Um bolo de reis, iguaria natalina, causou a hospitalização de seis pessoas da mesma família e levou à morte três delas, em Torres, no Litoral Norte. Todas as vítimas consumiram o doce no dia 23 de dezembro, em uma confraternização de Natal.
A investigação da Polícia Civil apontou que a farinha utilizada no preparo do alimento estava envenenada com arsênio e que a suspeita de ser responsável pela contaminação do item é nora da idosa que fez o bolo. A mulher está presa temporariamente.
Uma quarta pessoa da família, morta em setembro, supostamente por intoxicação alimentar, também foi envenenada, conforme comprovado pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP) após exumação do corpo. Trata-se do sogro da suspeita presa.
O que se sabe e o que falta ser esclarecido sobre bolo envenenado em Torres:
Como ocorreu?
Na manhã de 23 de dezembro, Zeli Teresinha Silva dos Anjos, 61 anos, moradora de Arroio do Sal, no Litoral Norte, fez um bolo para uma confraternização de fim de ano que ocorreria à tarde, em Torres. A sobremesa fazia parte de uma tradição familiar.
No encontro, seis pessoas da família comeram o bolo: Zeli, duas irmãs dela, a sobrinha, o neto e um cunhado. Por volta das 18h, segundo a Polícia Civil, todos começaram a passar mal e buscaram atendimento médico.
Quem são as vítimas?
Morreram as irmãs Neuza Denize Silva dos Anjos, 65 anos, e Maida Berenice Flores da Silva, 59, além de Tatiana Denize Silva dos Anjos, 47 anos, filha de Neuza.
O marido de Maida chegou a ser hospitalizado, mas recebeu alta após atendimento.
Zeli, responsável por fazer o bolo, ficou hospitalizada, deixou a UTI na manhã de 7 de janeiro e recebeu alta na manhã do dia 10.
Um menino de 10 anos, neto de Neuza e filho de Tatiana, ficou hospitalizado durante vários dias, mas já recebeu alta e está em casa.
O que foi encontrado na casa onde o bolo foi feito
No dia 24 de dezembro, policiais estiveram na casa de Zeli, que fez o bolo, em Arroio do Sal. De acordo com o relato do delegado Marcos Vinicius Veloso, foram encontrados diversos produtos vencidos, inclusive a farinha que a mulher utilizou para fazer a sobremesa.
O único veneno encontrado na residência foi inseticida.
O envenenamento foi confirmado?
No dia 27 de dezembro, análises laboratoriais identificaram presença de arsênio no sangue de Zeli e do filho de Tatiana, então hospitalizados, e de Neuza, que havia morrido.
Também foram periciadas amostras do bolo e da farinha utilizada no preparo. Em ambos, foram identificadas quantidades altamente elevadas de arsênio.
Qual veneno foi utilizado?
O elemento químico identificado na farinha do bolo é o arsênio, utilizado para fazer arsênico, veneno para ratos e insetos que tem sua venda proibida no país desde 2005.
As principais formas de se obter produtos com alta concentração de arsênio no Brasil são por comercialização clandestina ou em possíveis sobras ainda existentes, que são de antes da proibição.
— O arsênico era conhecido como o rei dos venenos, porque mimetiza muitas vezes uma doença gastrointestinal, uma intoxicação alimentar. Então, a pessoa tinha muita diarreia, vômito, e acabava parecendo que era uma disenteria, uma cólera — aponta o toxicologista Bruno dos Santos.
Como o veneno foi parar na farinha?
Durante novo depoimento à Polícia Civil na segunda-feira (20), Zeli Teresinha dos Anjos, sogra de Deise dos Anjos, afirmou ter convicção de que a farinha havia sido contaminada com arsênio um mês antes do episódio que causou três mortes.
Em seu relato, Zeli contou que a última visita feita por Deise em sua casa em Arroio do Sal, também no Litoral Norte, foi em 20 de novembro, cerca de um mês antes das mortes.
Na ocasião, segundo Zeli, as duas conversavam na cozinha. No local, havia dois pacotes de farinha, um deles estava cheio e o outro, quase no fim — este teria sido usado pela vítima para fazer o bolo que causou as mortes.
De acordo com a sogra, o único uso da farinha nesse período foi no preparo do bolo de reis, que causou a morte de três pessoas da família. Comer o doce antes do Natal seria uma tradição entre eles.
O que se sabe sobre a morte de outro familiar, em setembro
Paulo Luiz dos Anjos, marido de Zeli, morreu em setembro de 2024, e a causa da morte foi apontada, à época, como intoxicação alimentar. Diante do evenenamento de familiares, na antevéspera do Natal, a Polícia Civil pediu a exumação do corpo. A perícia apontou que ele também ingeriu arsênico antes de morrer.
