Única brasileira a integrar o Tribunal Penal Internacional (TPI), responsável por julgar criminosos de guerra, a juíza paulistana Sylvia Steiner trabalhou em casos de alguns dos maiores genocídios das últimas décadas, como os de Uganda, República Democrática do Congo, República Centro-Africana e Sudão. Neste último, ficou responsável por julgar o ex-presidente Omar Hassan al-Bashir, condenado pela matança de milhares de pessoas em Darfur. Sylvia passou 13 anos em Haia. Agora, dedica-se a dar aulas. Intransigente defensora dos direitos humanos, ela crê na diplomacia e na cooperação como solução para divergências entre países – e não no uso da força. Diz que a Organização das Nações Unidas (ONU) precisa de mudanças urgentes e critica o que chama de "machismo europeu".
Tem-se a impressão de que o mundo reage de forma diferente diante de tragédias e da violação de direitos humanos na Europa e nos EUA e em nações africanas ou asiáticas. Um atentado em Paris é mais notícia do que um ataque em Mogadíscio, por exemplo. A senhora compartilha dessa percepção?
Sim. Não saberia explicar o porquê. Mas a verdade é que nós, no chamado mundo ocidental, lamentamos o que ocorre em outras partes do mundo, mas não nos sentimos pessoalmente atingidos, ou ameaçados. Quando ocorreu a Guerra dos Bálcãs, criou-se um tribunal penal para julgar os possíveis autores de crimes graves. Após o genocídio de Ruanda, também. Mas ninguém acompanhou de perto os julgamentos do Tribunal de Ruanda. Nem a imprensa dava atenção. Já nos julgamentos do Tribunal da Iugoslávia, os carros da imprensa estavam sempre parados à porta do tribunal, acompanhando os julgamentos, filmando, e estudiosos vinham para assistir às sessões. Poucas pessoas em nosso país sabem, ou acompanham, os fatos que estão ocorrendo em Miamar, que podem vir a ser reconhecidos como atos de genocídio. O que lá acontece com os membros da etnia rohingya parece se dar em um lugar perdido no mundo, com seres que não consideramos como iguais. Acho que aí reside o problema: sempre nos sentimos mais próximos dos nossos "iguais". Quando sentimos que aquilo pode acontecer conosco, com nossos filhos e amigos. É uma questão, creio, de empatia. O que acontece com um grupo de africanos num território de um país que sequer sabemos localizar no mapa parece não despertar em nós essa empatia. Lembro quando eu ainda era muito jovem, e vi, numa revista, imagens de crianças esqueléticas, morrendo de fome em Biafra. Aquilo me marcou. Como criança, sofri, me identifiquei. E esse sentimento de empatia por quem sofre me acompanha até hoje. Talvez seja algo que aquelas fotos tenham gerado em mim. Talvez seja somente aquilo que chamo de solidariedade, de amor ao próximo, não sei.
No caso dos rohingya, em Mianmar, estamos diante de uma tragédia anunciada e que ninguém parece dar bola…
Uma bomba em uma boate em Paris pode acontecer conosco. Já o genocídio de um povo, obrigado a fugir de seu país, morrendo no caminho, enquanto que os que ficam sofrem barbaridades, isso parece distante. Parece que são outros seres, vivendo num mundo desconhecido. É triste esse lado da natureza humana. Mais sério, a meu ver, é o descaso dos organismos internacionais que deveriam agir nessas situações. Não agiram em Ruanda até que tivéssemos quase 1 milhão de vítimas. Não agiram em Biafra. Nem na Síria. Aí já não se trata de falta de empatia, mas de jogos de poder, de interesses políticos ou econômicos que parecem mais importantes do que as vidas humanas com as quais não nos identificamos. Se há algo de errado na falta de empatia de nós, seres humanos, há algo de muito mais errado nos organismos internacionais que pagamos para que nos representem.
A Organização das Nações Unidas (ONU) parece impotente para evitar conflitos hoje em dia. Mas esse era o princípio de sua formação, não?
Depois dos horrores da II Guerra Mundial, e talvez porque esta nos tenha atingido a todos, criou-se a ONU, para que aquela guerra fosse a última, para que seus horrores não se repetissem jamais. Alguma coisa, pois, está errada. Quantos milhões de pessoas morreram em conflitos armados nas décadas que sucederam à da criação da ONU? Não sei se tenho o conhecimento suficiente para entender. Mas, como juíza internacional, que esteve face a face com os horrores dos conflitos modernos, posso dizer que algo tem de mudar. Urgentemente. A ONU tem de mudar. Como? Arrisco dizer que, por exemplo, têm de mudar os poderes do Conselho de Segurança. Que o poder de veto de certos países já não se sustenta, perdeu a motivação que talvez existisse à época de sua criação. As intervenções humanitárias urgentes não podem continuar a depender dos jogos políticos, econômicos ou de poder.
A ONU tem de mudar. Têm de mudar os poderes do Conselho de Segurança. As intervenções humanitárias urgentes não podem continuar a depender dos jogos políticos, econômicos ou de poder.
