Sittwe, Mianmar – Ele era um membro da união dos estudantes rohingya na faculdade, tendo frequentado o ensino médio em uma escola pública e até ganhado uma cadeira no parlamento nas eleições frustradas de 1990 em Mianmar.
Mas, de acordo com o governo do país, o povo rohingya de Kyaw Min não existe.
Uma minoria muçulmana há muito perseguida, concentrada no estado ocidental de Rakhine, em Mianmar, os rohingya foram considerados intrusos perigosos pelo vizinho Bangladesh. Hoje, são basicamente apátridas, tendo sua identidade negada pelo estado de Mianmar, de maioria budista.
"Rohingya não existe; essa é uma notícia falsa", disse Kyaw San Hla, autoridade do Ministério de Segurança estadual de Rakhine.
Esse tipo de negação deixa Kyaw Min perplexo. Ele viveu em Mianmar todos os seus 72 anos, e a história dos rohingyas como um grupo étnico distinto no país remonta a muitas gerações.
Agora, os órgãos de vigilância dos direitos humanos alertam que grande parte da evidência da história do povo rohingya em Mianmar corre o risco de ser erradicada por uma campanha militar que os Estados Unidos declararam ser uma limpeza étnica.
Desde o final de agosto, mais de 620 mil muçulmanos rohingya, cerca de dois terços da população que morava em Mianmar em 2016, fugiram para Bangladesh, expulsos pela campanha sistemática de massacres, estupros e incêndios propositais em Rakhine.
Em um relatório divulgado em outubro, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos disse que as forças de segurança de Mianmar trabalharam para "apagar efetivamente todos os marcos importantes da geografia e da memória rohingya, de tal forma que o retorno desse povo às suas terras seria apenas uma submissão a um terreno desolado e irreconhecível".
"Acabaram com os rohingya em nosso país. Em breve todos nós estaremos mortos ou desaparecidos", disse Kyaw Min, que mora em Rangun, capital comercial de Mianmar.
O relatório das Nações Unidas também disse que a repressão em Rakhine tinha como alvo professores, lideranças culturais e religiosas, e outros indivíduos com influência na comunidade rohingya, em uma tentativa de diminuir a história, a cultura e o conhecimento do povo.
"Somos pessoas com nossa própria história e tradições", disse Kyaw Hla Aung, advogado rohingya e ex-prisioneiro político, cujo pai trabalhou com oficial de justiça em Sittwe, capital de Rakhine.
"Como eles podem fingir que não somos nada?", perguntou ele.
Falando por telefone, Kyaw Hla Aung, que foi preso várias vezes por seu ativismo e agora está em um campo de Sittwe, disse que sua família não tinha comida suficiente porque as autoridades impediam a distribuição da ajuda internacional.
A súbita amnésia de Mianmar sobre os rohingya é tão ousada quanto sistemática. Há cinco anos, Sittwe, localizada em um estuário na Baía de Bengala, era uma cidade mista, dividida entre uma maioria budista de etnia Rakhine e a minoria muçulmana Rohingya.
Andando no mercado lotado de Sittwe em 2009, vi pescadores rohingyas vendendo frutos do mar para mulheres rakhines. Havia advogados e médicos rohingyas. A rua principal da cidade era dominada pela mesquita Jama, uma construção em arabesco de meados do século XIX. O imã falou orgulhosamente do patrimônio multicultural de Sittwe.
Mas, desde as revoltas sectárias em 2012, que resultaram em um número desproporcional de baixas entre os rohingyas, os muçulmanos têm sido varridos da cidade. Em todo o centro de Rakhine, cerca de 120 mil rohingyas, mesmo aqueles que tinham cidadania, foram assentados em campos, despojados de seus meios de subsistência e impedidos de frequentar escolas adequadas ou de ter acesso a cuidados de saúde.
Eles agora não podem deixar os guetos sem autorização oficial. Em julho, um rohingya que foi autorizado a comparecer à corte em Sittwe foi linchado por uma multidão da etnia Rakhine.
A mesquita Jama agora está abandonada e se deteriorando por trás de arame farpado. O imã de 89 anos também foi enviado a um campo.
"Não temos direitos como seres humanos. Esta é uma limpeza étnica estatal e nada mais", disse ele, pedindo para não ser identificado por causa de preocupações de segurança.
A mentalidade de Sittwe se adaptou às novas circunstâncias. Recentemente no mercado, todo residente de Rakhine com quem falei afirmou, falsamente, que nunca um muçulmano foi proprietário de loja lá.
A Universidade de Sittwe, que costumava contar com centenas de alunos muçulmanos, agora tem apenas cerca de 30 rohingyas, todos em um programa de ensino à distância.
"Não temos restrições a nenhuma religião, mas eles simplesmente não vêm", disse Shwe Khaing Kyaw, secretário da universidade.
Os rohingya viveram em Rakhine por gerações, com seu dialeto bengali e suas características do sul da Ásia, muitas vezes distinguindo-os dos rakhines budistas.
Durante a era colonial, os britânicos incentivaram os agricultores de arroz, comerciantes e funcionários públicos do Sul da Ásia a migrar para o país conhecido então como Birmânia.
Alguns desses recém-chegados se misturam aos rohingya, vistos mais comumente como índios arakaneses ou muçulmanos arakaneses. Outros se espalharam pela Birmânia. Na década de 1930, os sul-asiáticos, muçulmanos e hindus, constituíam a maior parte da população de Rangum.
A mudança demográfica deixou alguns budistas se sentindo sitiados. Durante a liderança xenófoba do general Ne Win, que iniciou quase meio século de governo militar, centenas de milhares de sul-asiáticos fugiram da Birmânia para a Índia.
Hoje, há mais rohingyas fora de Mianmar – principalmente em Bangladesh, Paquistão, Arábia Saudita e Malásia – do que os que permanecem no que consideram sua pátria.
No entanto, nas primeiras décadas da independência da Birmânia, uma elite rohingya prosperou. A Universidade Rangum, a principal instituição do país, tinha estudantes rohingya suficientes para formar sua própria união. Um dos Gabinetes de Nu, o primeiro líder pós-independência do país, incluiu um ministro da Saúde que se identificou como muçulmano arakanês.
Mesmo sob Ne Win, o general, a rádio nacional birmanesa fazia transmissões na língua rohingya. A etnia estava representada no parlamento, inclusive por mulheres.
Shwe Maung, um rohingya da cidade de Buthidaung, no norte de Rakhine, serviu no parlamento entre 2011 e 2015 como membro do Partido da Solidariedade e Desenvolvimento da União dos Poderes Militares. Nas eleições de 2015, no entanto, foi proibido de concorrer.
Centenas de milhares de rohingyas foram privados do direito de votar nessas eleições.
O distrito eleitoral de Shwe Maung, que já fora 90 por cento rohingya, agora é representado por um budista rakhine.
Por Hannah Beech