Paulo morreu depois de consumir bananas e leite em pó e ter crises de vômito, diarreia e sangramentos estomacais.
Quem é a principal suspeita do crime?
Deise Moura dos Anjos, 42 anos, foi presa temporariamente no dia 5 de janeiro. Nora de Zeli, a mulher que fez o bolo, ela é a principal suspeita de causar as mortes das três pessoas da família, em dezembro, e também a do sogro, em setembro.
Segundo a delegada regional, Sabrina Deffente, Deise pesquisou na internet uma receita de veneno que fosse inodora e insípida e fez quatro compras de veneno num período de cinco meses. A delegada classifica Deise como uma pessoa "extremamente manipuladora", "calma" e "extremamente convincente".
Deise não participou da reunião familiar no litoral Norte em dezembro. Na ocasião, ela, o marido, e o filho estavam na casa onde moram, em Nova Santa Rita. Segundo a polícia, o marido não é investigado porque não há nenhum indício de que ele poderia tentar algo contra a mãe.
As bananas e o leite em pó consumidos pelo sogro antes de morrer foram levados à casa dele por Deise, segundo a investigação.
Deise está detida no Presídio Estadual Feminino de Torres por suspeita de triplo homicídio duplamente qualificado por motivo fútil e com emprego de veneno e tripla tentativa de homicídio duplamente qualificada.
O que motivou o crime?
O motivo seria uma desavença com a sogra. Deise acusa Zeli de ser egoísta, de querer o filho só para si e de ter invadido a privacidade do casal, desde 2001, quando se conheceram. A desavença entre elas teria aumentado depois que, em agosto de 2004, a sogra sacou dinheiro de uma conta do filho, "sem autorização", segundo descreveu Deise para a polícia. O valor foi devolvido, "mas a relação nunca mais foi a mesma".
A reportagem teve acesso exclusivo ao relato de testemunhas. Um dos depoentes define Deise como "manipuladora" e a responsabiliza por afastar os pais do seu marido. Ela também teria enviado mensagens ofensivas a familiares, anos atrás. Para Zeli, a nora teria dito, conforme uma testemunha: "Tu ainda vai ver tua família num caixão".
Como era o relacionamento de Deise com a família do marido?
Deise nasceu em Canoas, em 6 de setembro de 1982. Filha mais nova de um pedreiro e uma dona de casa, conheceu o marido, Diego, em bailes de CTG. Começaram a namorar em 27 de julho de 2001, ela aos 19 anos e ele com 17. Três anos depois, em 2004, casaram-se.
O planejamento do matrimônio inaugurou as turbulências com a família do futuro marido. A indefinição provocou um atrito com a prima de Diego, Tatiana Silva dos Anjos, que também iria se casar na mesma época. Desde então, Deise rompeu relações com Tatiana e nunca mais passou o Natal com a prima.
— Ou tu fica do lado dela ou do meu — disse ao marido, segundo relatos colhidos por Zero Hora.
Em 2013, Deise e Diego foram morar em Catalão, no interior de Goiás. A vida longe da família foi um recomeço para o casal após uma separação no ano anterior. Em ocorrência registrada na polícia, Deise relatou ter sido xingada pelo marido na frente da mãe dela. Diego pediu à mulher que saísse de casa e ofereceu R$ 25 mil em troca da parte dela no imóvel. Abrigada na casa da irmã, Deise reatou meses depois, após apelo do marido.
Em 2017, em nova transferência de Diego na empresa, eles foram morar em Indaiatuba (SP). A distância afetava Deise, que mais tarde desenvolveria depressão.
De volta ao Estado em 2019, a família se mudou no ano seguinte para Nova Santa Rita. A pandemia afastou mais uma vez Diego e Deise de seus pais, e logo haveria uma forte ruptura entre nora e sogra. Em função do isolamento social, Deise orientou as famílias a não comparecerem à formatura do filho na pré-escola. Revoltada por não poder tirar uma foto ao lado do neto, Zeli bloqueou Deise no WhatsApp. Elas ficaram dois anos praticamente sem se falar.
Quando ensaiaram uma reaproximação, os ressentimentos afloraram de novo. Durante visita de Zeli e do marido a Nova Santa Rita, Deise disse que a casa estava de portas abertas à reconciliação.
— A situação piorou ainda mais. A Zeli chegou gritando, dizendo que todos erraram. Eu disse que era o momento de todos pedirem perdão. Porém a Zeli falou que ela e o Paulo não pediriam perdão — contou Deise em depoimento.
Na enchente de maio, Deise ficou ilhada em casa, mas tão logo a rua secou, reconciliou-se com os sogros, abrigando-os durante quatro noites.