O que a senhora destacaria como aprendizado no tempo em que passou em Haia?
Sem dúvida, o de saber fazer justiça, mesmo diante dos maiores horrores e dos maiores criminosos. Mais do que tudo, aprendi o quanto é importante a existência de órgãos de punição para os crimes mais graves. E que recebem diariamente críticas baseadas, na sua maioria, no fato de que “julga só africanos”, como se julgar autores de crimes odiosos cometidos na África, contra uma população mais do que vulnerável, fosse perda de tempo e de recursos. A justiça precisa ir aos lugares onde é mais necessária. Aos lugares onde a promessa de se pôr fim à impunidade tem real valor e serve efetivamente como mais uma ferramenta de prevenção geral.
A senhora percebeu algum gesto de machismo no TPI, uma vez que o mundo parece ainda regido pela forma de os homens comandarem as decisões que afetam a humanidade?
No tribunal, não. Desde o início de suas atividades, o tribunal foi composto de juízes de ambos os sexos e funcionários também recrutados a fim de que houvesse o chamado equilíbrio regional e de gênero. Mas um certo "machismo" europeu, esse sim. É ainda comum – embora não generalizado – esse sentimento de que o profissional branco europeu é mais competente, mais esperto, mais habilidoso do que, por exemplo, uma mulher africana ou latino-americana. Aliás, não só os europeus, mas certas europeias também. Foram necessários alguns meses para que eu pudesse mostrar que era boa juíza.
Como era a sua rotina em Haia?
De casa para o trabalho, do trabalho para casa. Diariamente, cinco dias por semana. Por vezes, trabalho nos fins de semana. Alguns pensam que ser juiz internacional é cargo de honraria. Posso falar pelo TPI: é muito, muito trabalho. Presença diária, equipe pequena, procedimentos complexos. Muito, muito estudo.
A senhora observou a República Centro-Africana. O Brasil deve enviar tropas para lá, como parte de uma missão da ONU. o que a senhora percebe sobre o cenário?
Presidi o caso que envolveu a prática de crimes na República Centro-Africana, um dos países mais pobres da África. Um povo muito sofrido. Golpe de Estado após golpe de Estado. Constante guerra civil. Isso tudo aumentado pelas disputas étnicas, exploradas pelos "autores por trás dos autores". Ouvi os testemunhos de mulheres e homens que foram estuprados para servir de "exemplo". Li relatos de crianças brutalizadas. O caso judicial transcorreu durante um curto período de paz. Antes de minha saída, outro conflito se iniciou. E depois outro. E agora outro. Só penso no que aquelas mesmas vítimas estão passando. Houve denúncias de que, anteriormente, soldados das tropas de paz ali estacionados estavam abusando sexualmente de crianças, dando-lhes pães e doces em troca de sexo oral. Vergonha. O Brasil teve uma atuação digna e importante no Haiti. Espero que lá nossos soldados façam o mesmo. Aquele povo precisa voltar a acreditar que existe gente de bem.
O que o Brasil precisa fazer para melhorar em termos de direitos humanos? Temos problemas contumazes em cadeias. Mas como lidar com a ideia de muita gente de que "bandido bom é bandido morto"?
Comecei a carreira militando na área de direitos humanos na década de 1970. Posso afirmar que evoluímos nessa área. Hoje, ainda se tortura, mas a tortura não é mais vista como meio lícito de se obter provas. Quem tortura sabe que está cometendo um crime. A situação nas prisões é ainda desumana, mas hoje mais gente se preocupa com isso. Quem repete que "bandido bom é bandido morto" é doutrinado. E por certa parte da mídia, que fala o que o outro quer ouvir. Se pudessem, certos locutores e blogueiros pregariam o linchamento como único meio de acabar com a criminalidade. Quem quer que apresente um remédio rápido e eficiente contra o crime se elege deputado. Entendo: vivemos com medo. Eu também. Mas não me deixo seduzir por teses milagrosas que dizem que matando bandidos se resolve o problema. Enquanto não pararmos de acreditar nos falsos profetas, entendermos as razões do crime e elegermos representantes que apresentem políticas públicas viáveis de contenção da criminalidade, o problema só vai aumentar. E, enquanto não se apresentarem os dados existentes que confirmam que uma prisão bem administrada é um veículo idôneo para diminuir os índices de reincidência, continuaremos a ver os presos saindo das prisões piores do que entraram. A mim, esse mantra do "bandido bom é bandido morto" causa irritação extrema. Deveria causar só tristeza, mas vai além disso. Vivi o período da ditadura, do esquadrão da morte. A história nos mostra que a violência não resolve. A eleição de babacas – com o perdão da expressão – não resolve. Mas boa parte da população, com o incentivo dos meios de comunicação, continua acreditando em falácias e soluções fáceis – para emagrecer ou para acabar com a criminalidade.
Quem quer que apresente um remédio rápido e eficiente contra o crime se elege deputado. Entendo: vivemos com medo. Mas, enquanto não pararmos de acreditar nos falsos profetas, entendermos as razões do crime e elegermos quem apresente políticas públicas viáveis, o problema só vai aumentar.
