda hora”, descreve a mãe, Daiane ajudava a cuidar das sobrinhas. Entre elas a filha da sua irmã Catiane, que tem só 18 anos. É uma família de maternidades e paternidades precoces.
O rosto de Catiane se ilumina ao falar de Daiane vestida com túnicas azuladas, nos cânticos da igreja, embalados a violão e guitarra. E um olhar enviesado, triste, assoma quando lembra que a irmã tinha se afastado dos templos e buscado danças em outras paragens.
— Fazia uns meses que a Daiane deixou o culto. Ia de som em som, com amigas. Conheceu muitos rapazes, mas não falava em namorado. Só achava divertido e ia. Eu até trouxe ela de volta. Na sexta-feira se comprometeu a ficar com meu bebê, mas no sábado saiu. Não voltou mais — descreve Catiane.
A mãe, Júlia, diz que Daiane começou a ver gente de todo tipo. O cacique caingangue Carlinhos Alfaiate, que conhecia a adolescente, é mais direto.
— O problema é que nessas festas tem de tudo um pouco... índios, não-índios, pessoas ordeiras e outras, nem tanto. Fora da reserva rolam drogas, bebidas e tentam induzir menores, nesse meio — diz Alfaiate, também ligado à Assembleia de Deus. Ele lamenta a ausência de Daiane como a de um pastor que vê uma ovelha se desgarrar.
Como as saídas de Daiane estavam habituais, a família não estranhou que ela demorasse a voltar no domingo (31), embora tivesse ficado de cuidar de uma sobrinha. Só no dia seguinte registraram ocorrência policial. Era tarde para uma garota indígena, pobre e alegre, que sonhava muito e viveu pouco. Após cinco dias de buscas intensas e comoção, a tragédia foi constatada. Muitos vizinhos ainda duvidam que o corpo de Daiane tenha sido dilacerado por bichos. “Só se for um bicho homem”, define um primo, sob concordância de outros caingangues.