Em 16 de novembro de 2024, Deise foi passar o final de semana com o marido e o filho na casa de praia da sogra, em Arroio do Sal. Alguns dias depois, já em casa, em Nova Santa Rita, Deise reclamou da atenção dedicada por Diego à própria mãe:
— Tu falou com a tua mãe mais do que falou comigo durante todo o tempo que a gente tá junto.
O que a suspeita disse à polícia?
Questionada em depoimento à polícia se comprou veneno para colocar em alimentos, Deise negou, mas relatou que Zeli teria adquirido "matamato" (herbicida) e veneno de matar rato para usar na casa.
Policiais questionaram se ela fez pesquisas na internet a respeito de "venenos fatais para humanos", ela confirmou, tendo aparecido na tela "chumbinho" e veneno de rato. No entanto, disse que fez isso após a morte do sogro, em setembro, porque a sogra desconfiava de que ele pudesse ter morrido envenenado e não por infecção bacteriana.
Ela disse que já em 24 de dezembro realizou nova pesquisa, ao saber do envenenamento que vitimou a sogra e as irmãs dela. Alegou que pesquisou também sobre arsênico, ao tomar conhecimento dos sintomas das mortes. Ela ainda acrescentou que "não há bens a serem herdados" e que não teria motivo para envenenar ninguém.
O que diz a defesa da suspeita
A defesa de Deise afirma que "as declarações divulgadas na coletiva de imprensa ainda não foram judicializadas no procedimento sobre o caso", portanto "aguarda a integralidade dos documentos e provas para análise e manifestação".
Nota da defesa na íntegra
O escritório Cassyus Pontes Advocacia representa a defesa de Deise Moura dos Anjos no inquérito em andamento sobre o fato do Bolo, na Comarca de Torres, tendo sido decretada no domingo a prisão temporária da investigada.
Todavia, até o momento, mesmo com o pedido da Defesa deferido pelo judiciário, ainda não houve o acesso ao inquérito judicial.
A família, desde o início, colabora da investigação, inclusive o com depoimento de Deise em delegacia, anterior ao decreto prisional.
Cumpre salientar, que as prisões temporárias possuem caráter investigativo, de coleta de provas, logo ainda restam diversos questionamentos e respostas em aberto neste caso, os quais não foram definidos ou esclarecidos no inquérito.
O que diz a polícia
Em coletiva de imprensa realizada na manhã de 10 de janeiro, em Capão da Canoa, no Litoral Norte, a Polícia Civil deu detalhes sobre as investigações.
— As provas colhidas até o momento nos convencem de que a suspeita, Deise (Moura dos Anjos), passou a ser considerada autora desses crimes e, provavelmente, não sairá da cadeia nesta vida — disse o subchefe de Polícia, delegado Heraldo Chaves Guerreiro.
A polícia constatou que o veneno usado para cometer os crimes foi comprado pela internet, antes da morte do sogro e que há fortes indícios de que ela tenha praticado outros envenenamentos.
O delegado Marcos Vinicius Veloso, responsável pela investigação, afirma que a polícia tem "provas robustas" de que Deise matou as quatro pessoas envenenadas. Além disso, tentou conseguir a cremação do corpo do sogro, mas precisava da autorização de dois médicos e só tinha de um.
Uma mensagem, apresentada pelo delegado durante a coletiva, mostra que ela escreveu para uma pessoa próxima o seguinte recado: "Quando eu morrer, cuida do meu filho e reza bastante por mim, porque quando eu morrer, provavelmente eu não vá para o paraíso".
Perícia em garrafa de água
A Polícia Civil pediu análise pericial de uma garrafa de água levada por Deise para a sogra, Zeli Teresinha dos Anjos, que esteve internada na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) até a 10 de janeiro. No dia 5 de janeiro, ela recebeu visita da nora no Hospital Nossa Senhora dos Navegantes, em Torres.
Na ocasião, ela levou, além da garrafa de água, outra garrafa com suco e chocolate para a sogra. Horas depois da visita, Deise foi presa pela suspeita de envenenar os familiares.
***O Instituto-Geral de Perícias informou, no dia 11 de janeiro, que recebeu o objeto na tarde do dia 10 de janeiro e que o resultado da análise deve sair nesta semana. Na segunda-feira (21), o delegado Marcus Vinicius Veloso, responsável pelo caso, afirmou que ainda não recebeu o laudo do IGP:
— Eu posso estar enganado, tá? Eu acho pouco provável que esse material esteja envenenado — avaliou o delegado.***
Marido e o filho também foram vítimas?
Exames detectaram resíduos de arsênio na urina do marido e do filho de Deise Moura dos Anjos, a suspeita do crime. A suposta tentativa de envenená-los teria ocorrido antes do episódio do bolo. Em outubro passado, o marido, Diego, teve intoxicação alimentar. Dois meses depois, passou mal após ingerir suco de manga, que também contaminou o filho do casal.