São 18 os juízes no TPI, de vários países. Como conviver com tamanha diversidade cultural?
Aprender a conviver e, mais que isso, aprender que se pode aprender com o outro foi, talvez, a experiência pessoal mais importante que tive. Ainda mais para mim, estudiosa do nosso Direito e do nosso sistema brasileiros. Para alguém que é exigente como eu, ver que podia tirar da experiência do outro algo para melhorar e aperfeiçoar a minha própria experiência e meus conhecimentos foi fascinante. Trabalhei com juízes dos mais diversos países e sistemas jurídicos, personalidades e costumes distintos. Lembro-me de quando cheguei para a minha posse no TPI. Abracei com carinho a secretária que havia providenciado as acomodações, os gabinetes, as passagens aéreas. Enquanto a abraçava, notei que ela ficou petrificada, dura. Vi o quanto meu abraço a incomodou. Foi minha primeira lição de convivência com a diversidade: nem todos apreciam a nossa maneira tão expansiva de demonstrar afeto. Essas pequenas lições se repetiram dia após dia, em pequenas coisas e em outras mais importantes, na própria maneira de julgar, de ver o papel do juiz no comportamento das testemunhas, no lidar com funcionários – deve-se ser mais ativo, mais passivo? Tudo isso exigiu, de minha parte, uma mente aberta, uma vontade sincera de aprender, mais flexibilidade, e, também, mais humildade. Foi uma lição de vida, e para toda a vida. Voltei uma pessoa diferente.
Como uma juíza deve se portar em casos de ditadores como Slobodan Milosevic?
Minha experiência anterior, como magistrada aqui, no Brasil, me ajudou muito. Comecei minha carreira como estagiária e advogada no Departamento Jurídico do XI de Agosto, entidade que presta assistência judiciária gratuita a pessoas sem meios de pagar por advogados. Nessa época, defendi ladrões, estupradores, homicidas. Foi lá que aprendi que todos, sem exceção, têm direito à defesa. Esse aprendizado trago comigo até hoje. Como juíza, aqui e lá, fui intransigente para assegurar a garantia da ampla defesa, da efetiva defesa. E aprendi que isso não é de maneira alguma incompatível com o respeito e a proteção aos direitos das vítimas. No sistema do TPI, as vítimas participam dos atos processuais. Estão lá, visíveis, diante de nós. E mesmo isso não pode nos afastar da verdadeira missão judicial: a de julgar com imparcialidade, garantindo os direitos de defesa.
Há um risco de impunidade no TPI, já que o tribunal não tem uma polícia própria. Ainda assim, a senhora defende a diplomacia como saída.
Não creio que o fato de não ter polícia própria ponha em risco a efetividade do tribunal. É preciso, e é importante, cobrar sempre dos Estados o seu dever de cooperar com o tribunal, na captura dos suspeitos e na efetivação das decisões judiciais. Engajar os Estados é também uma forma de educar para a cooperação internacional na luta contra a impunidade e a criminalidade internacional. E a maior parte dos Estados têm efetivamente cooperado com o TPI. Acredito que a solução diplomática é importante quando se tenta evitar o conflito. Mas ela pode ser prejudicial quando cede à pressão da ideologia ou do poder político ou econômico. São coisas diferentes. Não sou cientista política, mas acredito que uma solução negociada, que não atente contra os direitos das vítimas, pode e deve ser tentada, como alternativa ao chamado "poder da força".
O fato de os EUA não serem membro do TPI é algo frustrante?
Claro que sim. Esperamos que, um dia, o TPI seja efetivamente universal, e que todos os Estados venham a aderir a ele e, por consequência, se equipem para julgar, eles mesmos, os seus acusados de cometerem os mais graves crimes contra a paz e a sobrevivência da humanidade. Hoje o TPI conta com 124 Estados-partes, o que já é um número considerável se tomarmos em conta a data da assinatura do Estatuto de Roma – 1998. Com o tempo, e diante de sucessivas demonstrações de sua imparcialidade, independência e eficiência, tenho a certeza de que quase todos os Estados irão aderir. Cabe ao TPI provar a que veio.
Como o Brasil é visto pela comunidade internacional em relação à corrupção interna? A operação Lava-Jato mudou a imagem do país?
Ser conhecido por seu alto nível de corrupção é sempre negativo para a imagem de um Estado. Ser conhecido por combatê-la sempre ajuda a melhorar a imagem desse Estado. O que é necessário, no entanto, é que o Estado se aproveite da oportunidade para criar mecanismos efetivos que evitem que a corrupção seja aceita como normal, "já que todos fazem", e assim atinja níveis indecentes. Só a atuação do poder punitivo não vai resolver o problema, se o Estado não criar mecanismos efetivos de controle e monitoramento. Exatamente o que eu disse antes sobre o aperfeiçoamento dos mecanismos internacionais de proteção a direitos fundamentais. Precisamos de mecanismos, legais, de controle, de monitoramento, de intervenção imediata. A Justiça punitiva deve vir como última instância de combate à corrupção, quando todos os demais mecanismos tiverem falhado.