Desconfiados de que possa ser envenenamento, policiais civis pediram exames. Mostras de urina de pai e filho foram enviadas pelo IGP para um laboratório do Ministério da Agricultura, que confirmou resíduos de arsênio no material coletado nos dois familiares de Deise.
Filho único de Zeli, o marido de Deise foi chamado a depor na condição de testemunha, assim como a mãe. Ele não é investigado pelo crime. Recolhido na casa da família na praia, Diego procurou um advogado pedindo auxílio para ingressar com pedido de separação.
***O que diz o marido?
Em depoimento no qual se declarou solteiro, Diego Silva dos Anjos disse mais de uma vez à Polícia Civil não acreditar que a esposa, Deise dos Anjos, tenha envenenado a farinha usada no preparo do bolo. Diego foi ouvido por mais de cinco horas na delegacia de Arroio do Sal, na última segunda-feira (20).
Apesar da incredulidade na culpa de Deise, pela primeira vez Diego detalhou aos policiais o episódio em que teria sido envenenado pela mulher. O administrador de empresas disse que estava trabalhando no escritório de casa, na tarde de 16 de dezembro — uma semana antes do envenenamento coletivo em Torres —, quando tomou suco de manga oferecido por Deise.
Ao encerrar o expediente, por volta das 18h, logo sentiu-se mal. Diego correu para o banheiro e quase não conseguiu segurar o vômito “muito estranho e violento”.
— Mesmo tendo vomitado como nunca antes, não imaginei que o suco pudesse estar envenenado — disse à polícia.
Pouco mais tarde, ele mesmo pegou a garrafa da geladeira, onde estava ao alcance de todos, e serviu um copo ao filho de nove anos, acompanhado de uma torrada. Duas horas depois, o menino também vomitou. Na madrugada, o garoto voltou a regurgitar, mesmo durante o sono.
Deise levou o filho para um pronto-atendimento e Diego ficou em casa, pois ainda sentia desconforto. No local, a mulher publicou nas redes sociais um pedido de orações com a foto da criança tomando soro. Aos policiais, Diego disse não ter visto a mulher forçando o menino vomitar, mas ressaltou que ela provoca o próprio vômito com frequência.
Administrador de empresas e há 16 anos trabalhando em uma multinacional de implementos agrícolas, Diego reconheceu aos policiais que vive um casamento tumultuado. Ele confirmou que as desavenças começaram logo no início da relação, por brigas de Deise com a sua mãe, Zeli, e uma prima dele, Tatiana, ambas contaminadas pelo bolo com arsênico.
Por duas vezes, porém, ele disse não acreditar que a mulher possa ter colocado o veneno na farinha. Todavia, admite que, se Deise tivesse intenção de matar alguém, seria a sogra, Zeli.***
O que falta ser esclarecido?
Os crimes ainda estão sendo investigados e muitas perguntas continuam sem respostas.
O que vai acontecer com quem vendeu o veneno?
A investigação apontou que Deise comprou arsênio pela internet e recebeu em casa pelos Correios. A nota fiscal da compra foi encontrada no celular dela. No documento, ela usou o nome Deise Marques dos Anjos, trocando seu sobrenome do meio. A polícia diz que ela também usou um CPF falso.
Segundo a investigação, Deise comprou arsênio quatro vezes em um período de cinco meses. Uma das compras ocorreu antes da morte do sogro — que morreu por envenenamento — e as outras três, antes do encontro familiar.
De acordo com o delegado Cleber Lima, uma nova investigação será aberta em torno da empresa que vendeu o arsênio. Contudo, ele não revela se é uma empresa nacional ou estrangeira. Ele também pontua que a discussão sobre a facilidade de acesso a esse tipo de substância é uma discussão a nível nacional.
O arsênio é utilizado para fazer arsênico, veneno para ratos e insetos, tem sua venda proibida no país desde 2005. As principais formas de se obter produtos com alta concentração de arsênio no Brasil são por comercialização clandestina ou em possíveis sobras ainda existentes de produção anterior à proibição.
A suspeita vai seguir presa?
Deise foi presa no dia 5 de janeiro, quando a polícia descobriu as pesquisas em seu celular sobre os efeitos do uso de arsênio.
Ela está detida no Presídio Estadual Feminino de Torres, onde ficará por 30 dias, a contar da data da prisão, por suspeita de triplo homicídio duplamente qualificado por motivo fútil e com emprego de veneno e tripla tentativa de homicídio duplamente qualificada.
A polícia avalia ainda a possibilidade de pedir a prorrogação da prisão temporária da mulher por mais 30 dias.